Um caso de racismo entre adolescentes da mesma escola em São Paulo, que descambou para ameaças feitas online, levanta a questão sobre qual a responsabilidade que cabe às instituições de ensino para lidar com o tema.
O caso
O diálogo sempre deu o tom da relação entre o adolescente Eduardo*, de 13 anos, e o pai, o professor universitário Jesus Gomes, . Na noite de um domingo, no dia 14 de junho, não foi diferente: Gomes percebeu que o filho estava cabisbaixo e calado dentro do quarto, e “como ele sempre conversa muito comigo, insisti perguntando o que estava acontecendo. Aí ele me falou que aconteceu algo estranho”. Em uma conversa de WhatsApp, outro garoto da mesma idade e da mesma escola, o Colégio Boni Consilii, em São Paulo, disse a Eduardo que “preto não presta”.
Atônito pelo comentário racista, Eduardo ainda questionou o que o colega havia dito. Em resposta, o agressor disse novamente “preto não presta”. No dia seguinte, no dia 15 de junho, Gomes foi até o 77º Distrito Policial, em Santa Cecília, no Centro de São Paulo, e registrou o Boletim de Ocorrência. Segundo o pai da vítima, o B.O. foi despachado para a 2ª Vara da Infância e Juventude. No dia 26 de junho, o Ministério Público acolheu a ocorrência e pediu pela instauração de investigação, aceita pela Justiça. Até o momento, a audiência não ocorreu devido à pandemia de covid-19.
Mas não parou por aí. Tempos depois do comentário racista, veio uma ameaça. A vítima postou no status do WhatsApp uma frase na qual dizia que “o povo fica dando moral para moleque racista que só quer mostrar o dinheiro que tem”. Em resposta, o agressor afirmou: “Vai calar a boca ou vou ter que mandar assaltar sua casa inteira?”.
Aspecto legal
Segundo Ariel de Castro, advogado especialista em direitos humanos e conselheiro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE), dois crimes foram cometidos. O primeiro de injúria racial, de acordo com o artigo 140º do Código Penal, e o segundo de ameaça, conforme o artigo 147º da mesma legislação. Como se trata de um adolescente, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, para infrações penais, punições como advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, entre outros.
Nesses casos, não se costuma aplicar a privação de liberdade, segundo o advogado, mas reparação de dano, prestação de serviço à comunidade ou liberdade assistida. De qualquer maneira,“é importante que o agressor não fique impune, que ele tenha uma medida socioeducativa até para ele entender o dano que ele causou à vítima”, afirma Castro.
Posicionamento do Colégio Boni Consilii
A aplicação da punição, no entanto, não é o que mais preocupa Jesus Gomes, apesar de considerá-la importante. Afinal, “é uma forma de aprendizado a família ser acionada, refletir sobre a maneira como ela discute racismo com seus filhos”.
O que mais aflige o pai da vítima é o posicionamento da escola de se eximir do caso, defende Gomes. Ele comunicou o Colégio Boni Consilii sobre o ocorrido, solicitou uma mediação entre as famílias envolvidas e até mesmo ofereceu ajuda para tratar do caso na escola. Com o retorno das aulas, quase dois meses depois do comentário racista, nenhuma abordagem sobre racismo nas aulas, nenhuma mediação entre as famílias, ou contato da família do agressor, nem outra providência foi tomada por parte da escola
“Aí eu mandei uma mensagem para o diretor do colégio reclamando que ele não tinha tomado providência nenhuma, que o assunto não havia sido abordado com as crianças e que agora o meu filho estava sendo ameaçado, censurando o que ele escrevia no status”, afirma Gomes.
O pai da vítima também afirma que todas as vezes que houve contato com o Boni Consilii foi graças às iniciativas do próprio pai. “Acho que a escola poderia ter mediado essa relação, conversado com a família. Se a família ligar e pedir desculpa, isso morre aqui. Mas eu quero conversar com eles, sugerir que conversem com o filho sobre a atitude racista. Nunca a família ligou, nunca a escola procurou fazer essa mediação.”
Em nota enviada aos pais dos alunos, o Colégio Boni Consilii reforçou que o crime ocorreu em um ambiente virtual e que tem tratado do assunto dentro dos limites que a legislação lhe permite atuar. Defendeu, por fim, que o modelo de ensino à distância, devido à pandemia de covid-19, também limita a atuação do colégio.
O diretor pedagógico do colégio, Ascânio João Sedrez, afirmou que a “escola não olha de um lado só. Todo o trabalho foi de localizar o problema, contextualizá-lo exatamente porque quando você uma frase solta, ela tem um efeito, mas quando você vê um histórico de situações que envolvem crianças e adolescentes, você não é tão imprudente de pinçar essa frase como injúria racial ou coisa que o valha”, afirmou o diretor.
Para o Sedrez, as crianças devem ser educadas e “não eventualmente expostas como está acontecendo nesse momento”, em um referência à denúncia feita pelo pai da vítima nas redes sociais na segunda semana de agosto, após a falta de posicionamento da escola, conforme afirmou o próprio Jesus Gomes. Em todas as postagens públicas, o pai da vítima não expôs os nomes dos envolvidos, apenas do Colégio Boni Consilii.
“Como a família do menino tem divulgado a versão deles, a gente não tem nem possibilidade de dar outra versão exatamente pelo respeito pelas famílias que os adolescentes têm. Aí cabe à Justiça eventualmente tomar essa atitude e não eu como escola ou pai de um deles, claro que ele têm um ângulo e a outra família tem uma outra perspectiva. Mas não nos cabe esse papel e nem a eles”, afirma Sedrez.
Mas qual é a responsabilidade da escola nesse caso?
De acordo com Ariel de Castro, é “difícil” responsabilizar o colégio, já que os crimes não foram praticados em ambiente escolar ou realizado durante o ensino à distância, ou seja, durante uma aula virtual, por exemplo. Caso contrário, seria possível utilizar a Lei 13.185, que institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática. Em seu artigo 5º, a legislação prevê que é “dever do estabelecimento de ensino (...) assegurar medidas de conscientização, prevenção, diagnose e combate à violência e à intimidação sistemática”, ou seja, ao bullying.
“Agora, de qualquer forma, se o pai da vítima pediu a intervenção, a escola moralmente tem essa obrigação, até por uma questão pedagógica, de enfrentar qualquer situação de racismo. A escola deveria promover algum tipo de conversa entre as duas partes, com os pais de ambos, mesmo que seja uma reunião virtual, até porque os dois se conhecem por meio da escola”, explica Castro.
Ensino antirracista
Segundo Juliana Labrana, da ONG Educação Antirracista Pisar Nesse Chão Devagarinho, as escolas devem levar em conta a formação moral dos estudantes, além dos valores ligados à cidadania. Isso porque a educação deve ser um “instrumento de promoção social, de cidadania e respeito à diversidade étnico-racial brasileira, garantindo uma visão que valorize a cultura afro-brasileira”.
Nesse sentido, é necessário “pensar a negritude em um viés de valorização e garantia de representatividade e respeito. Racializar a educação na busca por igualdade racial passa por muitas esferas, e uma delas é a formação continuada para os educadores e gestores. Portanto, as escolas têm o dever de cuidar, com responsabilidade, de todos os aspectos que tangem as relações raciais”.
Labrana ainda afirma que quando uma instituição de ensino não se posiciona, num caso como este, acaba por minimizar algo que é problema de todos. “Além de ser grave o silenciamento frente ao racismo e o que isso representa para a sociedade, qual mensagem uma escola passa para seu estudante? Que sua vida vale menos? Que sua existência ser ferida não importa? É antipedagógico que instituições não se movimentem frente a uma problemática tão grave.”
Para Jesus Gomes, o agressor também é uma vítima, de uma educação “negligente, que falhou em preparar essa criança para o mundo que é baseado na diversidade”. Para ele, “resumindo, a minha impressão é que ocorreu o que sempre ocorre no Brasil: as instituições, a escola e o Poder Público falham em lidar com isso corretamente”.
*o nome foi preservado para proteger a identidade da vítima.
Edição: Rodrigo Durão Coelho