Bolívia

Perseguição a aliados de Evo é rotina em Santa Cruz, um dos berços do golpe boliviano

Acusação de fraude eleitoral, já descartada por auditorias independentes, abriu caminho para escalada de violência

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

Boliviana carrega bandeira com o rosto do ex-presidente Evo Morales durante caravana em apoio a Luis Arce - LUIS GANDARILLAS / AFP

Ameaças de morte, casas apedrejadas, prisões políticas. Trezentos dias após a renúncia do então presidente Evo Morales, do Movimento ao Socialismo (MAS), a perseguição a seus aliados virou rotina em redutos históricos da direita boliviana. É o caso de Santa Cruz de la Sierra, estado dominado pelo agronegócio, na fronteira com o Brasil, que é considerado um dos berços do golpe de novembro de 2019.

O jovem Alpacino Mojica tentou desafiar a hegemonia dos latifundiários cruceños nas últimas eleições. Líder do MAS no estado, ele candidatou-se a deputado e não foi eleito por uma diferença mínima – 3,5 mil votos, em uma região onde o partido costuma perder por mais de 20 mil. A frustração com o resultado das urnas foi o aperitivo da tragédia que viria a seguir.

Um relatório da Organização dos Estados Americanos (OEA) – desmentido por auditorias independentes – apontou fraude na reeleição de Morales como presidente dias após as eleições de outubro de 2019. Integrantes do MAS relatam que a acusação infundada foi o estopim para a criminalização do partido.

Mojica foi um dos alvos prioritários. Em 13 de dezembro, ele e seu irmão Paolo foram julgados por participação em assassinatos ocorridos um mês antes, durante ataque a um assentamento de camponeses do MAS em Montero, a 65 km da capital do estado de Santa Cruz. Na ocasião, houve troca de tiros e dois homens foram mortos.

:: Conheça o assentamento atacado pela direita boliviana em Montero ::

Paolo foi liberado ainda no dia 13 por não haver indícios de envolvimento no caso. Alpacino, por outro lado, permaneceu detido por 67 dias e não conseguiu se despedir da mãe, que faleceu um mês após a ordem de prisão.

“Depois que o presidente Morales renunciou, nos acusam de delitos que nunca cometemos”, afirma o dirigente do MAS em Santa Cruz. “Nós já fomos perseguidos, vieram à nossa casa, à casa da minha mãe, jogaram pedras, nos insultaram, nos agrediram, e depois inventaram um caso. Primeiro, éramos apenas testemunhas. Em seguida, nos prenderam ilegalmente.”

:: Leia também: Bolívia registrou 24 assassinatos cinco dias após golpe contra Evo Morales ::

“Foi um abuso total”, ressalta Mojica, que se emociona ao recordar a mãe. Segundo o militante, a dor de ver o filho preso pode ter abreviado sua vida. “Era a pessoa que eu mais amava no mundo, uma pessoa que sempre me deu apoio, força. Deve ter sido muito difícil ligar o rádio e a televisão e ouvir os filhos acusados injustamente.”

Mojica deixou a prisão de Palmasola após pagamento de fiança no valor de 15 mil bolivianos – o equivalente a R$ 11,5 mil. Ele continua respondendo às acusações por suposto homicídio em grau de cumplicidade e organização criminosa.

Tentativas de cooptação

Ex-deputado pelo MAS, Darwin Choquerive é dirigente da regional urbana do partido em Santa Cruz. Na avaliação dele, amedrontar aliados de Morales é uma tática central dos articuladores do golpe.

“Dias antes do golpe, tive que sair de casa às duas da manhã. Dirigentes da direita foram me ‘visitar’ cerca de 100 pandilleros [milicianos], para me ameaçar”, relata Choquerive, sem mencionar o nome dos adversários políticos. “Minha mãe, que morava comigo, teve que fugir para a casa de uma parente, e está morando lá até hoje. São pessoas racistas, atrevidas, e atuam dessa forma”.

:: Leia também: Artigo | O golpe na Bolívia tem a ver com a tela que você usa para ler este texto ::

Outro movimento recorrente, segundo o militante, é a tentativa de cooptação de lideranças do MAS no interior do país. A ideia é seduzir os dirigentes e tentar extrair informações e enfraquecer o partido em troca de dinheiro ou cargos no governo.

“A vantagem do MAS é que temos estrutura política e direção em todos os municípios, até o último rincão da Bolívia. A direita, claro, tem recursos econômicos, pode comprar alguns dirigentes, mas nem todos têm um preço”, enfatiza o ex-deputado.

Ataques midiáticos

Para Rafael Gamez, militante do MAS em Santa Cruz, os ataques midiáticos e as pressões contra integrantes do partido são anteriores ao golpe. “Começaram na época do referendo de 2016”, lembra. À época, a população boliviana foi chamada para decidir sobre a possibilidade de uma nova candidatura de Morales.

A renúncia do então presidente, em 2019, segundo Gamez, deixou os militantes “à deriva”. Ele próprio, logo após o golpe, se deparou com uma imagem de seu rosto e seu nome circulando nas redes sociais, como se fosse um fugitivo ou procurado pela Justiça. Imediatamente, passou a tomar cuidados redobrados com sua segurança e reduziu as visitas aos familiares, para protegê-los.


Organizações populares da Bolívia foram às ruas pedir a renúncia de Jeanine Áñez, que tomou posse após o golpe contra Evo Morales / Luis Gandarillas / AFP

A necessidade de responder às notícias falsas na internet desde 2016 fez com que integrantes do MAS criassem o Grupo de Apoio Estratégico (GAE), a qual pertence Gamez. Hoje, a equipe também tem a tarefa de divulgar as propostas de Luis Arce, candidato a sucessor de Morales, durante a pandemia.

“São profissionais, técnicos e políticos, que estão fazendo uma campanha digital, para além da campanha tradicional”, explica o militante.

Histórico e saldo do golpe

Descendente de indígenas quéchua e aimará, Evo Morales governou a Bolívia por três mandatos, entre 2006 e 2019. A nacionalização dos hidrocarbonetos – petróleo e gás – foi um dos pilares de sua popularidade. A extrema pobreza caiu de 38% para 15% no país e o crescimento econômico tornou-se um dos maiores do continente.

O relatório da OEA, com a suposta fraude eleitoral fez explodir a insatisfação dos opositores de Morales, que já o criticavam por ter se candidatado à terceira reeleição. No referendo de 2016, a população boliviana havia votado contra essa possibilidade, mas a Suprema Corte do país garantiu o direito constitucional ao então presidente.

Agressões de aliados, queimas de casas e ameaças de morte motivaram a renúncia de Morales, que foi forçado a pedir exílio em novembro de 2019. Em todo o mundo, circularam imagens da Whipala sendo queimada e destruída. A bandeira, de origem andina, é um dos símbolos do Estado Plurinacional da Bolívia e representa o reconhecimento da diversidade dos povos indígenas que habitam aquele território.

“O racismo, que já existia, em uma sociedade predominantemente indígena, se escancarou sem nenhum pudor após o golpe”, analisa Gladstone Leonel Jr., professor de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador do constitucionalismo boliviano.

“Agregado a esses elementos do racismo, há um desgaste com um governo que já estava (no poder) havia quase 14 anos. Já existiam algumas fissuras nesse governo, por mais que ele contribuísse para uma maior popularização de direitos básicos”, completa. “Aliás, muitas das críticas ao governo estavam relacionadas à figura indígena do Evo, embora internamente alguns grupos indígenas que compunham o governo haviam rompido com ele. Afinal, há diferentes percepções políticas e disputas de poder entre os indígenas”.

O golpe de 2019 seria resultado da articulação de interesses de atores internos e externos, insatisfeitos com a reeleição de Morales. “A direita soube se apropriar desse desgaste, estimulou um racismo histórico, que já existia, sustentado pelo imperialismo, e conseguiu realçar tudo isso em um contexto de golpe, porque não conseguiram fazer desse projeto vitorioso pela via eleitoral”.

Várias das postagens anti-indígenas, queima da Whipala e agressões a apoiadores do MAS são atribuídas ao Comitê Cívico de Santa Cruz. Em 2019, a organização era liderada por Luis Fernando Camacho, um dos articuladores do golpe, que mantém relação estreita com o governo brasileiro e é candidato a presidente nas próximas eleições bolivianas.

Gamez acusa Jair Bolsonaro e Mauricio Macri, ex-presidente da Argentina, de participarem do golpe de 2019. Para Alpacino Mojica, o processo não foi coordenado por atores sul-americanos: “A responsabilidade é dos Estados Unidos e das transnacionais que pretendem se apoderar do lítio boliviano”.

O sul da Bolívia possui a maior reserva mundial de lítio, metal alcalino é usado para fabricação de baterias.

:: Leia também: "Vamos dar golpe em quem quisermos", diz Elon Musk, dono da Tesla, sobre a Bolívia ::

Perspectivas

Após a renúncia de Morales, a presidência foi assumida interinamente pela ex-senadora Jeanine Áñez, opositora do MAS. Ela descumpriu a promessa de convocar eleições em 120 dias e autorizou outros três adiamentos da data de votação, utilizando a pandemia do coronavírus como argumento.

O pleito está previsto para 18 de outubro. Além de Áñez e Camacho, a direita boliviana tem como principal representante o ex-presidente Carlos Mesa. Em todas as pesquisas, os três aparecem atrás de Arce, ex-ministro da Economia de Morales e considerado um dos responsáveis pelo crescimento do PIB boliviano.

A campanha eleitoral começou formalmente no último dia 6. “Fizemos uma caravana extraordinária com Arce por todos os bairros cruceños, e foi impressionante a quantidade de pessoas nos acompanhando nas ruas às oito da manhã”, ressalta Choquerive. Na ocasião, cinco veículos de apoiadores do MAS foram destruídos. “Estamos preparados para os ataques da direita, porque Santa Cruz é o berço da direita boliviana. Mas não vamos responder na mesma moeda”, finaliza.

Para Mojica, fazer uma campanha limpa e honesta é a reação mais adequada à perseguição sofrida desde o golpe. “Chegamos onde chegamos pela via democrática, do crescimento, desenvolvimento. Não vamos abrir mão desses valores. Voltaremos ao governo porque somos o único instrumento político que tem um projeto claro para o povo boliviano”, afirma.

“O início da campanha reafirmou que a maioria das pessoas está com Arce e confia que vamos recuperar a estabilidade econômica, que foi construída ao longo de 14 anos e comprometida após o golpe de Estado”, finaliza o ex-candidato.

Rafael Gamez pondera que a violência contra integrantes do MAS não ocorre só em Santa Cruz. “Em Potosí [na região dos Andes], também queimaram carros e bandeiras no dia 10, durante a abertura da campanha”, lembra.

“Temos muito medo de que agora, sim, ocorra uma fraude. Não confiamos no Tribunal Supremo Eleitoral da Bolívia que foi montado após o golpe”, acrescenta Gamez. “Estamos lutando para que observadores internacionais da ONU [Organização das Nações Unidas] e da União Europeia acompanhem as eleições, porque não confiamos na OEA.”

Morales foi impedido de concorrer às eleições para o Senado, no último dia 8, por não ter residência comprovada na Bolívia nos últimos dois anos. O ex-presidente continua exilado na Argentina, onde atua como chefe nacional de campanha do MAS.

A reportagem tentou contato com o Comitê Cívico de Santa Cruz e com a presidenta interina Jeanine Áñez para comentar as acusações, mas não obteve retorno.

Edição: Rodrigo Durão Coelho