Nas últimas semanas, dezenas de lives debateram os impactos das fake news no jornalismo, na política e na vida cotidiana do país. Esse se tornou o assunto do momento por conta da infinidade de notícias falsas compartilhadas durante o período da pandemia, que faz lembrar o período eleitoral de 2018, principalmente porque o centro da disseminação dessas informações é, de novo, o antes candidato e agora presidente, Jair Bolsonaro (sem partido).
Mas não só. Também tomam conta do noticiário dois inquéritos em andamento comandados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e por senadores e deputados em uma Comissão Parlamentar Mista (CPMI). Na esteira dessas investigações, um projeto de lei (PL 2630/2020) aprovado no senado começa a ser debatido na Câmara, apresentado com o objetivo de combater as fake news, mas com questões preocupantes para a privacidade e a liberdade de expressão dos usuários da internet. Tudo isso compõe um prato cheio para as discussões.
Não é de hoje que as informações falsas circulam. Desde que a humanidade é humanidade existe esse tipo de prática, ou desde que a imprensa é imprensa - se estivermos falando no sentido estrito de notícias jornalísticas falsas. No entanto, as fakes news passam a ser consideradas um fenômeno dos nossos tempos por serem definidas como notícias falsas, pensadas intencionalmente para causar desinformação e divulgadas de modo massivo na internet.
A prática só se torna possível, portanto, com a “popularização” da internet e das tecnologias da comunicação. Popularização entre aspas porque o uso da internet ainda é muito desigual no Brasil, já que pressupõe pagamento para o acesso. Segundo dados do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.Br), em 2018, a internet estava presente em 46,5 milhões de domicílios brasileiros - número que equivale a 67% deles. Um crescimento em relação a 2017, mas ainda falta muito para o acesso se tornar popular, de fato.
As fake news entraram no debate mundial com a eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos. Durante campanha e depois de eleito ele não só compartilhou notícias falsas em seus perfis nas redes sociais, principalmente no Twitter, como também está sendo investigado por contratar uma empresa responsável por espalhá-las por meio da criação de redes de usuários robôs. No Brasil, essa discussão foi importada por Bolsonaro, que em campanha eleitoral copiou práticas muito semelhantes.
No universo online, as fake news assumem formatos diversos. Existem desde as mais elaboradas, produzidas a partir da apropriação da identidade visual, logo e cores de um portal de notícias para atribuir a ele uma reportagem que não é de sua autoria. Essa prática, além de enquadrada como fake news, também é fraude e é conhecida como phishing. Outra maneira é através do discurso de influenciadores digitais em seus perfis nas redes sociais ou contas do YouTube.
Uma forma menos elaborada do que as duas citadas anteriormente são os textos, áudios e vídeos que circulam por meio do WhatsApp. Esse é o tipo mais comum de propagação de fake news no Brasil, pela popularidade do aplicativo e também pela falsa ideia de credibilidade que essa mensagem passa aos usuários, ao ser enviada muitas vezes por contatos próximos e de confiança.
Nesse sentido, as fake news tomam forma e se consolidam como um fenômeno de peso a partir de um ambiente propício para entrar em ebulição. Esse ambiente é composto pela eleição de governos, chamados de “populistas autoritários”, pelo historiador argentino Federico Finchelstein, como é o caso de Bolsonaro e Trump, que criam, apoiam e viralizam as fakes news; pelo uso massivo das tecnologias de comunicação; também pelo descrédito das instituições, desde a política tradicional, o poder judiciário, até a imprensa.
"PL das fake news"
É nesse cenário devastador que toma corpo nas casas parlamentares federais o Projeto de Lei 2630, apelidado como “PL das fake news”. O projeto foi apresentado pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania) com a justificativa de combater as fakes news, mas estruturado com pontos contraditórios que podem afetar a privacidade e a liberdade de expressão dos usuários da internet.
O texto foi inspirado na legislação alemã, que adotou há alguns anos, mas que hoje é motivo de controvérsias, porque fortalece os mecanismos de censura privada que as plataformas desenvolvem ao redor do mundo.
Em dois meses e pouco debate, o projeto foi aprovado na sua quinta versão e enviado para apreciação da Câmara na primeira semana deste mês. Após manifestação e pressão de diversas organizações e movimentos da sociedade civil, que militam pelo direito à comunicação e à liberdade de expressão, como a Coalizão Direitos em Rede e o Intervozes, sofreu alterações significativas e teve espaço aberto na Câmara dos Deputados para debates virtuais.
No entanto, ainda apresenta alguns pontos preocupantes. Os principais deles estão nos artigos 10º e 12º. O primeiro autoriza que sejam guardados obrigatoriamente pela administração das plataformas os dados dos usuários que participem das cadeias de compartilhamento de conteúdos. Esses usuários podem ser jornalistas, pesquisadores, parlamentares ou qualquer cidadão que, eventualmente, repasse postagens muito compartilhadas nas redes.
Partindo desse ponto, todas as mensagens que tiverem um compartilhamento significativo nos aplicativos podem ser consideradas suspeitas e rastreadas, sem que se tenha um indício de ilegalidade. É uma grave violação ao princípio da presunção de inocência e que pode impactar no exercício da liberdade de expressão e comunicação nos aplicativos, como aponta a Coalizão Direitos em Rede, no último relatório sobre o PL.
Já o Artigo 12º determina, no parágrafo 6º, que as pessoas que se sentirem “ofendidas”, por algum conteúdo postado por um perfil ou página nas redes sociais, devem pedir para as plataformas o direito de resposta. Essa figura do ofendido aparece no PL apenas neste trecho, portanto, não fica clara a sua definição. Além disso, o direito de resposta, que é constitucional, deve ser baseado em decisão judicial. Se essa for uma ação terceirizada às plataformas, pode ser mais um poder dado a elas. As propostas contidas no projeto, portanto, mexem com questões subjetivas que podem ser manobradas de forma equivocada e promover a censura.
Na última semana, o Facebook derrubou contas que operavam desde as últimas eleições, em 2018, disseminando fake news. Ao todo foram 35 contas, 14 páginas e um grupo de 350 pessoas, além de 38 contas no Instagram. A empresa alegou “comportamento inautêntico e inadequado” para a ação.
No Brasil de Fato RJ, tivemos a conta business do WhatsApp, em que divulgamos boletins de notícias diários, derrubada há um mês, sem explicação da administração do aplicativo sobre o porquê. O Partido dos Trabalhadores (PT) relatou que sofreu com ação parecida, também sem justificativas da administração do Whatsapp.
Nesse sentido, a moderação das plataformas que gerem as redes sociais, podem vir para o “bem” e para “mal”, porque os critérios são muito opacos e nada transparentes. O canal de um veículo de comunicação, que tem legitimidade para divulgar notícias, pode ser derrubado tanto quanto contas de usuários robôs. É muito perigoso, portanto, dar mais poder ainda para essas plataformas, deixando que estejam amparadas na nossa legislação para realizar essas práticas.
Um ponto curioso, que causa confusão sobre as discussões que envolvem o “PL das fake news”, é que além dessas entidades que militam pelo direito à comunicação e liberdade de expressão, a ala bolsonarista está se posicionando em contrariedade ao projeto. Nas redes sociais, durante uma live, Bolsonaro disse que vai vetar o projeto, caso seja aprovado pela Câmara. “Por mim, liberdade total nas mídias sociais”, disse.
Ainda que se posicione contra o projeto, é preciso deixar claro que não estamos do mesmo lado: Bolsonaro quer liberdade total para espalhar fake news, nós, enquanto usuários, queremos combater fake news mas participando desse debate, que tanto nos diz respeito. Não queremos uma lei que seja aprovada às pressas, para dar a entender que estão fazendo alguma coisa para combater as fake news no Brasil.
Papel do jornalismo
Existe uma frase batida no jornalismo, que é resgatada quase como um mantra em períodos de crise para reafirmar: “a imprensa e jornalismo nunca foram tão importantes quanto agora”. Essa frase faz sentido, mas para chegar a essa conclusão é preciso voltar algumas casas a fim de que não seja reproduzida sem reflexão.
Passamos por um período de descrédito das instituições, incluindo a imprensa. Descrédito, esse, reafirmado e aquecido quase todos os dias pelo presidente Bolsonaro em forma de ataques. Os jornalistas vem sofrendo ataques recordes por parte da presidência da República desde a redemocratização. Segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), foram registradas 245 ocorrências, de janeiro a junho de 2020, sendo 211 categorizadas como descredibilização da imprensa, 32 ataques pessoais a jornalistas e 2 ataques contra a Fenaj. São quase 10 ataques ao trabalho jornalístico por semana, somente neste ano.
A crítica é muito importante, mas com reflexão aprofundada e voltada a repensar estruturas como se organizam os grandes veículos de comunicação no país ao longo da história. É importante questionar os oligopólios formados pelas empresas de comunicação, principalmente, sobre concessões públicas, como são as cadeias de rádio e TV. Também é preciso questionar a falsa “imparcialidade” que assombra a grande imprensa, fazendo com que as escolhas políticas sejam disfarçadas como se não existissem.
A Rede Globo tem condensado essas críticas - que vêm de todos os lados, tanto da extrema direita, quanto da esquerda. No entanto, a Globo é uma representação, se não fosse ela seria outra em seu lugar. A história da Globo é diretamente interligada ao Golpe Militar, de 1964, assim como o Golpe de 2016. No entanto, tem assumido papel importante de informação e prestação de serviços durante a pandemia, por exemplo. É uma história composta de contradições.
Então, o problema não é que a Globo exista, mas sim o acúmulo de espaço e poder, que poderia ter sido mudado com a regulamentação da mídia não realizada nos últimos anos.
A comunicação e o jornalismo não são sobre uma coisa só, não são verdade absoluta, os fatos não existem soltos no mundo para serem capturados, dizem respeito a versões da realidade, portanto, têm que estar no plural. É interessante para a comunicação que tenham diversos veículos, concorrência e pluralidade para ser representativa e nos formar como indivíduos e como sociedade.
Por fim, os momentos de crise são importantes para a gente compreender várias questões. A crise das instituições pode ser importante para repensar e reafirmar o papel do jornalismo.
*Mariana Pitasse é doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal Fluminensen (UFF) e editora do Brasil de Fato no Rio de Janeiro. Este artigo foi construído a partir do debate "Fake news: a disputa política por desinformação", realizado pela Casa Híbrido, que pode ser acessado neste link em formato de podcast.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Rodrigo Chagas e Eduardo Miranda