Em abrigos, casas precárias ou nas ruas, indígenas da etnia Warao que migraram da Venezuela enfrentam uma série de dificuldades cotidianamente em território brasileiro. Convivem com a falta de água potável, comida, atendimento à saúde e medicamentos, além de serem alvo de violências e de xenofobia.
Jesus Desidério Nuñez foi um dos primeiros Warao a chegar à capital do Pará, Belém, no ano de 2017. Junto dos seus parentes dormia nas ruas próximas ao Mercado do Ver-o-Peso.
Ele é da região do Delta do Amacuro, na Venezuela – como a maior parte dos Warao que migraram para o Pará – e percorreu uma longa jornada até chegar em Belém.
A Venezuela enfrenta uma severa crise econômica por conta da baixa do preço do petróleo, além de ser um país que sofre com uma série de embargos econômicos por parte dos Estados Unidos e aliados, desde 2014.
Nesse contexto, uma parcela da população entre indígenas e não indígenas migraram para sobreviver em outros países, incluindo o Brasil.
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Jornada pela sobrevivência
Para chegar à capital do Pará, os Warao percorreram quase 3,6 quilômetros de caminho ora terrestre, ora fluvial.
Sem falar português e cansados depois um caminho tão longo, Jesus, seus sete filhos e esposa conseguiram alugar um quarto em uma pensão localizada próxima do Ver-o-Peso.
No local, conhecido por ser uma zona de prostituição, há uma série de cortiços também frequentados pela população em situação de rua e por usuários de drogas. "Morei naquele local por três meses. Foi um tempo difícil", lembra-se Jesus, que, na época, pagava R$ 20 por dia para cada membro da família.
A fachada do cortiço guarda marcas de um incêndio provocado, em 2018, por usuários de drogas, que viviam em constante conflito com os indígenas.
Atualmente, Jesus e a família moram em um abrigo público, no bairro do Tapanã – o único disponível para os Warao em Belém.
Outros Warao, outro Estado, a mesma história
Segundo a Agência da ONU para refugiados (Acnur), desde 2014, cerca de 4 mil Warao entraram em solo brasileiro. Apesar de o governo federal disponibilizar R$ 20 mil mensais para assistência de cada grupo de 50 migrantes, não há um plano integrado entre União, estados e municípios sobre como e de que forma garantir o direito dessas pessoas.
O local onde Jesus Nuñez se alojou em 2017, na região do Ver-o-peso, é uma espécie de porta de entrada para muitos Warao que chegam a Belém. O indígena Celso Zapata, recém chegado à capital paraense, fez o mesmo trajeto que Jesús junto a mais seis famílias, totalizando 28 pessoas.
O aspecto de abandono da fachada não muda dentro do prédio. Um longo corredor dá acesso a sete quartos sem janela, paredes mofadas, infiltrações e instalações elétricas com fios expostos. O forro, de madeira quebrada, mostra o telhado igualmente precário.
Em uma cidade como Belém do Pará, a ausência de janelas transforma qualquer espaço em uma espécie de estufa. O cenário se agrava quando as famílias inteiras se aglomeram em cômodos de cerca de 10 metros quadrados.
A proprietária cobra R$ 30 por família. R$ 210 cobrados diariamente. São R$ 6.300, se eles completarem um mês no local.
No dia em que a reportagem do Brasil de Fato visitou o local, o irmão de Celso, Evelio Mariano, fazia frango frito para o almoço na cozinha do espaço, o mais amplo e o único com janelas.
O alimento fora comprado com o dinheiro que as mulheres arrecadaram nas ruas. "Estou desempregado, então, ela foi trabalhar, está cansada, por isso, estou fazendo o almoço", respondeu o indígena apontando para a esposa, quando indagado se cozinhava sempre.
Enquanto cuidava do frango, o Warao repetia: "só quero um trabalho, qualquer um".
Uma vida melhor
Celso Zapata veio para Belém, "em busca de uma vida mais digna para seus parentes, sobretudo, as crianças". A migração para o Pará ocorreu depois que ele perdeu o emprego em Manaus, capital do Amazonas, onde trabalhou como auxiliar de serviços gerais. Com a pandemia, não apenas ele, mas outros funcionários foram demitidos.
"Foi quando me vi na rua sem emprego e não tive outra oportunidade. Até tentei outro emprego, bati em portas, mas não consegui. Nem eu, nem meus irmãos", conta Zapata, que migrou para o Pará num grupo de 20 adultos e 8 crianças Warao.
Me vi na rua sem emprego e não tive outra oportunidade.
A antropóloga Marlise Rosa, doutora pelo programa de pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, acompanha a situação de indígenas da etnia Warao no Brasil desde 2017.
Ela afirma que a falta de uma rede de assistência nacional articulada entre União, estados e municípios faz com que o acompanhamento tenha de recomeçar do zero, toda vez que eles mudam de cidade.
"O próprio processo de deslocamento é muito delicado. Na maioria dos casos eles têm o dinheiro para o deslocamento, mas não para a alimentação. Você tem situações de pessoas chegando debilitadas. E o que acontece é que eles chegando nessas cidades – mesmo que elas tenham a recorrência da presença Warao, à exemplo de Belém –, não tem nenhuma equipe, uma instituição que localize essas famílias e que acione uma rede", resume.
Erros recorrentes
Atualmente, há registros de população Warao nas cinco regiões do Brasil, mas a maioria se concentra no Norte em cidades como Pacaraima e Boa Vista, em Roraima; Manaus, no Amazonas; e em onze cidades do Pará.
"A gente precisa entender, aceitar e se preparar para o fato de que a presença Warao no Brasil terá continuidade, por isso precisamos pensar em respostas efetivas, que, obviamente, devem considerar o direito de consulta aos indígenas", argumenta a antropóloga.
Em outubro de 2019, o Ministério Público Federal; do Trabalho; a Defensoria Pública da União; e a Defensoria Pública do estado do Pará firmaram um acordo judicial intitulado “Termo de Concretização de Direitos”, com o objetivo de implementar medidas para abrigamento e assistência humanitária aos warao em Belém.
Passados dez meses do acordo e três anos desde o primeiro contato com a etnia na capital do Pará, o procurador da República, Felipe de Moura Palha e Silva, afirma que ainda há uma sucessão de erros na política humanitária a essas pessoas.
Se a gente não tiver o direcionamento da União nisso, a gente vai continuar patinando.
"Os erros e a aversão inicial se repetirá em cada lugar em que eles chegam. Se você conversar com autoridades do Nordeste você vai ver os mesmos erros que foram cometidos aqui. Ou seja, o estranhamento e o racismo institucional presente na chegada dos Warao no Norte do país há três, quatro anos está sendo repetido com a interiorização voluntária deles", explica.
"A gente precisa de intercâmbio e que as autoridades conversem. Se a gente não tiver o direcionamento da União nisso, a gente vai continuar patinando. É preciso que haja um comitê vinculado ao Ministério da Cidadania e à Casa Civil da Presidência. A gente já fez uma recomendação nesse sentido só que a União ainda está em déficit com isso", completa o procurador.
O Ministério da Cidadania disse, em nota, que aos Warao têm sido ofertado acolhimento com fornecimento de alimentação, kits higiene pessoal, material de limpeza, serviços básicos de saúde e acesso a outras políticas públicas, como as de saúde e de segurança pública e que foram também disponibilizados alimentos via Restaurante Popular, bem como fornecimento de matéria-prima para artesanato.
Responsável pela assistência humanitária aos Warao no Pará, a Fundação João Paulo XXIII (Funpapa), informou que "enviou diversos projetos de acolhimento, seguindo os parâmetros do PNAs [Plano Nacional de Assistência Social], no entanto, o Ministério da Cidadania realizou diversos cortes". "O primeiro projeto enviado ao MC, utilizando os parâmetros da PNAS era no valor de R$ 6 milhões e foi repassado R$ 1,2 milhão", alegou a fundação.
Sobre isso o Ministério da Cidadania disse que "segue parâmetros para análise dos planos de trabalho apresentados pelos Estados. Entre esses considera-se, por exemplo, a quantidade de migrantes e refugiados identificados no território, bem como se as ações apresentadas no plano são efetivamente aderentes à política pública de Assistência Social".
Edição: Rodrigo Chagas