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Análise | Bolívia: a batalha continental à vista

Recuperar a democracia perdida após o golpe é o que está em jogo na eleição até então prevista para 6 de setembro

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Luis Arce, do Movimento para o Socialismo (MAS), partido de Evo Morales, é o candidato que se encontra à frente da disputa eleitoral segundo as pesquisas - RONALDO SCHEMIDT / AFP

O centro de gravidade da América Latina se deslocará nas próximas semanas para a Bolívia, onde a questão principal é se finalmente ocorrerão eleições livres e independentes que ajudem a recuperar a democracia rompida em novembro do ano passado. O dia D é 6 de setembro. Por enquanto. Com o Movimento para o Socialismo (MAS) à frente em todas as pesquisas, a direita está apostando em um novo adiamento ou na proscrição dos candidatos do MAS. É lógico: ninguém dá um golpe de Estado para depois entregar de forma mansa o poder àqueles que derrubou pela força.

Eles têm um bom álibi: o desastre que a pandemia está causando. Hospitais colapsados e pessoas morrendo nas ruas são a face mais cruel de um sistema de saúde precarizado. A curva de contágio continua crescendo e, como se ainda faltasse algo na já agitada conjuntura boliviana, o diagnóstico positivo de covid-19 chegou para a própria presidenta interina, para sete ministros, seis vice-ministros, para o chefe das Forças Armadas e uma dúzia de legisladores. Das múltiplas crises que cercam o país, a crise sanitária é indiscutível.

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Nem mesmo os meios de comunicação que acompanharam o curso do golpe podem ocultar as imagens de pessoas desesperadas buscando atendimento para familiares infectados ou para enterrá-los. Enquanto isso, o Ministério da Saúde foi assumido pelo chefe do Ministério da Defesa, Luis Fernando López, um militar sem experiência na gestão sanitária de uma pandemia, assim como no Brasil de Bolsonaro. As respostas oficiais vão desde pedidos de orações religiosas até explicações tragicômicas como a do ministro do governo Arturo Murillo: "Muitas pessoas estão morrendo por simples ignorância". O panorama ainda não é uma tragédia completa porque no governo de Evo Morales, os investimentos em saúde (agora paralisados) aumentaram 360%, os empregos no setor dobraram e foram construídas 1.062 unidades de saúde.

Mas não foi a emergência pandêmica o que levou Jeanine Áñez, Jorge "Tuto" Quiroga e Luis Fernando Camacho a pedirem ajuda à OEA para seguir postergando as eleições (a mesma OEA de Luis Almagro que os ajudou a consumar o golpe), mas os números das pesquisas:  os três candidatos de extrema direita juntos não chegam a 20% das intenções de voto e, apesar das perseguições, prisões e exílio, o MAS tem grandes chances de vencer no primeiro turno se conseguir frear a para investida da direita para banir seu candidato, Luis Arce. O tabuleiro eleitoral se completa com o ex-presidente liberal Carlos Mesa, que aspira chegar no segundo turno apoiado pela classe média da capital e que até agora não aceitou aliar-se aos setores mais extremistas da oligarquia de Santa Cruz.

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O descontentamento com a gestão de Áñez e seu grupo continua crescendo. As múltiplas denúncias de corrupção, como a compra milionária de insumos médicos e respiradores superfaturados, mas acima de tudo o desamparo da população diante do devastador impacto econômico da pandemia. Em um país com 70% de trabalhadores informais e após uma enxurrada de demissões, o desemprego subiu para 8,1%, quase o dobro do que Evo deixou na época em que Bolívia ostentava a menor cifra de desemprego da América Latina.

É por isso também que Arce segue pisando firme. Além de seu perfil moderado, ele foi Ministro da Economia durante quase todo o governo de Evo. Quem seria o melhor para conduzir a crise pós-pandemia do que aquele que foi o cérebro de um incontestável modelo de recuperação e estabilidade econômica?

Se há uma palavra que define o futuro desta história é a incerteza. Tudo pode acontecer nas próximas jogadas. A direita boliviana, sempre protegida pelos EUA, aposta novamente em chutar o balde. O MAS denunciou que a direita " iniciou uma campanha para pressionar o Supremo Tribunal Eleitoral com o objetivo de suspender nossa pessoa jurídica".

O partido de Evo também se declarou "em estado de alerta diante desta nova tentativa de proibir nossas candidaturas". Os movimentos populares e sindicatos já estão nas ruas para evitar isso. Após uma grande demonstração de força em todo o país na terça-feira passada (14), o secretário executivo da Central dos Trabalhadores da Bolívia, Juan Carlos Huarachi, advertiu: "Nós, os trabalhadores, vamos fazer com que  as eleições sejam realizadas no dia 6 de setembro, de uma forma ou outra. Nós vamos defender a democracia".

Disso se trata a batalha à vista na Bolívia: recuperar a democracia perdida.

*Gerardo Szalkowicz é editor do Nodal.