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Indígenas denunciam censura no jornalismo da EBC durante a pandemia

Apib afirma que fontes indígenas não são escutadas em reportagens e, quando são, passam por censura editorial da empresa

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Povos tradicionais estão ameaçados pela Covid-19 e pela postura genocida do presidente Bolsonaro. - Divulgação CNBB

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) denuncia censura da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) em relação à cobertura da pandemia de covid-19 sobre a situação dos povos indígenas.

Segundo nota divulgada pela articulação, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido)  - que colocou a empresa em sua lista de privatizações - vem atuando a fim de proibir as denúncias de violações de direitos humanos e tem adotado apenas a posição do governo ao noticiar a incidência da doença entre a população indígena, sem garantir o contraditório.

"O governo federal tem atuado para que os veículos jornalísticos da EBC deixem de denunciar violações de direitos humanos e sequer garantam o contraditório. Nos últimos quatro meses, contados a partir da declaração do estado de pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o que se observa é que os veículos da empresa têm assumido um tom excessivamente governista, completamente apartado da função social que deveriam cumprir", diz o texto.

Segundo dados contabilizados pela Apib no dia 2 de julho, o Brasil registra 10,3 mil casos confirmados de coronavírus entre a população indígena. Já a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, aponta em 6,8 mil os casos confirmados até o dia 1º de julho.

"Ao mesmo tempo em que utilizam como referência principal apenas os números divulgados pelo governo, os veículos da EBC constroem versões que exaltam a resposta do poder público ante as demandas surgidas com a crise sanitária, sendo que, na realidade, as soluções apresentadas foram ineficientes e tardias", ressalta a nota.

A Apib reúne organizações indígenas regionais e desde 2005 trabalha a fim de expor a situação dos povos indígenas e reivindicar do Estado o atendimento às demandas de tais populações. Parte deste trabalho, portanto, se realiza na divulgação da relação entre indígenas e governo federal nos meios de comunicação. 

A concretização desse objetivo, no entanto, encontra obstáculos quando o assunto é a EBC. Recentemente, em um artigo escrito ao Brasil de Fato, a funcionária da empresa Carol Barreto afirma que a EBC “se tornou uma máquina de propaganda do governo Bolsonaro”. E denuncia as censuras: “Tudo que sai de crítica nos veículos da empresa é feito na brecha e, muitas vezes, com bastante desgaste. Fomos ameaçados de extinção e agora a ameaça é a privatização”. 

O relato é endossado pela nota da Apib, na qual os indígenas afirmam que são censurados das matérias enviadas pelos repórteres às chefias, publicadas apenas com a versão governamental dos fatos, o que vai contra os rigores jornalísticos. 

Privatização

Quanto à privatização, com o decreto 10.354, do dia 21 de maio deste ano, o presidente Bolsonaro colocou a EBC no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) da Presidência da República, que foi criado em 2016 com o objetivo de fortalecer contratos com a iniciativa privada. Logo após a publicação do decreto, a "Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública" soltou uma nota em repúdio à decisão de Bolsonaro.

Leia a nota da APIB na íntegra:

As entidades e indivíduos abaixo-assinados vêm a público denunciar o uso político e o desvirtuamento da missão da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) na cobertura da pandemia da covid-19, mais especificamente em matérias com enfoque em povos indígenas. Reprisando uma postura já conhecida, o governo federal tem atuado para que os veículos jornalísticos da EBC deixem de denunciar violações de direitos humanos e sequer garantam o contraditório. 

Nos últimos quatro meses, contados a partir da declaração do estado de pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o que se observa é que os veículos da empresa têm assumido um tom excessivamente governista, completamente apartado da função social que deveriam cumprir.

Privilegiam, por exemplo, a divulgação de informações como a contagem oficial de casos confirmados e suspeitos e de óbitos de indígenas, que não traduzem a realidade. A prova de tal discrepância é o fato de que lideranças, assim como as quilombolas, decidiram realizar seus próprios levantamentos, independentes dos elaborados pelo governo, para que possam dimensionar a incidência da covid-19 em suas comunidades, de forma fidedigna. Segundo dados contabilizados no dia 2 de julho pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), são 10,3 mil casos confirmados de coronavírus entre indígenas. Já a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, diz que são 6,8 mil os casos confirmados até o dia 1º de julho.

Ao mesmo tempo em que utilizam como referência principal apenas os números divulgados pelo governo, os veículos da EBC constroem versões que exaltam a resposta do poder público ante as demandas surgidas com a crise sanitária, sendo que, na realidade, as soluções apresentadas foram ineficientes e tardias. Para as lideranças indígenas, o que está em curso é uma política racista e genocida, já sinalizada pela edição, no primeiro dia do mandato do presidente Jair Bolsonaro, da medida provisória que transferiu da Fundação Nacional do Índio (Funai) ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a responsabilidade pelo processo de demarcação de terras indígenas. 

Na EBC, sistematicamente, análises críticas, feitas por entidades importantes, como o Instituto Socioambiental (ISA), a própria Apib, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), além dos próprios indígenas, são censuradas das reportagens enviadas pelos profissionais às chefias.

Mesmo após queixas sucessivas dos repórteres, em relação às arbitrariedades cometidas no âmbito da edição, a gestão da EBC continua fazendo vistas grossas. Além do tratamento dado às matérias já elaboradas, outros assuntos são barrados na origem, na pauta, de modo que os repórteres sequer consigam autorização para produzir as matérias. No caso da TV Brasil, por exemplo, o presidente da Funai tem concedido longas entrevistas sem ser confrontado. Nesses últimos meses, no entanto, nenhuma liderança indígena, do movimento negro ou quilombola, foi ouvida com o mesmo destaque no canal. Está em curso uma estratégia para silenciar versões que coloquem em xeque números oficiais.

No dia 1º de julho deste ano, a Agência Brasil - agência pública de notícias responsável por produzir e disponibilizar conteúdo gratuito para demais veículos, com capilaridade em todo o país - republicou a seguinte matéria da agência de notícias Reuters: "Militares se mobilizam para proteger indígenas de covid-19 na Amazônia". No entanto, entre as ações consideradas de proteção está a distribuição do medicamento cloroquina, que não teve eficácia comprovada contra a doença e não é consenso entre médicos e pesquisadores para tratamento da covid-19, sendo, ainda, desaconselhada pela OMS.

Nas aldeias, a situação é ainda mais grave, pois a cloroquina atrapalha o diagnóstico de malária e pode ser administrada sem que os indivíduos passem por exames cardíacos. E, tão grave quanto, na matéria da Agência Brasil não há espaço para o contraditório. Prática recorrente, pois temos visto em diversas coberturas dos veículos da EBC que o espaço para o contraditório só existe quando este trata do governo federal. A população indígena, que tem sofrido com invasões de territórios e dificuldades para garantir seu isolamento devido aos invasores, conforme já divulgaram diversas entidades representantes, não ocupa o mesmo espaço no noticiário da EBC como o que é dado, por exemplo, a entidades empresariais que apontam prejuízos financeiros durante a pandemia, pauta repetidamente veiculada nos veículos da empresa.

Outro agravante observado no caso foi a supressão de trecho que contraria o governo do texto reproduzido na Agência Brasil. A matéria publicada na Reuters diz que o Exército levou suprimentos "incluindo 13.500 comprimidos do polêmico medicamento antimalárico cloroquina".

Já a edição publicada na Agência Brasil, diz "incluindo 13.500 comprimidos de cloroquina", omitindo a doença para a qual o medicamento tem eficácia comprovada - a malária - e retirando a informação de que é um remédio envolvido em polêmicas, conforme divulgado amplamente no meio científico e na imprensa. No entanto, manteve-se a assinatura original dos repórteres da Reuters. Além de se configurar como episódio de censura, a edição do texto é, no mínimo, desrespeitosa com os autores do texto original. Ademais, tivemos informações de que a cobertura do caso - não apenas a reprodução editada do texto da Reuters - chegou a sofrer censuras internas, em conteúdos de evidente caráter jornalístico. 

Questionamos, assim, qual a motivação para tais censuras aos textos relacionados a essa temática. Teria relação com o fato de o próprio Exército ter fabricado milhares de comprimidos do remédio citado e, agora, precisariam dar vazão a tal produção, colocando em risco a vida da população indígena com essa distribuição? E isso teria relação com o fato de a EBC ser, atualmente, gerida por este mesmo Exército? Tais perguntas precisam ser respondidas, para que nenhuma dúvida paire sobre o ocorrido.

As entidades signatárias concluíram tratar-se de censura parte fundamental de mais um capítulo da estratégia de omissão que pode levar ao genocídio da população indígena. De tal forma, acreditamos ser imperiosa uma ação imediata capaz de retomar a gestão democrática dos veículos da EBC, hoje, sob gestão militar, defender a vida e a dignidade dos povos indígenas, o Código de Ética dos Jornalistas, o Manual de Jornalismo da EBC e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Edição: Leandro Melito