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Quem cobiça o café Guaií, do MST?

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O manejo sustentável da terra, seu cuidado e sua recuperação representam uma nova maneira de lidar com a terra e uma nova relação com alimentos. - Divulgação / Armazém do Campo
O café orgânico Guaií é produzido no Quilombo Campo do Meio

O café é um dos produtos mais valiosos do mundo. Também é complexo, sujeito a variações de safra, de preços e de companhias internacionais. Especula-se muito com o café e há muito tempo. É um produto intimamente ligado à história do Brasil, em especial no século 19, com relações de trabalho que envolveram uma extensa rede de tráfico de escravizados e exploração exaustiva do trabalho dos imigrantes nas lavouras do oeste paulista na virada do século 20.

Mas a história do café no Brasil não parou na expansão cafeeira do oeste paulista e, ao longo do último século, se espalhou por muitas regiões. Hoje, pelo manejo da terra, está presente do sul ao norte do país. Mas uma região em especial planta alguns dos melhores grãos do planeta, exportando-os com um excepcional selo de qualidade: o sul de Minas.

Desde o começo de agosto, terras do Quilombo Campo do Meio, que justamente ficam no sul de Minas, sofreram uma tentativa de desocupação pelo governo estadual mineiro, numa ordem partida diretamente do governador Romeu Zema. Uma escola popular foi destruída, e algumas famílias foram desalojadas. O quilombo sofreu inúmeras intimidações pela polícia, que chegou paramentada para a guerra, com 250 homens, incluindo o batalhão de choque com caminhão blindado (tipo brucutu), caminhões do corpo de bombeiro e até helicóptero, que fazia voos rasantes sobre os ocupantes do Quilombo.

Como em inúmeras ocupações ligadas ao MST, o quilombo planta uma enorme variedade de produtos orgânicos, entre eles feijão, abóbora e hortaliças. Mas não é isso que atrai a cobiça por essas terras: o que explica a opção pela violência armada contra os camponeses é o sucesso do trabalho com um dos produtos agrícolas mais valorizados do país: o café arábica.

O mundo do café tem uma grande divisão, em duas principais variedades produzidas para o grande mercado: o café robusta e o café arábica.

O robusta é o fruto de uma árvore mais resistente às pragas e que produz um café com gosto mais ácido. O arábica é, por sua vez, um café mais difícil de ser cultivado, mas, por outro lado, é muito mais saboroso: seu grão é mais suave, mais aromático, mais denso. Essas características, e outras que os especialistas descrevem com palavras rebuscadas, fazem com que esses grãos valham muito mais, sobretudo no mercado internacional.

A região do sul de Minas é conhecida por plantar grãos arábica. E o Quilombo do Campo do Meio é uma das áreas mais bem sucedidas nesse cultivo. O café Guaií, marca que nasceu da produção do Quilombo, é resultado de grãos 100% arábica, sem nenhum robusta ou qualquer outro ingrediente. Guaií significa semente boa, em guarani.

A terra em disputa foi uma antiga fazenda e usina de cana de açúcar chamada Ariadnópolis, perto de Alfenas. A história da usina se confunde com a história da cidade de Campo do Meio. Em 1908, o português Manoel Alves de Azevedo fundou a usina e deu origem a um pequeno povoamento de trabalhadores no local. Não era uma usina de grande porte, mas cresceu com as décadas.

Na década de 1970, a ditadura militar criou uma série de incentivos para grandes usineiros e plantadores de cana-de-açúcar. O programa chamava-se Pró-Álcool, e do lado dos usineiros era capitaneado pelo empresário Jorge Wolney Atalla, presidente da Coopersucar, que se tornou uma das maiores exportadoras brasileiras de açúcar e etanol no mercado mundial. As relações entre Atalla e a ditadura eram muito próximas, a ponto de o Grupo Atalla ser um dos maiores financiadores da Operação Bandeirantes, a Oban, estrutura de repressão semi-clandestina que prendia ilegalmente e torturava opositores do regime.

A usina de Ariadnópolis, chamada de Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (CAPIA), cresceu enquanto o governo liberava grandes empréstimos a empresários ligados à produção de etanol e açúcar. Quando o dinheiro secou em meados dos anos 1980, a usina entrou num longo processo de decadência econômica, aliada à má gestão, que culminou na sua falência em 1993. O processo todo foi concluído em 1996. Os trabalhadores da usina não receberam seus direitos trabalhistas. No processo, as terras foram penhoradas para a União. As dívidas somavam mais de 300 milhões de reais.

Logo depois da falência, há mais de duas décadas, os trabalhadores que não receberam seus direitos permaneceram no local e começaram a produzir alimentos para se autossustentar, numa lógica da subsistência. A esse grupo inicial se somaram migrantes do vale do Jequitinhonha e muitos camponeses sem terras para plantar, que foram progressivamente transformando a terra abandonada numa área produtiva, capaz de alimentar muita gente. Assim nasceu o Quilombo Campo do Meio, com quase 4 mil hectares de terra, e que possui 11 acampamentos organizados na área.

O trabalho cresceu e se sofisticou, com a produção do grão arábica de forma orgânica e sustentável, combinado com lavouras de alimentos que evitam pragas e recuperam a terra, sem a contaminação com agrotóxicos: hortaliças, legumes, amendoim, feijão etc. No ano de 2018, as famílias acampadas alcançaram uma produção de cerca de 8.500 sacas de café orgânico. Além de produzir alimentos, o trabalho agroecológico do quilombo fez reviver as nascentes da região. Ou seja, além de café e comida, o quilombo produz água limpa e saudável.

Em 2015, o Decreto Estadual n.º 365/2015, desapropriou 3.195 hectares da falida Usina Ariadnópolis. O documento tinha como proposta o pagamento de R$ 66 milhões aos empresários. Chegou-se até mesmo a firmar-se um acordo de pagamento. Apoiados pela bancada ruralista do Congresso e latifundiários da região, os acionistas da empresa não aceitaram o acordo e retornaram o caso à justiça de Minas pedindo a anulação do decreto, que já havia sido validado por dois julgamentos.

E aqui voltamos a falar de café. Enquanto o acampamento crescia, depois da falência nos anos 1990, a região tornou-se uma das mais importantes áreas de plantio de café do país. Ali, no sul de Minas, estava uma parte das fazendas do então maior produtor de café do mundo, João Faria da Silva. Uma de suas fazendas, Campo Verde, com 1.056 hectares, é vizinha das terras hoje ocupadas pelas famílias do Quilombo Campo Grande. Com a fazenda da usina sendo recuperada pelos agricultores do acampamento e o café Guaií ganhando reputação internacional, João voltou seus olhos e seus negócios para área.

Em 2011, a massa falida da CAPIA entrou com uma ação de reintegração de posse. Cerca de 16 anos depois da falência, o plano de recuperação encabeçado por um dos herdeiros, Jovane de Souza Moreira, possuía uma carta na manga, escondida entre várias cláusulas. A CAPIA havia feito um acordo com a Jodil Agropecuária e Participações Ltda., empresa de João Faria da Silva.

Pelo acordo, 3.195 hectares da Fazenda Ariadnópolis seriam arrendadas para a Jodil Agropecuária e Participações Ltda., de João Faria da Silva, para plantar café – ou, para ser mais exata, incorporar os pés de café Guaií às suas próprias plantações. Era um plano de negócios perfeito: valiosos pés de café arábicas, já grandes e bem tratados, sustentáveis, seriam incorporados aos inúmeros cafés das mais de 20 empresas de João e à vizinha fazenda Campo Verde. João Faria ganharia pés de café já produtivos quase de graça e ainda eliminaria um concorrente do mercado. Esse contrato, firmado em 2016, valeria 7 anos. O relógio do despejo então começou a contar.

Entre as inúmeras empresas de João Faria está a Terra Forte Importação e Exportação, que negocia grãos de café com gigantes do mercado internacional, como a Nestlé e a Jacobs Douwe Egberts, que são donas de marcas que costumamos usar no cotidiano: Pilão, Café do Ponto, Cacique, Café Pelé e Damasco. Faria tem outros negócios, sendo proprietário da Campneus, maior revendedora brasileira de pneus Pirelli. Em 2008, a companhia de João Faria detinha 6,5% de toda exportação de café brasileiro. Tinha 18 milhões de pés de café. O site De Olho nos Ruralistas fez uma excelente matéria sobre o assunto em 2018.

A vida econômica do grupo de João Faria entrou em decadência nos últimos anos. Em janeiro de 2018, ele foi citado na Operação Rosa dos Ventos da Polícia Federal, que investigava um enorme esquema de lavagem de dinheiro e sonegação fiscal em Campinas, onde mora o empresário, assim como um de seus sócios, Miceno Rossi Neto. 

Em abril de 2019, a empresa Terra Forte entrou com processo de recuperação judicial. Suas dívidas ultrapassam  R$ 1 bilhão. Os principais credores são o Banco do Brasil, o Bradesco e o Banco Cargill. O aumento do dólar frente ao real e, nos últimos anos, a queda do preço do café no mercado fizeram com que a dívida do empresário subisse de maneira praticamente incontrolável.

Aliado a isso, uma série de péssimas decisões administrativas e de gestão tornaram o negócio praticamente inviável. João Faria, na época, apostava num preço de saca de café de R$ 550, mas em 2019 ela passou a valer apenas R$ 350. Nos últimos tempos, o valor da saca de café arábica, no entanto, se recuperou e valia, em 15 de agosto de 2020, R$ 587. A retomada do preço do café arábica ampliou, consequentemente, o valor dos pés de café do Quilombo Campo do Meio. Mais um incentivo para que o despejo se realizasse logo – isso somado à pandemia criou as condições ideais para que o Quilombo fosse atacado pelas forças policiais.

Cuidando do caso há muitos anos está o juiz Walter Zwicker Esbaille Junior, da Vara Agrária de Minas Gerais. No dia 7 de novembro de 2018, o juiz proibiu a entrada dos sem-terra na audiência de conciliação, chamando a tropa de choque para reforçar a segurança. Sem dar chance pra contestação, rapidamente, o juiz deu ganho de causa para João Faria da Silva. Logo depois, a decisão de Esbaille foi suspensa pelo desembargador Marcos Henrique Caldeira Brant, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).

Muitas liminares foram e vieram numa guerra burocrática e jurídica que durou anos e culminou na decisão, agora em agosto, de desapropriar o quilombo no meio da pandemia. O juiz também está envolvido em outro processo controverso de reintegração de posse no vale de Jequitinhonha, o acampamento Terra Prometida. Nesse caso, há 18 anos, ocorreu um massacre contra os agricultores que ocupavam uma terra grilada do Estado.

Na última semana, depois de um conflito em que os integrantes do Quilombo Campo do Meio foram ameaçados, tiveram sua escola derrubada na frente das crianças, juntamente com algumas casas e sofreram ameaças de todos os tipos, a sociedade se mobilizou e o governador Romeu Zema (do Novo) retirou a polícia do local. Vitória, por enquanto, dos bravos e dedicados camponeses.

O manejo sustentável da terra, seu cuidado e sua recuperação representam uma nova maneira de lidar com a terra e uma nova relação com alimentos. Plantar, colher e produzir um café da qualidade do Guaií é um feito, ainda mais sofrendo agressões de todos os tipos. Numa área em que a monocultura é a regra, a experiência do quilombo mostra não apenas a capacidade de produzir dos assentamentos, mas também aponta para uma forma muito mais inteligente e socialmente justa de maneja a terra.

Cada família cultiva 20 hectares de terra, junto com o arroz, o feijão, o milho, a banana, a adubação verde, as árvores frutíferas e as nativas. As lavouras são orgânicas e rompem com o uso de adubos de síntese química. Romper com o ciclo nocivo de adubos sintéticos e monoculturas não é fácil e incomoda muita gente. Mas o Guaií é de todos nós. E é supercafé. Que tenha uma vida longa e frutífera.

Esse é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Após a publicação da coluna, a JDE nos enviou o seguinte comunicado:

“A JACOBS DOUWE EGBERTS (JDE) tem ciência do fato ocorrido no Quilombo Campo Grande, no município de Campo do Meio (MG). Como esclarecido anteriormente, em 2018, a JDE reforça que não adquire cafés da propriedade do Sr. João Faria da Silva, a Terra Forte. A empresa mantém um rigoroso Código de Conduta do Fornecedor que exige o cumprimento de uma série de padrões corporativos, embasados na legislação vigente no país e no compromisso ético e social.”

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho