No primeiro semestre de 2020, 231 pessoas foram resgatadas no Brasil em situação análoga à escravidão, em 45 ações coordenadas pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério da Economia, que incorporou as atribuições do extinto Ministério do Trabalho.
O número corresponde a aproximadamente 20% do total de 1.133 trabalhadores resgatados em 2019, segundo dados do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, do Portal da Inspeção do Trabalho.
Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato alertam que a falta de fiscalização e o acirramento das desigualdades durante a pandemia vem tornando as pessoas mais suscetíveis ao aliciamento por parte de empregadores.
Os trabalhadores estão durante a pandemia muito mais suscetíveis a serem explorados.
Nas ruas de Timbiras, no Maranhão, foi por meio de anúncios de carros de som que 46 pessoas decidiram cruzar o país em plena pandemia para trabalhar por três meses no plantio da cebola. O destino, a fria cidade de Ituporanga, em Santa Catarina, estava a mais de 3 mil quilômetros de distância.
No início de agosto, porém, as contratações tiveram suas violações reveladas. Um total de 14 maranhenses do grupo foram encontrados em situação análoga à escravidão pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), pela Defensoria Pública da União (DPU) e pela Polícia Federal, após denúncia da meio da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
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Sem equipamentos de proteção individual (EPIs), eles trabalhavam mais de 12 horas por dia na lavoura, dormiam em alojamentos precários e ainda não haviam recebido nenhuma remuneração por parte do fazendeiro. Além disso, segundo o MPT, os trabalhadores assumiram dívidas com o escravagista para terem acesso à alimentação.
"O produtor, segundo relato dos trabalhadores, dizia: 'Eu quero meus 10 trabalhadores! Cadê os cinco que eu comprei?´Evidentemente, retroagimos aqui a 1.700, 1.800, onde comprava-se os trabalhadores escravos vindos da África”, afirma, o procurador do trabalho Acir Alfredo Hack, que está a frente da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do MPT, em Santa Catarina.
O procurador, que esteve presente na primeira das fiscalizações em Ituporanga, considera que os avanços nesta região catarinense, em relação a Termos de Ajuste de Conduta, audiência públicas e reuniões com produtores, retroagiram nos últimos meses.
Evidentemente, retroagimos aqui a 1.700, 1.800, onde comprava-se os trabalhadores escravos vindos da África
"Eles (os trabalhadores) estão durante a pandemia muito mais suscetíveis a serem explorados. Nós passamos nesses últimos anos por uma flexibilização da legislação trabalhista, passando a ideia aos produtores de que não haveria a mão pesada do estado”, considera.
No Brasil, a escravidão contemporânea predomina nas cadeias produtivas de commodities agrícolas, nas quais é comum o domínio de empresas multinacionais nas etapas mais lucrativas da produção – como é o caso da suíça Nestlé, que lidera a produção mundial do chocolate.
No estado do Pará, que tem casos registrados desde 1995, monoculturas de cacau, madeira e óleo de palma são marcadas por ilegalidades. Durante o primeiro semestre de 2020, no entanto, o MPT anunciou que os flagrantes de trabalho análogo à escravidão caíram 55% no estado, em relação a 2019.
"O Brasil é gerido por uma estrutura de poder neofascista que deixou muito elástica a capacidade de tolerância para esse tipo de situação, e as empresas se beneficiam dessa questão porque elas operam em um nível de depredação muito grande. Muitas vezes empresas sediadas na Europa, nos Estados Unidos, ou em países que já erradicaram o trabalho escravo e o trabalho infantil, mas que é permissivo fora de suas fronteiras. E o Brasil é um terreno fértil para isso, principalmente no momento que estamos vivendo agora", afirma Marques Casara, jornalista que há mais de 20 anos investiga violações nas cadeias produtivas no Brasil.
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Números do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, revelaram que o país chegou a marca de 55 004 trabalhadores resgatados da escravidão desde 1995, sendo 13.173 no Pará. Das dez cidades com mais autos de infração, sete estão no estado.
Para Casara, o baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e a dificuldade de logística para mapear as zonas de cultivo em regiões remotas – que elevam o custo das fiscalizações – são fatores que explicam o número elevado de casos no estado do Norte.
“É uma cadeia complexa das commodities agrícolas, difícil de mapear muitas vezes, e que encontra no estado do Pará um lugar onde a vida de um trabalhador vale muito pouco”, afirma Casara, que também é diretor-executivo da Papel Social, agência de pesquisa com foco na documentação das condições de trabalho e na erradicação de violações nas cadeias produtivas.
O especialista considera, no entanto, que as empresas que exploram mão de obra escrava se beneficiam dessas características para lucrar.
“Em um mundo interconectado, onde as empresas operam com alto índice de tecnologia, acompanham a produção em tempo real, uma empresa dizer que não sabe se existe trabalho infantil na cadeia produtiva é uma falácia", destaca.
Fiscalização enfraquecida
De acordo com o artigo 149 do código penal, quatro elementos podem definir a escravidão contemporânea: condições degradantes, as jornada exaustivas, o trabalho forçado e a servidão por dívida. A organização internacional do trabalho estima a existência de mais de 40 milhões de escravizados no planeta.
Além da pandemia, outro agravante para a redução das fiscalizações é o sucateamento de estruturas responsáveis pelas ações, como a Divisão para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), onde atuam os auditores fiscais do trabalho. Na fiscalização em Ituporanga, os profissionais estiveram presentes em apenas uma das três operações.
Um balanço enviado à reportagem pela Inspeção Regional do Trabalho em Santa Catarina mostra uma redução de quase 90% das operações do órgão em relação a 2018. Até o momento, apenas uma operação no estado contou com a participação de auditores. Em 2018, foram oito.
A Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) emitiu, no fim de junho, uma nota alertando para o desmonte das políticas de combate, que resulta em um déficit de mais de 40% de trabalhadores. Atualmente, a Inspeção do Trabalho no Brasil conta com 2.091 trabalhadores, do total de 3.644 cargos, um déficit de 1,5 mil de profissionais.
Para Vera Jatobá, diretora do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), o fim do ministério do Trabalho é outro fator que deixou a situação ainda mais sensível.
"Para quem tinha um ministro próximo e uma secretaria que dialogava diretamente com a cabeça do poder, passou a ter várias capas de interlocução que eu não posso nem dizer que é diálogo, é uma tentativa. Tudo isso reflete em orçamento, estrutura, e em concursos. Não existe vento soprando favorável para que se faça concursos", considera a auditora fiscal.
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O sucateamento da estrutura no país descumpre a convenção nº 81 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil em 1957. Segundo a Conatrae, o baixo número de profissionais compromete a erradicação do trabalho infantil e da escravidão contemporânea.
Apesar da lei complementar nº 173, de 27 de maio de 2020, estabelecer a proibição de concursos públicos até 31 de dezembro de 2021, uma outra lei, a 173/2020, afirma que estão permitidos concursos públicos para vacâncias de cargos efetivos, como é o caso da estrutura.
Questionado pela reportagem, a Chefia da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) não soube informar uma previsão para um novo concurso. O último concurso foi realizado em 2013, ainda na gestão da presidenta Dilma Rousseff (PT).
Não existe vento soprando favorável para que se faça concursos.
Violência
A segurança dos auditores, na opinião da sindicalista, também é uma preocupação. Apenas, em 2019 foram seis os casos de violência reportados pelo Sinait. O mais recente foi em São Paulo, no dia 23 de julho de 2020.
"Os órgãos de fiscalização tem sido muito atacados. O pessoal está tendo liberdade para se armar. As fiscalizações envolvem um risco altíssimo. porque as pessoas além de estarem armadas, tem também uma convicção por parte de alguns empregadores de que ele está falando pelo presidente. ´Você não pode fazer isso, se não eu vou falar para o presidente´. Isso já aconteceu recentemente", revela.
Desde a ocorrência da "chacina de Unaí", em Minas Gerais, no ano de 2004, quando quatro auditores fiscais e um dos motoristas do extinto Ministério do Trabalho foram assassinados por fazendeiros da região, a entidade pressiona pela adoção de um protocolo de segurança para os servidores.
Em 2019, o protocolo foi apresentado à gestão atual da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, com sugestões dos chefes de fiscalização de todo o país. Até agora, no entanto, não houveram avanços.
"Em um época dessas, estado mínimo é o pior veneno para a sociedade, porque é o Estado que tem que acolher. O Estado que retirou direitos do trabalho, o Estado que retirou direitos previdenciários, o Estado que fez tantas reformas, que botou quatro ministérios em um só, está absolutamente despreparado para uma epidemia destas", conclui a diretora.
Edição: Rodrigo Chagas