Apesar de a Mata Atlântica abranger cerca de 15% do território nacional e percorrer 17 estados brasileiros, hoje restam apenas 12,4% da floresta que existia originalmente. Segundo dados da Fundação SOS Mata Atlântica, a destruição se acentuou nos últimos anos. Entre 2018 e 2019 por exemplo, mais de 70% do desmatamento do bioma foram centralizados em cem municípios.
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Em parceria com o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), a organização lançou recentemente um estudo sobre a conservação, uso e ocupação do solo do bioma em 117 municípios.
A iniciativa tem o objetivo de trazer um panorama detalhado sobre a situação atual da região e auxiliar gestores públicos na tomada de decisão de políticas públicas ambientais visando a urgente proteção do meio ambiente.
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O documento revelou que grandes propriedades de terra são as que apresentam maiores áreas de déficit ambiental. Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, Rafael Bitante Fernandes, gerente de Restauração Florestal da Fundação SOS Mata Atlântica, falou sobre alguns dos fatores responsáveis pela destruição.
“O que vem forçando o desmatamento são múltiplos fatores, depende muito da região onde está ocorrendo. A expansão do agronegócio é um deles e mais recentemente a exploração dos municípios, da área onde a população vem vivendo. O crescimento da selva de pedra vem pressionando muito o desmatamento na Mata Atlântica”, comentou.
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Segundo o ambientalista, os gestores públicos devem pensar e executar um planejamento territorial que considere todo o ecossistema e não apenas as necessidades de expansão dos municípios. Isso porque, conforme o bioma desaparece, as consequências são sentidas diretamente nas cidades. Principalmente no que tange a questão hídrica e a qualidade do ar.
Fernandes destaca a importância da restauração das florestas, principalmente das Áreas de Preservação Permanente. Mas, ainda que tais ações devam estar entre as prioridades dos gestores municipais e dos proprietários particulares, devem ser adotadas em última medida.
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“Não conseguimos replicar todos os benefícios que aquela área natural vai promover em comparação com uma área restaurada. É fundamental observarmos o pouco que está sobrando, são lugares sagrados do ponto de vista ecossistêmico. A restauração florestal não pode ser instrumento de argumentação para destruir ainda mais a natureza. Conservar essas áreas é fundamental para o bem-estar da humanidade”, defende.
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Confira a entrevista na íntegra
Brasil de Fato: Quais são os principais destaques apresentados pelo estudo “Resumo Fundiário, Uso do Solo e de Remanescentes Florestais de 117 Municípios da Mata Atlântica”, produzido pela SOS Mata Atlântica e pelo Imaflora?
Rafael Bitante Fernantes: Esse estudo teve como objetivo voltar o olhar para esses municípios e conhecer as paisagens onde estão inseridos. A Mata Atlântica tem muito mais municípios. Ela percorre 17 estados, tem pouco mais de 3.600 municípios. E selecionamos esses 117 por meio de uma base 'multicritérios'.
Esses critérios são bem técnicos, não vou me aprofundar neles, mas é bem interessante no que acabamos encontrando nesses municípios. Um dos critérios era justamente o desmatamento, os municípios que mais desmataram de 2008 até 2017. E porque adotamos esse critério?
A SOS Mata Atlântica trabalha com Atlas de Remanescentes da Mata Atlântica e desde 1990 lançamos esses dados e recentemente temos lançado anualmente, onde vemos os impactos das ações humanas em cima das florestas. O desflorestamento que vem ocorrendo.
A Mata Atlântica é um bioma que vem sofrendo muito com isso. Só temos 12,4% de remanescentes originais desse bioma. É um dos biomas mais ameaçados do mundo. Então é uma oportunidade para gestores desses municípios, peneiramos e chegamos a esses mas todo e qualquer município pode tomar isso como referência.
Quais setores podem ser apontados como responsáveis por esse desmatamento, pela destruição que cresceu nos últimos anos?
O que vem forçando o desmatamento são múltiplos fatores, depende muito da região onde está ocorrendo. A expansão do agronegócio é um deles e mais recentemente a exploração dos municípios, da área onde a população vem vivendo. O crescimento da selva de pedra que vem pressionando muito o desmatamento na Mata Atlântica.
São desmatamento pequenos, em especial a expansão dos municípios, no crescimento das cidades. Mas que se formos somando se tornam super significativos porque estão impactando áreas muito importantes e a Mata Atlântica tem pouquíssimos remanescentes.
O estudo é uma oportunidade de entendermos esse cenário e colocar em prática medidas importantes de conservação desse bioma. A Mata Atlântica é o único bioma no país protegido por uma lei específica. Dentro dessa lei tem um instrumento interessante que são os Planos Municipais de Mata Atlântica, como se fosse o Plano Diretor. Porém o Plano Diretor fica muito restrito à área urbana dos municípios.
Esse Plano diz sobre a expansão da área do município todo, considerando esses remanescentes que existem no município. Há uma série de medidas que podem ser tomadas. Áreas que podem ser conservar e até mesmo ampliadas.
Em áreas onde existe um déficit enorme de vegetação, é possível fazer um planejamento estratégico de recuperação dessas áreas. Existe um Novo Código Florestal, aprovado em 2012, qualifica as propriedades rurais e posses rurais nos municípios em três classes: A primeira, a média e a grande. O estudo apontou que a grande concentração de déficit da Mata Atlântica, onde áreas precisam ser mais recuperadas, se concentram nas grandes propriedades. E elas somam só 3% de tudo que foi analisado do número de propriedades, mas cobrem uma área de quase 50% de tudo que foi observado.
Se concentrarmos esforços nessas áreas, temos que nos relacionar com poucas pessoas, poucos proprietários, e conseguimos recuperar uma área muito grande de vegetação. O estudo induz a isso, trabalhar com as grandes propriedades.
Isso demonstra então que os maiores donos de terra da região não estão cumprindo com a proteção das áreas?
Exatamente. Os proprietários de terras tem a responsabilidade de recuperar as áreas. Basicamente são áreas de preservação permamente, geralmente ligadas a questão hídrica, corpos hídricos nascentes, riachos e rios. Existem algumas outras qualificações de áreas de preservação permanente, mas estão sempre ligados a corpos hídricos.
Isso impacta também na questão urbana. Parece distante de quem mora na cidade, mas muito pelo contrário. A água que a gente bebe não é só abrir a torneira, não surge ali, tem uma origem geralmente distante. Proteger as áreas de Preservação Permanente é essencial para a qualidade da água que temos. Proteger nossos corpos d'água é evitar algo que vimos em 2014, uma fortíssima crise hídrica. Essa pode ser uma das estratégias que os gestores podem tomar.
Vamos atuar na proteção dessas áreas, recuperar essas áreas onde existe o déficit e que são protegidas por lei. Os instrumentos para a proteção dessas áreas são imensos. Podem tomar uma série de estratégias formando parcerias, formalizando parcerias, atuando na cadeia produtiva daquilo que está relacionado a área produtiva. Uma série de estratégias que podem ser estabelecidas.
Então, o planejamento territorial deve levar em conta a unidade do ecossistema, certo? Não pensar nas áreas verdes ou urbanas separadamente.
Essa coisa de dividir em caixinhas é coisa de ser humano. Na natureza isso não ocorre, está tudo correlacionado. Muitas vezes uma ação que ocorre em locais distantes impacta o bem-estar, a qualidade de vida onde as pessoas moram. É importante todos estarem ciente disso e das ações importantes para fazermos.
E destacando aqui. Uma coisa fica clara e evidente nesse histórico que a Fundação SOS Mata Atlântica vem mostrando, é a suma importância de proteger esses ambientes. Existe a possibilidade de recuperação, estamos no processo de restauração de ambientes naturais, mas isso deve ser uma última medida.
Isso não significa que "ah, posso destruir aqui porque vou recuperar ali". A ciência ainda não chegou lá, não conseguimos replicar todos os benefícios que aquela área natural vai promover em comparação com uma área restaurada. É fundamental observarmos o pouco que está sobrando, são lugares sagrados do ponto de vista ecossistêmico. Promovem qualidade de vida, água, qualidade de ar. Atende as questões das mudanças climáticas que são muito evidentes. Esse período está sendo um período que marca os extremos climáticos, cada vez mais frequentes. Vemos fortíssimas secas em algumas regiões que não sofriam com essas secas tão intensas e outras regiões que estão sofrendo com alagamentos, passando por períodos muito chuvosos.
Isso vem se tornando cada vez mais frequente. Talvez um novo normal. E pra esse enfrentamento é fundamental proteger essas áreas e recuperar as que possuem o déficit de vegetação nativa.
Diante do avanço do agronegócio e do crescimento das cidades, quais outras práticas podem ser incentivadas? A atuação da agricultura familiar, por exemplo?
Acho que até a agricultura pode ser vista de uma forma diferente. Muitas vezes enxergam essas áreas conservadas como empecilhos mas uma grande parte da agricultura que já mudou e trocou essa lente. Na verdade, essa área que preservamos tem uma função essencial para a agricultura. Podem ser refúgio de polinizadores, algo fundamental para muitas culturas agrícolas. Também estarão ali exercendo o papel de conservação do solo, afetando diretamente o sistema hidrológico de chuvas. Onde se tem floresta, promove-se essa questão macro do ponto de vista de chuvas e tudo isso que está no entorno da floresta.
Então cada vez mais os produtores vem mudando essa visão. Temos um exemplo muito interessante para isso: A SOS trabalha desde o ano de 2000 com restauração florestal. E onde praticamos essa restauração florestal? Em áreas privadas, de proprietários geralmente agrícolas, diria 98% são voltados a essas propriedades. E temos quase três mil projetos realizados e digo que não há arrependimento de nenhum proprietário que fez parceria conosco para recuperar as áreas.
Inclusive o mercado passa a olhar os proprietários de forma diferente. Se está com o compliance ambiental em dia, tem essa preocupação, isso acaba afetando inclusive como ele negocia o produto dele na propriedade.
Mas, retomando o que já apontou, existe um limite para essa restauração. A prioridade ainda que nesse cenário deve ser de fato a preservação?
Perfeito. A restauração florestal não pode ser instrumento de argumentação para fragmentar e destruir ainda mais a natureza. Conservar essas áreas é fundamental para o bem-estar da humanidade.
Estamos em um ano de eleição, não tem como desconsiderar esse fator mesmo em meio à pandemia. Por que essa questões trazidas pelo estudo devem estar no norte dos candidatos e possíveis eleitos?
É fundamental que esteja no caderno dos candidatos. Não conseguimos desvencilhar a questão de bem-estar, qualidade de vida, sem atrelá-las a essas questões ambientais e até mesmo econômicas. Como acabei de citar, há um impacto positivo econômico que as áreas podem promover.
De toda a Mata Atlântica original, restam apenas 12,4%. Tendo essa realidade e o avanço do agronegócio em todo país, o desmatamento não só nessa região mas de outras áreas como o Cerrado, na Amazônia, qual a perspectiva para esse bioma?
Nosso trabalho é fundamentalmente isso. Mostrar para a sociedade o impacto que as ações de desmatamento podem estar promovendo na vida delas e sensibilizando essas pessoas para que adotem a Mata Atlântica como uma questão de qualidade de vida. Estamos nesse exercício constante. O Atlas é lançado anualmente e temos esse trabalho muito grande de restauração florestal dentro da instituição.
Somando os programas que a gente tem, são mais de 40 milhões de mudas já plantadas. É uma área super significativa. Cerca de 23 mil hectares de áreas em processo de recuperação ou recuperadas. E ainda que com todos esses entraves, não podemos abaixar a cabeça nesse momento.
O momento é justamente de unir as forças, mostrar a importância disso e fazer um levante em prol da conservação da natureza e de uma vida melhor.
Edição: Douglas Matos