Jhuliana Rodrigues trabalha como técnica de enfermagem no Hospital São Vicente, em Jundiaí, interior de São Paulo. “É muito difícil”, diz ela sobre seu trabalho atualmente. O Brasil acaba de ultrapassar 100 mil mortes por covid-19, com 3 milhões de brasileiros infectados com o vírus. “Nos encontramos com os colegas e sentimos uma energia pesada, muita pressão, um bloqueio”, relata Rodrigues. Ela é vice-presidenta do Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Serviço de Saúde (Sinsaúde) de Campinas, na mesma região paulista.
“Trabalhamos com medo um do outro”, afirma Rodrigues. Diante desse quadro, seu sindicato assinou uma ação movida no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, na Holanda, em 27 de julho. Sessenta e cinco sindicatos e organizações que representam milhões de brasileiros, incluindo negros e indígenas, decidiram que a atitude insensível do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia não poderia ser acompanhada somente dentro do Brasil. Reclamações anteriores feitas no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal (STF) estão paradas. O procurador-geral da República, Augusto Aras, não deu andamento a nenhuma dessas graves denúncias. É por isso que os sindicatos foram ao TPI, para acusar Bolsonaro de crimes contra a humanidade.
O jornal brasileiro Folha de S. Paulo escreveu sobre o caos no país: “O principal motivo da tragédia é Jair Bolsonaro”. Os sindicatos o querem no banco dos réus.
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Trabalhadores da saúde, negros e indígenas
Segundo a ação em Haia, Bolsonaro exibiu uma “atitude de desprezo, negligência e negação” em relação ao coronavírus; esta atitude “trouxe consequências desastrosas”. O desrespeito que Bolsonaro demonstrou pela ciência e pelos conselhos da Organização Mundial da Saúde (OMS) levou à queda de dois ministros da Saúde (Luiz Henrique Mandetta, em 16 de abril, e Nelson Teich, em 15 de maio). Bolsonaro trouxe para a pasta o general Eduardo Pazuello, que não possui histórico na área de saúde, para ser o ministro interino. O Ministério da Saúde está agora recheado de oficiais com formação militar, e não médica.
O Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido subfinanciado nos últimos cinco anos. Em consequência disso e da expulsão, por parte do governo Bolsonaro, dos médicos cubanos que vieram ajudar o país, há uma grave crise de saúde. Esta é a opinião de Hugo Bethsaida Leme, que trabalha em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) de Londrina, no Paraná, e atua na Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares. “Muitas comunidades estão sem acesso ao Programa Mais Médicos pelo Brasil (PMMB), o que gera uma sobrecarga nas unidades de urgência e emergência com casos que poderiam ter sido atendidos nas Unidades Básicas de Saúde.”
Bolsonaro não apenas deixou de apresentar um plano sensato para combater o contágio, como também refutou qualquer tentativa do Congresso Nacional de tomar iniciativas nesse sentido. Por duas vezes, o Congresso Nacional aprovou projetos de lei e os enviou para sanção presidencial - a primeira para tornar obrigatório o uso de máscaras (Lei nº 14.019, de 2 de julho de 2020) e, em seguida, uma para fazer disposições especiais para buscar diminuir o contágio em territórios indígenas e quilombolas (Lei nº 14.021, de 7 de julho de 2020). Em ambos os casos, Bolsonaro vetou os projetos de leis. “Os vetos [do presidente] tiram o acesso a um tratamento de saúde digno neste momento de pandemia, tiram o acesso à água potável, à ajuda emergencial, a cestas básicas”, escreveram os sindicatos em sua ação em Haia.
O governo gastou apenas uma fração do dinheiro disponibilizado para combater a doença; olha a crise nos olhos e ri.
José Marques, um dos advogados que ajudaram na ação judicial, me disse que a política do governo Bolsonaro discrimina particularmente os trabalhadores da saúde, a população quilombola e as comunidades indígenas. As taxas de infecção e mortalidade para esses três grupos são superiores à média brasileira, sendo a taxa de mortalidade dos indígenas duas vezes maior que a do restante da população. Uma das leis que Bolsonaro vetou, conta Marques, teria exigido que o Estado brasileiro fornecesse água potável às áreas indígenas. “Sem água”, disse ele, “como as pessoas podem se manter livres da infecção? Como elas podem lavar as mãos?”
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Desrespeito
No início de junho, o cacique Raoni Metuktire, do povo Kayapó, afirmou: “O presidente Bolsonaro quer se aproveitar e está falando que o índio tem que morrer, que os índios têm que acabar". Tanto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) quanto a Organização dos Estados Americanos (OEA) instaram o governo brasileiro a proteger os Yanomami e outros povos indígenas da devastação do vírus.
Marcio Monzane, secretário regional da UNI Américas, me relatou o terrível tratamento dispensado às comunidades indígenas. O STF instruiu o governo a constituir uma comissão para discutir a situação do vírus nas terras Indígenas. Na reunião, segundo Monzane, os representantes das comunidades indígenas foram “maltratados pelo governo”. Nenhuma gravação da reunião foi divulgada, o que poderia ter ilustrado o desrespeito e o comportamento arrogante dos funcionários do governo. Em função de tais relatos, o Supremo indicou ao governo a realização de outra reunião.
Depois que Bolsonaro vetou o projeto de lei para garantir água potável nas áreas indígenas, o vice-presidente e general da reserva, Hamilton Mourão, afirmou que eles não precisavam de água potável, pois “eles recebem água dos rios que estão em sua região”. Este é o nível de insensibilidade da administração Bolsonaro.
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Haia e não Brasília
O ministro do STF Gilmar Mendes acusou o governo Bolsonaro de genocídio. Esta é uma acusação séria. De acordo com o ministro, no dia 21 de maio, a Constituição de 1988 “não autoriza o presidente ... a implementar uma política genocida na gestão da saúde”. Em seguida, no dia 11 de julho, Mendes criticou o número de militares no Ministério da Saúde. Para ele, o Exército "está se associando ao genocídio".
Vários juristas e parlamentares enviaram denúncias ao procurador-geral da República, Augusto Aras, mas este se recusou a abrir uma investigação. “A reclamação ficará em sua mesa até o final do período Bolsonaro”, disse Monzane. O que Aras fez é perfeitamente legal, mas vai contra o espírito geral da fraternidade jurídica, considerou Marques.
“Não há espaço no Brasil para apresentar um caso contra as políticas de Bolsonaro”, avaliou Monzane. Marques concorda: “Está claro para nós que não é possível que essas ações sejam julgadas dentro do país”. Portanto, os sindicatos levaram sua queixa ao Tribunal Penal Internacional em Haia. Quando perguntei ao TPI se eles iriam prosseguir com o caso, eles apenas responderam que haviam recebido a denúncia.
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No abismo
A ação afirma que o desrespeito de Bolsonaro com a gravidade da pandemia colocou “o povo brasileiro à beira do abismo”.
Jhuliana Rodrigues passou os últimos quatro meses sem ver a filha de 11 anos. Como uma enfermeira que recebe poucos recursos do governo para aquisição de equipamentos de proteção individual, Jhuliana não quer colocar sua filha em perigo. Ela sabe que Bolsonaro largou à própria sorte os trabalhadores da saúde, que estão na linha de frente do combate à epidemia. Mas seu dever é seu dever.
“Se eu não continuar trabalhando agora”, Jhuliana me disse, “o que eu vou fazer? Os profissionais de saúde são escalados e fazem seu trabalho com amor, dedicação e cuidado ao ser humano. Assim como já convivemos com bactérias multirresistentes, a covid-19 estará conosco por muito tempo”. Os trabalhadores da saúde, como Jhuliana, precisam estar trabalhando. Eles não recebem apoio de seu governo, e em função disso entraram em contato com o Tribunal Penal Internacional. Eles esperam que alguém os ouça.
*Vijay Prashad é um historiador, editor e jornalista indiano. Ele é escritor e correspondente do Globetrotter, um projeto do Independent Media Institute; editor-chefe da LeftWord Books; e diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Ele escreveu mais de 20 livros, incluindo “The Darker Nations” e “The Poorer Nations”. Seu último livro é “Washington Bullets”, com introdução de Evo Morales Ayma.
**Artigo publicado originalmente no Peoples Dispatch.
Edição: Peoples Dispatch