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Eles tacam fogo, a gente semeia de novo

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E é assim. Eles vão tacar fogo. A gente vai ficar minhocando e agindo para barrar a destruição e, também, para reflorestar. Eles tocam fogo, a gente semeia de novo. - Mauro Pimentel / AFP
Nós teremos as sementes para reflorestar – os biomas, a democracia e os corações

Nas últimas semanas assistimos, estarrecidos, à queima de grande parte do Pantanal. Animais, árvores, biomas inteiros que estão desaparecendo da noite para o dia para dar lugar a pastagens. A maioria das áreas devastadas era de preservação ambiental, muitas eram reservas ambientais e indígenas.

Tacar fogo na mata para limpar o terreno é uma técnica muito, muito antiga. Num sistema agrícola tradicional como o quilombola ou sistemas indígenas, é feita com cuidado, inteligência e integrada à lógica ambiental.

Mas ela também foi usada no Brasil com resultados catastróficos por grandes fazendeiros de olho na ocupação ilegal e predatória de áreas públicas e comuns. Geralmente essas áreas devastadas são usadas por grileiros, posseiros, criadores de gado e fazendeiros de monoculturas.

O resultado é muito pior do que apenas as queimas das matas, já que na esteira dos incêndios chegam grandes plantações de soja e enormes pastagens nascidas para engordar os lucros de grandes companhias, muitas vezes multinacionais, com uso de trabalho escravo ou quase escravo.

A ditadura militar de 1964 foi campeã nesse processo, que se repete agora, com Jair Bolsonaro (sem partido) na presidência. Em dezembro de 1975, a Fazenda do Vale Cristalino, que pertencia à Volkswagen e ficava no Araguaia, promoveu o que foi considerado na época o maior incêndio no planeta. A fazenda fora um presente dos militares à multinacional alemã – já que, no acordo, o governo brasileiro subsidiou a compra das terras com empréstimo a juros baixíssimo.

As terras queimavam desde 1974, mas o incêndio se intensificou em 1975. Durante um encontro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, à época, pesquisadores e cientistas analisaram, por meio de nova tecnologia, os satélites, a extensão do dano causado ao meio ambiente. Fizeram a denúncia internacional, que comoveu o mundo, que na época apenas iniciava o processo de sensibilização para temas ambientais.

A relação entre a Volks e o governo militar era de muita proximidade – funcionários das fábricas da Volks de São Bernardo eram vigiados, alguns foram presos e torturados dentro das fábricas. A fazenda do Vale Cristalino, que se pretendia modelo, acabou naufragando num mar de denúncias de devastação ambiental e de trabalho escravo.

É interessante perceber que esses projetos possuíam o apoio, financeiro e de marketing, de diversas empresas nacionais e estrangeiras. Enquanto o Araguaia queimava, as empresas ganhavam muito dinheiro. Entre as que apoiavam o projeto de desenvolvimento da região estavam Mappin, Scarpa, Gasparian, Alcântara Machado, Swift, Lunardelli, Camargo Corrêa, Villares, Finasa, Germaine Bouchard, Levy, Junqueira Vilela, Meinberg, Avelar Assumpção, Ometto.

Na época, a Ometto, hoje ligada à Cosan, a grande produtora nacional de etanol, promoveu um deslocamento de um grupo indígena inteiro, os Xavante Marãiwatsédé, resultando em epidemias que mataram centenas de pessoas; no processo, cinco crianças foram sequestradas e nunca mais vistas. Processos semelhantes aos que vemos hoje. Enquanto nós ficamos chocados em ver as chamas na televisão, grandes empresas planejam “desenvolver” a região ganham muito dinheiro. Lucro e as corporações acima da vida.

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Dá um certo desânimo ser historiadora e saber o que ocorreu na época, com essa retomada do autoritarismo, da devastação, da cultura das empresas e da morte – tudo isso somado às benesses que ganham os militares. Mas eu tenho uma natureza que é briguenta, teimosa e otimista, tudo ao mesmo tempo. Por isso fui pesquisar mais e me lembrei de quando ainda estava no começo de minha adolescência.

Sou filha da ditadura, nasci em 1972. Não entendia muito o que estava acontecendo no país, tudo parecia nebuloso e coisa de adultos. Só sabia que algo estava muito errado. Quando a redemocratização tomava fôlego no país nos anos 1980, meu pai, que é médico, foi trabalhar na Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb).

Era uma época em que a Mata Atlântica, ao redor de Cubatão, tinha sido devastada pelas indústrias da região. Eram 23 complexos petroquímicos, siderúrgicos e de fertilizantes instalados na região, que fizeram um estrago ambiental enorme na Mata Atlântica. A poluição era brutal e cobrava seu preço. Toda hora na TV éramos informados de encostas caíam soterrando famílias inteiras, em seguidas tragédias que podiam ser evitadas.

A partir de 1985, foi elaborado em plano de ação conjunta pelo IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas), pelo Instituto Florestal (IF) e o pelo Instituto de Botânica (IBt), sob a coordenação da Cetesb, para reflorestar a região. A ideia era o mesmo tempo simples e genial – mateiros e caiçaras da região foram contratados para recolher sementes na mata nativa, que foram depois condicionadas numa pequena cápsula de gelatina com micronutrientes.

Essas cápsulas foram então lançadas de helicóptero nas áreas desmatadas, e a gelatina garantia que as sementes ficassem agarradas às encostas desmatadas e favorecessem a germinação inicial. Meu pai participou desses voos de helicóptero sobre a floresta devastada para jogar as cápsulas com as sementes. Ele sempre chegava em casa animado contando o que que tinha acontecido e que estava dando certo. Eu não entendia direito, mas achei interessante e nunca me esqueci. E, hoje, muito da mata que a indústria pesada de Cubatão destruiu foi recuperado, ainda que a cidade enfrente ainda problemas ambientais.

Enquanto vou lembrando disso, ouço uma música, de Paulo César Pinheiro e do Maurício Tapajós, “Pesadelo”. A letra é assim:

Quando o muro separa uma ponte une
Se a vingança encara o remorso pune
Você vem me agarra, alguém vem me solta
Você vai na marra, ela um dia volta

E se a força é tua ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós, olha aí

Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto
De repente olha eu de novo
Perturbando a paz, exigindo troco

E é assim. Eles vão tacar fogo. A gente vai ficar minhocando e agindo para barrar a destruição e, também, para reflorestar. Eles tocam fogo, a gente semeia de novo.

Nós teremos as sementes para reflorestar – os biomas, a democracia e os corações.

Ah, sim, já ia quase esquecendo. Pela atuação de reflorestamento da Mata Atlântica, meu pai foi fichado no Dops como “ambientalista”.

Edição: Rodrigo Chagas