Coluna

A incrível vida e os muitos escritos de Jack Goody

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Ouça o áudio:

Jack Goody quando serviu no exército britânico contra os nazistas na África - The scotsman, 14 de agosto de 2015, “Obituary”
Ainda hoje me pego voltando a ele para pensar sobre o impacto da industrialização dos alimentos

Poucas vezes eu venho aqui para escrever sobre minhas referências acadêmicas no estudo da alimentação. Mas, desta vez, quebrarei a regra. Nas últimas semanas venho pensando repetidas vezes na influência que um antropólogo inglês exerceu na minha maneira de pesquisar, entender e escrever sobre comida.

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Jack Goody nasceu em 1919 como John Rankine Goody, tinha um pai inglês e uma mãe escocesa – ambos haviam largado cedo a escola e o pequeno Jack cresceu em Welwyn Garden City and St Albans, em Hertfordshire, um condado no sul da Inglaterra. Jack Goody tornou-se um antropólogo preocupado em estudar culturas letradas na África e na Ásia. Escreveu e editou em 1982 Cooking Cuisine and Class, um clássico. Mas já vou falar do livro.

Goody teve uma carreira incomum – e isso influenciou suas escolhas e seus escritos. Alistou-se em 1939 no exército britânico e foi designado para combater as tropas alemãs de Erwin Rommel no Norte da África.

Pouco antes, no início de seus estudos na universidade de Cambridge, conheceu um grupo de intelectuais de esquerda que seriam seus amigos pelo resto da vida, entre eles Eric Hobsbawm, Raymond Williams e E. P. Thompson. Na guerra foi capturado depois de algum tempo lutando como segundo tenente.

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Passou três anos em campos de prisioneiro em diferentes locais. Preso e sem livros, Goody passou a dar aulas para outros prisioneiros de diferentes lugares do mundo enquanto planejava fugas espetaculares – numa delas chegou a ficar um bom tempo clandestino em Roma, onde foi novamente recapturado e mandado para a Alemanha. Essa falta de livros também determinou seu interesse pelas diferentes culturas, uma marca de sua carreira universitária, junto com seu interesse bastante diversificado em termos de assuntos.

Em uma grande entrevista a Maria Lúcia Pallares-Burke, em 1998, Goody explicou seus interesses, afirmando: “isso talvez se deva às experiências extremamente variadas que vivi durante a guerra; ao fato de estar um dia lutando no deserto contra beduínos; em outro convivendo com prisioneiros de guerra indianos, sul-africanos, americanos, russos etc. Acho que quando voltei da guerra quis, de algum modo, dar um sentido a toda essa diversidade de vivências. Mas também acho que a leitura de Marx e Weber despertaram meu interesse para amplos problemas sociológicos e para a razão pela qual algumas coisas acontecem num lugar e não em outro”.

Depois da Segunda Guerra, Goody passou muitas temporadas de estudo em pequenas aldeias no norte de Gana, na África. A ideia era pensar a partir desses povoados as rotas comerciais da região, suas relações com mundo, as influências culturais e o papel da cultura letrada. Dentre os muitos trabalhos que fez, destacam-se os que pensaram a importância da cultura das flores, as relações familiares e entre homens e mulheres, as diferenças nas escritas do Ocidente e Oriente.

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Para os estudiosos da história da alimentação, seu trabalho mais importante é o livro que citei no começo desta coluna, Cooking, Cuisine and Class, de 1982. Neste estudo, Goody se coloca uma questão central – por que a alta gastronomia não emergiu nas culturas africanas, como aconteceu em outras partes do mundo? Desse questionamento, ele parte para entender a importância da cozinha em diferentes culturas ao longo da história, passando pelo Antigo Egito, pela Roma Imperial, pela China medieval e pela época moderna na Europa.

O antropólogo entende, assim, como as diferentes maneiras de se preparar e consumir os alimentos refletem estruturas econômicas e sociais e diversos modos de comunicação. O estudo termina apresentando os impactos da industrialização dos alimentos em sociedades não desenvolvidas e como esses alimentos processados são incorporados em culturas alimentares tradicionais. É um superlivro mas não tem, ainda, uma tradução para o português.

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Encarei o livro pela primeira há uns 15 anos, quando comecei meus estudos formais sobre alimentação na Universidade de São Paulo. Ainda hoje me pego voltando a ele para dar aulas ou para pensar sobre o enorme impacto da industrialização dos alimentos em nossas vidas. Isso é uma coisa. A outra é pensar na incrível vida e na obra desse intelectual que viveu o grande trauma do século XX – a Segunda Guerra Mundial – e fez viagens para lugares distantes de sua origem com um olhar de respeito e fascínio. Talvez venha daí sua enorme abrangência, importância e capacidade de pensar a vida cotidiana.

Edição: Rodrigo Durão Coelho