O recente relatório intitulado "Mais pessoas morrerão de fome no mundo do que de covid-19 em 2020", divulgado pela organização Oxfam, nos releva que vivemos à luz de um perigo muito mais grave do que a própria pandemia do novo coronavírus. Vivemos sob a mira de políticas econômicas que literalmente matam as pessoas.
De acordo com os dados do relatório, até o final de 2020, 12 mil pessoas podem morrer de fome diariamente, um número que é, até mesmo, maior do que os que vemos ser ocasionados pelo novo coronavírus.
Não é a doença que mata as pessoas, mas é a opção econômica que organiza a distribuição dos recursos e dos gastos, que, da forma como está atualmente instituída, joga um contingente enorme de pessoas à sua própria sorte, sem conseguir acessar sequer meios de se alimentar.
Recentemente no Brasil, o membro da Organização das Nações Unidas (ONU) responsável pelo Programa Mundial de Alimentos (WFP, na sigla em inglês), afirmou que o nosso país, efetivamente, está voltando ao mapa da fome, lugar que havia saído em 2014. E, que, podemos chegar a 7% da população, ou mais precisamente, cerca de 14 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza, segundo os dados do Banco Mundial.
Desde 2015 nós assistimos o Brasil fazer escolhas deliberadas no sentido de cortar orçamento de políticas que diretamente pudessem minimizar o terror da fome, como a drástica ruptura com programas relacionados à segurança alimentar, assim como a redução das políticas de distribuição de renda como o Bolsa Família.
Tudo isso sob o pano de fundo da aprovação da Emenda Constitucional 95, a chamada PEC do Teto dos Gastos, que justamente visa criar mecanismos de coerção e proibição das possibilidades de gastos governamentais em politicas sociais, visando pura e exclusivamente manter as “finanças saudáveis”, às custas da vida das pessoas, sobretudo as mais vulneráveis. Ilegal deveria ser a fome, e não gastar mais do que arrecada, ainda mais um Estado que dispõe de inúmeros mecanismos de financiamento.
Que esse pensamento é ilógico os economistas estão cansados de provar, pois um estado que visa exclusivamente manter o controle fiscal como um fim em si mesmo, em detrimento da manutenção da justiça social e promoção da dignidade humana, está fadado ao fracasso de partida.
Distribuição de renda
Segundo dados da pesquisa realizado pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), o auxilio emergencial foi a política que mais freou a queda do Produto Interno Bruto (PIB). Isto porque 93% dos domicílios mais pobres tiveram renda oriunda do auxilio, pessoas estas que ao receberem compram arroz e feijão, e não vão para Disney “fazer a maior festa”, como diz o ministro Paulo Guedes.
Entretanto, é verdade que não é uma medida “barata”, e o governo gastou bastante para efetivar a política de renda emergencial, ainda que, menos do que inicialmente foi estipulado. Pois, até julho, menos da metade dos recursos orçamentários, destinados à assistência de pessoas vulneráveis, tinham sido pagos. Na prática só 49% do total.
E, mesmo assim, seu efeito multiplicador na economia foi profundamente positivo. Tanto na manutenção das condições básicas de sobrevivência, de pelo menos 30% da população mais pobre, como também fomentou as condições de manter um fluxo mínimo de renda na economia, que através da demanda freou uma queda mais brusca do PIB, como previa a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Além disso, o próprio orçamento público obtém ganhos, uma vez que grande parte da arrecadação tributária é sobre consumo e, portanto, estes investimentos tendem a retornar para o governo. Neste caso, segundo as projeções, R$ 122,17 bilhões já transferidos às famílias geraram receita de R$ 36,4 bilhões para União, estados e municípios, o rombo poderia ser muito maior caso essa circulação de renda não tivesse acontecido, aprofundando ainda mais o déficit fiscal.
Assim, optar entre ser um estado que se responsabilize pelas condições de vida da população através da sua atuação ou ser um estado que se preocupe somente com resultados contábeis é uma escolha política e fundada em interesses específicos dos sujeitos que ocupam os espaços de poder. Além de serem pautadas em motivações totalmente desvinculados dos resultados econômicos em si. A implementação do auxilio emergencial, mesmo timidamente executado, é um exemplo disso. E sua suspensão é um suicídio econômico, que nos logrará um longo período de depressão econômica.
Fica evidente, portanto, que a austeridade é uma opção deliberada pelo pior caminho, tanto para as pessoas como para a economia. E não há dúvidas que uma economia que colhe como resultado a fome é uma economia que, definitivamente, deu errado.
Iriana Cadó é economista, especialista em economia social e do trabalho. Militante da Consulta Popular.
Edição: Geisa Marques