Recentemente uma pesquisa sobre a origem genética do povo cearense ganhou destaque na mídia local. O resultado da pesquisa: a maior base da origem é nórdica. À primeira vista, parece uma piada de mau gosto. Mas refletindo sobre os processos históricos que levou à formação do composto pluri-étnico-racial que é a população no Ceará, entendemos que mesmo os trabalhos maquiados de científicos possuem uma função social, são discursos que podem turvar ou encobrir realidades.
A maioria da população cearense é branca, negra ou indígena? Particularmente deixei de me aventurar nesse tipo de questão. Afinal, quando se discute isso, o que está em pauta não é realmente quem é maioria. Na maior parte das vezes, a elite branca reconheceu a população cearense como não sendo majoritariamente branca e trouxe a questão do branqueamento num caminho em que a manutenção de sua hegemonia passava por branquear essa massa.
O movimento negro ao defender um Ceará de maioria negra, está pautando o reconhecimento, valorização e fortalecimento deste grupo social. Suas pautas são justas. De todo modo, ser maioria ou minoria não deve ser critério para o fortalecimento e a dignidade de nenhum grupo. Saindo do Brasil, a população negra nos Estados Unidos representa cerca de 13% do total de habitantes. Os 13% de afro-americanos têm o direito de uma vida digna, partindo e indo além de sua representatividade estatística.
Voltando a suposta pesquisa, vejo que esta gerou muitos comentários que criticam a tal maioria nórdica apresentada nos resultados. Para além dessa maioria, quero comentar um “segundo lugar”. A segunda maior base de origem dos cearenses é indígena. É preciso ir mais a fundo sobre essa base indígena. Como não sou estudioso de pesquisas genéticas, prefiro não comentar este caráter do estudo em questão. Me reservo a discutir os usos políticos desses argumentos, no século 19, as “heranças biológicas”, no século 21: a “origem genética”.
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Envoltos entre conflitos e negociações com os colonizadores desde o final do século 21, os povos indígenas no Ceará foram alvos de uma outra estratégia colonial a partir do século 19, quando os governos da então província passam a afirmar a inexistência de indígenas nesta parcela do Brasil.
A ideia da extinção indígena passa a ser elaborada numa teia de ações e discursos politicamente articulados. Movidos pelo interesse nas terras indígenas e na defesa de uma província embranquecida, o retrato de um Ceará sem indígenas foi continuamente reproduzido por políticos e intelectuais da época. O projeto tinha duas frentes: transformar indígenas em cearenses para utilizá-los como mão de obra e, ao negar o caráter étnico dessa população, declarar as terras que ocupavam como devolutas para entregá-las aos brancos.
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Nesta façanha, ao buscar construir uma identidade para a população da então província, criaram uma alegoria na qual o povo cearense é fruto de miscigenação entre brancos e indígenas, onde o elemento indígena teria deixado heranças biológicas e culturais e depois desaparecido. Esse discurso violento, para além de interditar direitos, negou a própria existência de inúmeros grupos indígenas e negros nesta parcela do Brasil.
Parece que estes homens fizeram como a frase cantada por Raul Seixas: “Vamos entrar pra História pessoal”. Assim, criaram um discurso histórico, algo como um camarote. Fora do camarote, ficaram as populações indígenas, negras, negras-quilombolas e ciganas. Daquele camarote, estes homens as enxergavam como braços servis que poderiam ser explorados e também retirados dos lugares que ocupam para a construção de qualquer capricho colonial.
Mesmo apresentando contradições e inconsistências, a estrutura social dominante conseguiu manter o discurso de um Ceará sem indígenas durante mais de 100 anos. Vigorando junto a uma realidade de inúmeros indivíduos e coletividades de “caboclos” e “descendentes de índios” vivendo em contato com outros grupos sociais.
O cacique Milton Braz, dos Kariri de Poço Dantas-Umari no Crato, disse uma vez que pra ser Kariri “precisa dobrar a história”. Como os Kariri, os povos indígenas no Ceará e no Brasil vem dobrando a história há tempos. Dobrando a negação, as perseguições e outras adversidades.
Para a elite que não conseguiu silenciar totalmente a presença indígena no estado, restou comentar as “heranças indígenas” deixadas para o povo cearense. Ressaltar as “heranças indígenas” é mais uma fraude. O Ceará de muitas “heranças indígenas” está com os processos de demarcação de terras indígenas travados. Estes territórios continuam sendo espoliados por empresas e também pelo próprio governo, ao promover obras como o Cinturão das Águas do Ceará.
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Lembrando de uma frase já um pouco conhecida: “quem não tem sangue indígena nas veias, o tem nas mãos”. E essas mesmas mãos sujas de sangue indígena, controlam muitos territórios destes povos e pressionam para impedir o reconhecimento e demarcação de terras indígenas na contemporaneidade.
Para além de um sequenciamento genético, ser indígena significa pertencer a uma trajetória histórica-espacial. Onde entender-se indígena consiste em perceber-se como um galho de “troncos velhos” originários de onde floresce a cultura e um jeito de ser. Mesmo diante de sujeitos sedentos de terras que tentam cercear o espaço dos troncos, galhos e raízes. Estes sujeitos são ambiciosos por possuir mais e mais terras, mas não conseguem se sentir pertencentes a nenhuma delas. São apenas proprietários querendo ser donos de uma Natureza vista como recurso e não como Mãe.
Além da ambição por posses, a elite de ontem e os seus filhos de hoje, sofrem de uma carência progressiva de hegemonia. Buscam convencer a si mesmos que são os maiores, os mais numerosos, civilizados, racionais, de base europeia e, agora, nórdicos europeus.
*Um galho de troncos velhos indígenas.
Fonte: BdF Ceará
Edição: Rodrigo Chagas e Monyse Ravena