Coluna

A cozinha caiçara

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As postas de peixe são cozidas num caldo de peixe com cebola, salsinha, tomates, suco de limão e banana verde, de preferência “São Tomé” ou nanicas bem verdes. - Reprodução
Muitas vezes, aquele gosto de mar e daquela manhã acompanharam.

Para Barbara Cordovani
 

Algumas vezes eu dou palestras sobre História da Alimentação no Engenho São Jorge dos Erasmus em Santos. O lugar é um antigo engenho de açúcar construído por Martim Afonso de Souza no século XVI. É uma das mais antigas construções brasileiras preservadas e hoje pertence à Universidade de São Paulo, possuindo uma extensa programação cultural e acadêmica. Outro dia eu conto mais sobre engenho, que merece uma coluna só pra ele. Pois bem.

Saí apressada sábado de manhã – correndo pra acordar a família que iria passar o dia comigo em Santos depois da palestra. Como é um engenho de açúcar e minhas pesquisas acadêmicas são sobre açúcar, esse geralmente é o tema da palestra. Não foi diferente nesse dia. Eu ia falar sobre história de doces, confeitarias e receitas antigas. Mas eu também teria de receber um convidado e conduzir uma conversa sobre cozinha caiçara. Eu iria entrevistar o chef Eudes Assis.

Sou de São Paulo. O mar me fascina, fui muitas vezes passar as férias em Santos, mas, presa num cotidiano de uma cidade de serra, nunca tinha me atinado à história e existência de uma cozinha específica do litoral paulista. Na verdade, a culinária caiçara vai das praias do Paraná ao sul do Rio de Janeiro, mais especificamente Paraty. Mas estava num péssimo humor quando cheguei no engenho, um pouco atrasada, com a sala já cheia de gente.

Eudes começou a falar sobre sua trajetória como chef e, lentamente, fui mudando de humor e entendendo o que significava a culinária caiçara: a forte presença de ingredientes locais, as Pancs como a Taioba, coletadas na mata atlântica, os peixes da região, as farinhas, o açúcar, a banana. Tudo passou a fazer sentido. A cozinha caiçara, como são todas as cozinhas regionais, é feita pela gente do lugar com os ingredientes locais. Comida simples, do cotidiano, da vivência pelas matas e pelo mar que transformadas em pratos.

Um dos pratos mais conhecidos desse tipo de cozinha é o Peixe Azul Marinho, uma espécie de moqueca com um tempero sutil. As postas de peixe são cozidas num caldo de peixe com cebola, salsinha, tomates, suco de limão e banana verde, de preferência “São Tomé” ou nanicas bem verdes. O importante é cozinhar o peixe numa panela de ferro pois o líquido que sai da banana reage com o ferro dando a cor azul marinho para o prato.

Naquela manhã em Santos, Eudes contou como foi sua infância caiçara, catando marisco, pescando, catando taioba pelos terrenos da vizinhança para que pudesse ter o que comer. Começou cedo a trabalhar numa cozinha de um bar local e de lá tornou-se cozinheiro profissional com reputação internacional. Fascinados pela beleza estonteante da região muitas vezes nos esquecemos que o litoral de São Paulo é uma região muito pobre, com um imenso contrate entre as grandes casas de veraneio e a vida pobre de pescadores e moradores da região.

No final da manhã, já estava tomada pelo relato do Eudes. E ele ainda trouxe pratos para que a plateia experimentasse – pirão, farofa de taioba e merengue de banana. Esse doce me intriga. As bananas são colocadas num pirex transparente, cobertas por um creme doce de maisena e depois cobertas por claras em neve. A mistura é levada ao forno, as bananas cozinham e as claras se tornam suspiros um pouco tostadinhos. É um doce de infância, de uma simplicidade rústica e saborosa, não segredo, não tem muita técnica e não tem ingrediente difícil.

Todas as vezes que fui ao litoral depois disso prestei atenção ao que comia nos restaurantes, na praia e nas barracas locais. Muitas vezes, aquele gosto de mar e daquela manhã me acompanharam. Durante a pandemia passei um mês numa casa emprestada em Itanhaém, litoral sul de São Paulo. Vi os pescadores no rio, os índios na cidade, as mulheres cozinhando. É uma cidade pobre, lotada de supermercados. Quando se fala num culinária local, as cozinheiras sorriem de lado, tímidas e orgulhosas.

Mas, ali naquela manhã de sol no engenho, a cozinha caiçara tomou forma, cheiro e gosto. Passou a ter uma história também. Isso foi há muitos anos. A incrível história do engenho, recheada de mistérios, de invasões piratas e relatórios numa língua estranha, se misturou para sempre ao gosto dos peixes, do tempero sutil, da farinha de mandioca, da taioba e da banana.

Edição: Rodrigo Durão Coelho