O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) anunciou, nesta quarta-feira (26), que o projeto do programa Renda Brasil está suspenso até que sejam feitas alterações no texto, cuja elaboração é conduzida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Espécie de reformulação do Bolsa Família, a ação prevê aumento da média paga pelo programa às famílias por meio da extinção de outras políticas sociais, como o abono salarial, o seguro-defeso (para pescadores) e a Farmácia Popular.
A declaração do chefe do Executivo foi dada durante uma agenda oficial em Minas Gerais. Segundo Bolsonaro, a suspensão seria por conta de divergências suas com o texto. "Ontem discutimos a possível proposta do Renda Brasil, e falei ‘está suspenso’. A proposta como apareceu para mim não será enviada ao parlamento. Não posso tirar de pobre para dar a paupérrimos", disse, em uma referência ao abono salarial.
Voltado para pessoas que recebem até dois salários mínimos – valor atualmente cotado em R$ 2.090 –, o benefício é concedido uma vez ao ano para trabalhadores da iniciativa privada ou servidores públicos e militares que atendam ao regramento do programa. A política abrange 23 milhões de pessoas, com valor de até um salário mínimo (R$ 1.045) para cada beneficiado.
A gestão anunciou a intenção de ampliar de R$ 191 para R$ 247 o valor médio concedido pelo Bolsa Família para cada domicílio atendido pelo programa. Em fase de estudo pela equipe econômica de Bolsonaro, a política ampliaria de 14,2 milhões para até 24 milhões o número de domicílios atendidos, segundo os cálculos anunciados. Com isso, a verba de cerca de R$ 30 bilhões canalizada para o Bolsa Família se converteria em R$ 52 bilhões na nova política.
Para atingir esse montante, o Executivo extinguiria o Farmácia Popular, que tem custo de cerca de R$ 2 bilhões, e o abono salarial, cujo orçamento é de mais de R$ 20 bilhões para este ano, por exemplo. A ideia havia deixado em alerta especialistas que lidam com políticas e direitos sociais. Kênia Figueiredo, integrante do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), afirma que a proposta colocaria em xeque conquistas históricas e não teria potencial para trazer ganhos significativos aos beneficiários.
“Em relação ao cálculo, a diferença [no aumento do benefício] é muito pequena. O que assusta mais é o tanto de direitos que eles estariam desestabilizando em nome de uma renda básica, e é uma renda mínima, porque não estamos falando de atender às necessidades sociais. Você desmonta direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores em nome de uma universalização que, na prática, não iria acontecer”, analisa.
A conselheira critica o fato de o governo não prever injeção de novas verbas na área e aponta que as articulações em torno da proposta teriam se resumido a um olhar economicista e de linha neoliberal.
“Com esse projeto, você estaria, na verdade, tirando do trabalhador. É a história do cobertor curto: você tira de um pra botar no outro, sob um discurso maquiado. O que acho é que o governo está fazendo muita matemática, e a matemática dele é eleitoral. Esse programa não altera nada [pra melhor] porque, inclusive, pra fazer isso, Bolsonaro teria que enfrentar o Teto dos Gastos”, ressalta Kênia Figueiredo, em referência à Emenda Constitucional 95, que impõe limites rígidos aos investimentos públicos.
Eficiência
Ao cogitar a extinção do seguro-defeso, do Farmácia Popular e do abono, por exemplo, a equipe do governo afirma que eles não seriam direcionados à população mais vulnerável e por isso precisariam de maior eficiência no atendimento.
“Eu confesso que não sei o que eles estão chamando de abono salarial ineficiente, porque nem isso fica claro. Mas o fato é que o seguro-defeso, por exemplo, é muito importante pros pescadores, assim como tem seguro agrícola pras pessoas que produzem [no meio rural]. Pesca também é produção. Além disso, a coisa mais cara que existe pro trabalhador é remédio, e o Farmacia Popular é um programa universal. É claro que todo programa pode ser melhorado, mas o olhar do governo sobre essas políticas me parece algo muito parcial”, avalia a pesquisadora da área de benefícios sociais Ana Lígia Gomes.
“O Farmácia Popular é universal porque o SUS é universal, gostem ou não”, frisa a pesquisadora, que integra a Frente Nacional em Defesa do Sistema Único de Assistência Social (Suas) e da Seguridade Social. O grupo reúne militantes, especialistas, entidades, entre outros atores.
Perspectiva
Gomes destaca ainda o fato de boa parte dos trabalhadores brasileiros dependerem atualmente do auxílio emergencial, por exemplo. Dados oficiais levantados pela página Poder 360 mostram que, em 25 estados brasileiros, o numero de atendidos pelo benefício é atualmente maior que o de trabalhadores com carteira assinada. Há, ao todo, 37,7 milhões de empregos e, paralelamente, 65,4 milhões de pessoas recebendo o auxilio.
Ao fazer uma análise em perspectiva, a pesquisadora observa que os dados sinalizam uma situação de maior precariedade para os trabalhadores. Consequentemente, vislumbram uma crescente demanda por serviços públicos no país a curto e médio prazos, já que a população de mais baixa renda perde poder aquisitivo e passa a demandar mais do Estado em termos de assistência.
“Por isso eu acho delicado esse viés [do Renda Brasil] de ver de onde se tira dinheiro pra criar alguma coisa que o presidente quer. Se a desproteção previdenciária e trabalhista jogaram no mundo da assistência social milhões de trabalhadores e agora está posto que o número de beneficiários supera o dos que têm carteira, ninguém pode achar que uma transferência de renda sozinha e sem estar vinculada às buscas de proteção previdenciária e trabalhista vai funcionar”, afirma.
A pesquisadora analisa que a lógica em que se funda o escopo inicial do programa do governo segue na linha da desproteção do trabalhador.
“Tem um viés muito liberal que entrega dinheiro pras pessoas e a ideia é que elas se virem no mercado. Assistência social tem que ter recurso pra serviços, até pra essas pessoas lidarem com a renda [mínima] da melhor maneira possível e conseguirem retomar a condição de entrar no mercado de trabalho, que está cada dia mais restrito. Eu espero que essa proposta seja mais discutida”.
Edição: Rodrigo Durão Coelho