“Toda criança e todo adolescente tem direito à liberdade, saúde, uma boa alimentação, uma boa educação, o direito de ir e vir”, expressa Iacia Beatriz Ferraz, de 15 anos, ao defender o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que hoje, 13 de julho, completa 30 anos.
Ela nasceu no Assentamento Palmares 2 do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), que há 26 anos conquistou o direito à terra no município de Parauapebas, sul do Pará. Foi lá que aprendeu com os pais e o movimento sobre os seus direitos e a importância de lutar por eles.
A jovem camponesa estuda desde pequena na escola do assentamento, Crescendo da Prática, cerca de 30 minutos a pé da sua casa e mesmo agora, no 1º ano do Ensino Médio, tem a possibilidade de continuar estudando na mesma unidade, que ensina mais de 2 mil crianças da “vila”, como ela chama o assentamento, e da comunidade ao entorno.
A vida e a organização do movimento permitiu que Iacia vivenciasse a plena infância participando de atividades dos sem terrinha, como são chamadas as crianças dos assentamentos, o que possibilitou a ela aprender sobre a importância da alimentação saudável e adquirisse o gosto pelo carimbó, dança típica paraense.
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“Nos encontros do sem terrinha tinha várias oficinas, de teatro, dança. Eu sempre gostei muito de dança, eu sempre ia em carimbó. No último encontro que teve eu não fui como sem terrinha, fui para ajudar os sem terrinha, eu dei oficina sobre alimentação saudável. Eu gosto muito de escutar música, de cantar e de dançar também”, conta ela
Do outro lado do país, na Vila Formosa, na zona leste de São Paulo, Marina Tarcitano de Assis, de 11 anos, compartilha com Iacia o gosto pela dança, mas o seu ritmo é o break, movimentação do hip hop que improvisa os passos na batida do DJ. “Eu danço realmente porque eu gosto, me sinto confortável, mais solta, me sinto mais forte”, conta.
Assis estuda em uma escola pública nova da capital paulista, próxima de sua casa, com “professores muito bons, que passam muitas matérias diferentes”, além de frequentar aulas de circo e dança no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) em Sapopemba. No espaço, que frequenta com os pais desde os 5 anos, ela aprendeu a defender seus direitos.
“O ECA foi feito para proteger as crianças e os adolescentes. Ele fala bastante sobre os direitos, ele mostra os direitos que as crianças e os adolescentes têm, como brincar, aprender, estudar, ter boas condições. É importante porque ele deixa as crianças mais seguras. As crianças e adolescentes não podem usar drogas, ser estupradas, não podem trabalhar. Elas têm que estudar, focar na infância delas e aproveitar para ter um futuro melhor", explica.
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Esta consciência da importância e necessidade dos direitos das crianças e adolescentes mobilizou a meninada na década de 1980 para que o país adotasse uma nova política do governo para esta população, que veio a ser o Estatuto da Criança e do Adolescente em julho de 1990.
Ciranda pelo ECA
“As crianças e os adolescentes de fato ajudaram a construir o estatuto. Participaram da elaboração, da pressão e fizeram várias mobilizações dizendo que queriam uma lei que garantisse seus direitos”, conta o educador e cientista social Marco Antonio da Silva, mais conhecido como Markinhos.
Na época, ele era uma das milhares de crianças jogadas na rua pela crise econômica da ditadura militar que, na mesma proporção que submetia os jovens à vulnerabilidade social, encarcerava-os por serem pobres por meio de uma política higienista e punitiva.
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Submetidos a uma extrema pobreza e violência, os meninos e meninas de rua foram abraçados e se uniram ao novo movimento social e sindical que surgia na época em defesa da democracia e da justiça social, assim como pelo movimento internacional de direitos humanos puxado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Toda a efervescência da década anterior resultou em uma importante articulação e na criação do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) em 1985, que fortaleceu o protagonismo infanto-juvenil. Aos 15 anos, Markinhus se uniu ao movimento a partir do Projeto Meninos e Meninas de Rua em São Bernardo do Campo, Grande São Paulo.
A mobilização pela infância produziu o documento base para a emenda popular votada na Assembleia Constituinte em 1986 que posteriormente definiu o Artigo 227 e 228 da Constituição Federal de 1988, primeiro passo para a regulamentação do ECA.
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“No dia da votação da Assembleia Constituinte, esse movimento nosso com outros parceiros faz uma grande mobilização, chamada Ciranda Criança Constituinte. Se mobilizou em todas as capitais brasileiras e algumas cidades. Nós aqui no ABC fomos para a Praça da Sé e, lá em Brasília, as entidades foram mobilizadas e milhares de crianças foram para frente do Congresso. Depois de cada deputado dando seu parecer favorável, quando chega no final do dia, conseguimos uma vitória, a nossa lei está na Constituição”, relembra Markinhus sobre a primeira vez na história do país que a Constituição tem um capitulo exclusivo falando da criança e do adolescente, nos artigos 227 e 228.
A advogada e sócio-fundadora do Cedeca Sapopemba, Valdenia Paulino, também estava na Praça da Sé naquela ocasião. A organização, onde Marina hoje faz oficinas de arte e acompanha o pai educador social, é uma das que nasceu com a mobilização da infância. “É ligado o microfone e a voz da garotada na Praça da Sé junto com os educadores e os militantes da área da infância ecoa dentro do Congresso”, recorda.
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Esta foi uma grande vitória, mas não parou aí. Depois da Constituição, o movimento se articula para a regulamentação dos artigos. Com a mesma intensidade na luta, a força popular da infância, sobretudo dos meninos e meninas de rua, ocupa o Congresso em 1989 para a votação das diretrizes do ECA. Já educador, Markinhus conta que foram cerca de 1.200 crianças espalhadas nas cadeiras dos parlamentares e convidados.
“Os meninos dizem o seguinte ‘está aberto o parlamento brasileiro e nós queremos saber se as crianças e os adolescentes aprovam o Estatuto’. Nesse momento todas as crianças e adolescentes que estavam lá levantam o Estatuto, num gesto político, acima de tudo, dizendo que as crianças brasileiras estavam aprovando o Estatuto”, conta o militante que, na época, era um dos que estavam com o braço levantado.
Para ele, esta foi a mobilização popular mais forte em toda historiografia da infância. “Em julho de 1990, imagina quem vai assinar o ECA, o Collor. Como é que um governo desse assina? É por essa pressão que vinha das ruas", ressalta.
Avanços
Aprovado no dia 13 de julho, o ECA reuniu reivindicações de movimentos da infância e se tornou um marco legal na ideia de que as crianças e adolescentes são também sujeitos de direitos e merecem acesso à cidadania e proteção.
“Antes disso, nós tínhamos um pensamento adultocêntrico da criança. A criança seria um adulto em tamanho minúsculo, mas só com as coisas perversas do mundo adulto. Então, na exploração para o trabalho sem nenhum direito, sem reconhecimento de um ser que pensa, que é protagonista, também, da sua história, que é um sujeito de direito”, explica Paulino.
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Ela ressalta que essa caracterização anterior definia a criança como “menor”, com o objetivo de inferiorizá-la, o que acontecia sobretudo com as crianças e jovens em vulnerabilidade social que, diferente dos filhos das famílias ricas, eram vistos como “coitadinhos e pobrezinhos, ou então esse daqui vai ser mesmo um marginal e ai a gente tem que afastar”, aponta.
O ECA não só mudou a chave de como as crianças e adolescentes devem ser vistas, mas também a lógica de que o Estado é responsável pela garantia de seus direitos e deve atuar não apenas em situações de vulnerabilidade mas também como promotor desses direitos, de forma a evitar que crianças e adolescentes se encontrem nessas situações.
Prioridade absoluta
O artigo 4º do estatuto estabelece o princípio da prioridade absoluta, que compreende que todas crianças e adolescentes, sem descriminação, tem que estar em primeiro lugar no âmbito de políticas de serviço e de orçamento público de forma a terem garantidas a proteção integral em todas as esferas: psicológica, física, social e espiritual.
A partir do documento, a sociedade civil e o país começam a trajetória do desafio de colocar na prática os mais de 60 artigos que estabelecem os direitos de acesso à cultura, educação e saúde, tais como os vivenciados por Marina e Iacia.
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“Nós tivemos um ganho normativo muito importante. Porém, entre a lei e a realidade há uma distância abismal, a criança não é vista como prioridade absoluta.Nesses 30 anos é um cabo de guerra né, um puxa pra cá, outro puxa pra lá. Nós nem sempre ganhamos, mas também fizemos conquistas importantes”, destaca Paulino, que desde a criação do Cedeca e do estatuto não parou de trabalhar com a pauta.
Mortalidade infantil
Entre os avanços que o ECA trouxe para o país, está a redução da mortalidade infantil. O Brasil conseguiu reduzir em 24% as mortes de crianças antes de 1 ano de idade, em 2015. Levantamento feito pela Unicef, com base em dados do Ministério da Saúde, mostra que a taxa passou de 50 para cada mil crianças nascidas vivas, no final da década de 1990, para 12. O número se aproxima do previsto pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que são 10 mortes para cada mil nascimentos.
Um outro relatório do órgão chegou a apontar que, da criação do ECA até 2013, o Brasil reduziu em 88,8% a taxa de analfabetismo na faixa etária dos 10 aos 18 anos, passando de 12,5%, em 1990, para 1,4% e a evasão escolar de crianças e adolescentes no ensino fundamental havia sido reduzida em 64%, passando de 19,6% dos alunos matriculados, em 1990, para 7% em 2013.
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A atual Secretaria Municipal de Assistência Social de São Benedito, no Ceará, Ieda Castro, vivenciou este período em que considera a “materialização do ECA”. Ela foi secretaria da pasta em outro município cearense durante 2005 e 2014, e em 2015 chegou a ocupar, Secretaria Nacional de Assistência Social.
“Mesmo tendo 30 anos, de fato a materialidade do ECA, ela é bem mais jovem, acho que tem uma década de lacuna. Eu acho que de 2003 pra cá é que nós percebemos uma materialização do ECA. Quando começa a se desenhar no Brasil a ideia de que é impossível conviver com a miséria e com a fome. Esse foi, na verdade, o princípio ético que mobilizou todas as mudanças que aconteceram no governo Lula e Dilma, afirma.
Para ela, foi com essa diretriz que se estabeleceu um conjunto de iniciativas públicas dentro de diferentes politicas setoriais que conseguiram promover uma sinergia pra melhorar a a qualidade de vida das famílias, não só da criança em si, e as crianças e os adolescentes acabaram também sendo beneficiados com este processo.
Ao longo dos anos, o ECA também abriu caminho para outras políticas, como o Plano Nacional de Enfrentamento a Violência Sexual Infanto Juvenil e o Plano Nacional De Prevenção e Erradicação Do Trabalho Infantil. O estatuto foi também responsável por instituir o Sistema Nacional Socioeducativo, voltando aos adolescentes responsabilizados penalmente, em diálogo com outros conselhos, como o de assistência social.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), foi um dos órgãos ativos nestas implementações. Criado em 1991, ele é uma das diretrizes da politica de atendimento a crianças e adolescentes.
“O Conselho é o principal responsável pela gestão de políticas relacionadas à infância e adolescência, fixando diversas diretrizes em campos como sistema socioeducativo, violência e enfrentamento familiar. Historicamente, ele esteve à frente de diversas pautas e também é responsável por gerir o Fundo Nacional de Criança e Adolescente, para que recursos sejam destinados para esse público em específico”, explica a advogada do programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana, Thais Dantas, que também é uma das conselheiras do Conanda.
Ano passado, Dantas sofreu uma tentativa de exoneração junto com os outros 14 membros da sociedade civil por meio de um “grande atentado”, como definiu ela, do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).
Por meio de um decreto, o ex-capitão reformado tentou fazer alterações estruturais no conselho, como reduzir a quantidade de conselheiros de 28 para 18. Por determinação de Bolsonaro, os novos representantes não seriam escolhidos democraticamente, mas sim por um processo seletivo e o presidente do conselho também seria escolhido pelo Planalto.
A medida foi impedida devido a uma ação dos conselheiros e parlamentares no Supremo Tribunal Federal (STF).
Para a advogada, ficou evidente a tentativa de esvaziamento e ataque aos direitos das crianças e adolescentes. “Contar isso deixa muito clara a percepção de que atacar o Conanda é ao mesmo tempo atacar a infância e adolescência brasileiras e atacar também a democracia”, afirma Dantas.
ECA na “latrina” de Bolsonaro
O mais grave é que não é a primeira vez que o ex-capitão reformado despreza o direito de meninos e meninas. Ainda como candidato à presidência da República. "O Estatuto da Criança e do Adolescente tem que ser rasgado e jogado na latrina”, chegou a dizer Bolsonaro, ainda como candidato. Depois de eleito, não escondeu seu desejo de descriminalizar o trabalho infantil e defendeu abertamente a prática nas redes sociais: “O trabalho dignifica o homem e a mulher, não interessa a idade”, afirmou o presidente.
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O discurso foi convertido em ações implementadas ou defendidas pelo governo federal, como a redução da maioridade penal, redução da idade de trabalho, extinção das escolas do campo, cortes orçamentários na educação e os decretos de flexibilização do porte de armas, que levam a um retrocesso nas políticas de proteção às crianças e adolescentes.
Ministro da Educação defende que criança "deve sentir dor"
As posições políticas do presidente contra crianças e adolescentes ganharam reforço com a escolha do novo ministro da Educação. Depois de quase um mês de ausência na pasta, o governo Bolsonaro indicou o pastor e professor Milton Ribeiro para o cargo.
Em seu canal de vídeos, ele defende abertamente o uso da violência contra crianças. “Não dá para argumentar de igual para igual com criança, senão ela deixa de ser criança. Deve haver rigor, severidade. Vou dar um passo a mais, talvez algumas mães até fiquem com raiva de mim: deve sentir dor”, afirma Ribeiro em vídeo. A Lei da Palmada, em vigor desde 2014, estabelece o o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante.
Em outro vídeo, também em circulação nas redes, o pastor Milton Ribeiro afirma que um homem de 33 anos que matou uma adolescente de 17 “confundiu paixão com amor”. Ao tentar justificar o feminicídio, Ribeiro disse que paixão “é louca mesmo”.
Dados do último Relatório do 3º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação (PNE) refletem o descaso do governo Bolsonaro com a pasta, estrutural para a aplicação do ECA.
Divulgado no começo de julho pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), o levantamento mostra que o Brasil não avança na educação básica e no ensino superior. No primeiro ano do governo Jair Bolsonaro (sem partido), houve estagnação nos indicadores educacionais relacionado a taxas de alfabetização de jovens, alunos em escolas de tempo integral, educação profissional e acesso à universidade.
O PNE foi criado por lei em 2014 e estipula metas educacionais a serem alcançadas até 2024. No ano passado, o Brasil registrou 14,9% dos alunos de escolas de tempo integral, enquanto a meta é chegar a 25%. Em 2015, o percentual de alunos com carga-horária estendida era de 18,7%.
Com relação ao ensino superior, a taxa bruta de matrícula foi de 37,4% em 2019 e 2018. A meta é alcançar 50%. A educação profissional técnica de nível médio também ficou estagnada. No ano passado haviam 1.874.974 alunos na modalidade, contra 1.869.917 em 2018. O mesmo aconteceu com a taxa de alfabetização de jovens com 15 anos ou mais. O índice era de 93,2% em 2018 e passou para 93,4% no ano passado.
Com a Educação a Distância (EaD) aplicada na pandemia do novo coronavírus e a falta de políticas públicas para viabilizar o acesso ao ensino, a situação tende a piorar. Na zona leste de São Paulo, Marina Tarcitano só tira notas boas, mas está tendo dificuldades de acompanhar as aulas em casa.
“Pra mim está sendo um pouco difícil, porque eu não estou acostumada com isso, não me preparei. As minhas notas, eu admito, que abaixaram um pouco, porque eu não me preparei para isso. A maioria das pessoas da minha escola está conseguindo [acessar as aulas], mas tem pessoas que não estão conseguindo, minha amiga não está conseguindo porque tem internet, mas o celular não acessa o aplicativo”, conta ela.
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No interior paraense, a jovem Iacia Beatriz também sente o impacto das ações do governo. “As coisas com o Bolsonaro pioram, porque o governo quer acabar com as escolas do campo e que a gente vá para a cidade, porque pra eles é tudo mais fácil”, afirma ela ao apontar para o decreto do governo que tenta extinguir o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), voltado para a formação de estudantes do campo.
“Se fecharem essa escola [do assentamento], que horas esses alunos vão chegar na cidade para poder estudar?”, se questiona a adolescente, que defende que o governo deveria construir escolas e praças para que as crianças “pudessem ter outros meios de se divertir, não ficar trabalhando”.
Um relatório divulgado em maio pelo Ministério da Mulher, da Família e do Direitos Humanos (MMFDH) mostra que, das 159 mil denúncias de violações feitas ao Disque Direitos Humanos, 86,8 mil tinham como vítimas crianças e adolescentes.
Desse total, 4.245 são referentes a trabalho infantil. O número, 14% maior que o registrado no ano anterior, tende a crescer muito mais neste ano devido à falta de políticas governamentais que garantam renda para as famílias mais vulneráveis enfrentar a pandemia.
“O momento atual traz a necessidade de assegurar investimento adequado para as políticas de infância e adolescência. A gente esta vivenciando uma politica de austeridade econômica, que já começou há alguns anos com a aprovação da emenda 95. Isso impacta muito gravemente crianças e adolescentes, não tem como falar em efetivação do ECA e garantia da prioridade absoluta sem efetivamente garantir recursos para as políticas públicas serem aplicadas”, ressalta Dantas.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima em 152 milhões de crianças no mundo trabalhando atualmente, número que vinha sendo reduzido, mas que mostra agora tendência de aumentar, devido as consequências sócio-econômicas da pandemia de covid-19.
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A pequena Marina, na zona leste de São Paulo, sabe bem o por que “estas realidades são muito ruins, porque se as crianças estão tendo condições ruins, sem ajuda do governo, é porque os pais não estão conseguindo achar emprego, bons trabalhos para ajudar em casa. Então a função do governo é ajudar as pessoas que estão precisando em vez de ficar só falando, falando e não fazer nada”, constata.
Para ela a “criança morar em um cômodo só, não ter boas condições financeiras, não conseguir as coisas mínimas para sobreviver, sofrer racismo, bulling”, também é uma forma de violência.
Ano passado, o país chegou 4,4 milhões de crianças em situação de extrema pobreza. Isso significa que 11,5% das pessoas de zero e 13 anos de idade viviam com renda domiciliar per capita inferior a US$ 1,90 por dia, o correspondente a cerca de R$ 150 mensais. Essa proporção chega a 21,5% na região Nordeste do país.
Os dados fazem parte de levantamento inédito do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV) a partir da base de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A proporção de crianças vivendo na extrema pobreza em 2019 repete a taxa registrada no ano anterior (11,5%), mantendo o indicador em sua máxima da atual série histórica, iniciada em 2012. Entretanto, só no mês passado, o governo Jair Bolsonaro cortou R$ 84 milhões do programa Bolsa Família, para utilizar a verba em ações de publicidade institucional.
Aumento da violência
Os dados de violência dos últimos anos apontam uma realidade estarrecedora: crianças e adolescentes estão sendo mortos e assassinados de maneira contumaz no Brasil. A cada 24 horas, 29 crianças e adolescentes de 1 a 19 anos de idade são assassinados no país.
Em um ano o número chega a 11 mil vítimas e, quando há recorte de raça, o número é ainda maior: crianças e adolescentes negros, tem uma chance 178% maior serem vítimas de homicídios do que crianças e adolescentes brancos.
Os dados são do relatório sobre violência letal contra crianças e adolescentes, elaborado pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flacso) em parceria com o Mapa da Violência, e apresentados pela pesquisadora do Núcleo de Estudos Violência da Universidade de São Paulo (USP), Mariana Chies.
A especialista em segurança pública pontua que, mesmo com a Constituição e com o ECA, há uma “insistência nas velhas práticas”, anteriores à promulgação das legislações, que são baseadas no racismo estrutural e na "cultura menorista", incentivada por Bolsonaro.
“Ele [Bolsonaro] é uma pessoa que combate o ECA, porque ele tem muito essa visão menorista de tratar crianças e adolescentes como pessoas que não são sujeitos, mas sim objetos de intervenção estatal, intervenção através de uma política de segurança pública que vai atirar para matar”, afirma Chies. Ela que aponta que a mesma lógica funciona no encarceramento de jovens.
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Em relação aos adolescentes de 16 e 17 anos, os adolescentes brancos morrem em uma proporção 24,2 para cada 100 mil adolescentes, enquanto os adolescentes pretos e pardos morrem 63,3 a cada 100 mil adolescentes. Isso significa que eles morrem uma proporção 74% maior, ou seja, três vezes mais do que brancos.
Para Marina, racismo é “uma coisa que nenhuma criança deveria passar”. Ela chegou a vivenciar uma discriminação na escola, mas deu a volta por cima. “O ECA me ensinou a me amar e a conhecer meus direitos”, declara.
Resistência
O aprendizado veio com a convivência com a família e os educadores do Cedeca Sapopemba, em que ela participa também do Bloco EURECA (Eu Reconheço o Estatuto da Criança e do Adolescente), que todo ano desfila nas ruas de algumas cidades da capital um enredo sobre a importância dos direitos da infância.
“O Cedeca não é só uma parte do ECA, ele também é um lugar acolhedor, porque o Cedeca tira muitas pessoas da rua, em vez delas estarem na rua, elas podem estar lá fazendo aulas, se divertindo e aprendendo várias coisas”, conta Marina
Nesta segunda-feira, 13 de julho, a garotada não poderá sair às ruas, mas o bloco presta uma homenagem ao aniversário do ECA pelas redes sociais da organização e do Projeto Meninos e Meninas de Rua.
Markinhus, educador do projeto, e integrante do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, conta que outras organizações e movimentos somam-se à mobilização no país inteiro.
“É uma reação a essa investida do governo de desmonte de direitos e isso é a grande força do movimento da infância e da sociedade civil organizada contra os desmontes de políticas públicas no Brasil. Por que desmontar o ECA é desmontar as políticas públicas. O ECA não consegue avançar com um governo autoritário”, afirma.
A sócio-fundadora do Cedeca, Valdenia Paulino, reitera: “Esses 30 anos, eles não devem ser de comemoração, mas de resistência e enfrentamento. Esse é o que eu penso aí para os 30 anos. E tem várias outras coisas que a gente precisa divergir.”
“Ele [o ECA] é como se fosse um óleo numa engrenagem. A Constituição brasileira só funciona com democracia, o ECA não funciona fora do estado de direito. Isso é o que está colocado e essa é a resistência que está colocada”, defende Markinhus.
O sonho dos meninos e meninas que conquistaram o Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 continua vivo nas jovens da cidade e do campo. “Quero ser designer, e para as outras pessoas eu sonho que todos os direitos do ECA sejam ouvidos e feitos. Porque ele ajuda as pessoas e dá condições melhores para todos”, deseja Marina.
“O meu sonho para toda criança e todo adolescente é que todos possam ter a liberdade de brincar, sorrir e ser feliz, que tenham uma boa educação e que o acesso seja para todos, que todos possam ter acesso à cultura, ao lazer, proteção, segurança e saúde. O meu sonho é que todas as crianças e adolescentes possam ter uma boa alimentação e o direito de viver”, expressa a jovem camponesa, Iacia Beatriz, que também sonha em se tornar nutricionista.
Edição: Leandro Melito