A pandemia do novo coronavírus, que já causou mais de 51 mil mortes no Brasil e uma crise socioeconômica sem precedentes, fez com que a latente ameaça da insegurança alimentar dos últimos anos se tornasse realidade para as populações mais pobres do país.
No ano passado, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) havia alertado que o Brasil poderia voltar a ser incluído no Mapa da Fome, ou seja, na relação de países que têm mais de 5% da população ingerindo menos calorias que o recomendável. Desde 2014, o país já havia deixado essa lista.
A estimativa do Banco Mundial é que cerca de 5,4 milhões de brasileiros atinjam a extrema pobreza, chegando ao total de 14,7 milhões de pessoas até o fim de 2020, ou 7% da população.
“O Brasil já está dentro do Mapa da Fome. Vamos ter que fazer todo um esforço de reconstrução. Esperamos que um dia se reponha a participação social no país, de forma que possamos, novamente, sair do Mapa da Fome, e oferecer condições de alimentação com comida de verdade para nossa população”, afirma Francisco Menezes, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em entrevista ao Brasil de Fato.
Apesar do peso inegável da covid-19, na avaliação de Menezes, o vírus não pode ser apontado como o único responsável pelo cenário desastroso. Ele explica que há uma evidente piora no combate à fome e extrema pobreza no Brasil desde 2016, resultado das políticas neoliberais adotadas desde então, com destaque para o desmantelamento das políticas de segurança alimentar e nutricional.
Entre elas, a extinção do próprio Consea, responsável pelo controle social e participação da sociedade na formulação, monitoramento e avaliação de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional assim que Bolsonaro chegou ao governo.
Para Menezes, que também é pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), além de interromper avanços conquistados nos últimos anos, o fim do Consea impede que “nesse momento, a sociedade de forma articulada, como um todo, pudesse dar contribuições e ter condições para oferecer diretrizes diante desse quadro excepcional que vivemos”.
Segundo ele, o esvaziamento das políticas voltadas para a agricultura familiar também tem a volta da fome como consequência direta.
“É absolutamente vital o fortalecimento da agricultura camponesa, da agricultura familiar como um todo, porque ela propicia a produção da maior parte dos alimentos e de melhor qualidade, mais saudável, para a população”, afirma, ressaltando a importância do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
“Se esse programa não tivesse sido desmontado, com os cortes orçamentários tremendos que ocorreram nos últimos anos, teríamos um programa com a capacidade tão virtuosa dele de ligar a produção ao consumo e possibilitar a chegada dos alimentos nos circuitos curtos, o que é o ideal em termos da soberania e segurança alimentar.”
Confira a entrevista com Francisco Menezes na íntegra.
Brasil de Fato - Um relatório recente da ONU apontou que a extrema pobreza na América Latina e no Caribe deve alcançar mais de 83 milhões de pessoas ainda esse ano. Quais são as implicações desse trágico cenário, principalmente aqui no país?
Francisco Menezes - Em primeiro lugar, podemos situar esse quadro atual pensando como a coisa vinha caminhando até surgir a pandemia. A América Latina tinha cumprido um percurso, em determinado momento, favorável no sentido da redução da fome. É sempre bom lembrar que existem países como o Brasil, como o México e outros, que têm populações grandes em comparação a outros países e portanto o que ocorre pesa muito no total.
E estou me referindo ao caso do Brasil, que cumpriu uma trajetória magnífica até 2014. Tanto que a FAO e outras organizações da ONU consideraram que o Brasil tinha saído do Mapa da Fome.
A partir de 2015, mas sobretudo depois de 2016 em diante, vem piorando bastante o quadro brasileiro. Tanto em relação ao enfrentamento da fome como, particularmente, a questão da pobreza e da extrema pobreza. A extrema pobreza está muito associada à fome, naturalmente.
Pensando América Latina como um todo, é claro que a pandemia traz um impacto muito grande. Seja na desorganização da economia, pondo à prova, muito fortemente, os elementos de desigualdade e o próprio aguçamento da pobreza. Acho que a previsão e a preocupação relatada nessa pesquisa é muito procedente.
É claro que é difícil chegarmos a números muito exatos do que acontecerá mas a repercussão aqui na América Latina deve ser muito grande. Até porque, de um lado existem problemas estruturais, que já vinham, mas também assistimos em alguns desses países um enfrentamento da pandemia de uma forma bastante questionável.
Falo, novamente, do caso brasileiro, que é a maior aberração do mundo em termos desse enfrentamento. Apesar da existência do Sistema Único de Saúde (SUS), se não o desastre seria muito maior. Mas existem outros países que estão revelando problemas muito preocupantes no enfrentamento da pandemia, como é o caso do Peru, que impactará as populações mais vulneráveis.
Como estava comentando, existe um processo de desmonte que é anterior à covid-19. Quais elementos podemos citar como responsáveis pela volta da fome no país?
Um conjunto de fatores, mas todos eles muito graves. Em primeiro lugar, até gostaria de assinalar que é errado dizer simplesmente que a crise levou a essa situação. É preciso dizer que o enfrentamento da crise, a opção pelas políticas neoliberais e ultra neoliberais que foram tomadas conduziram a esse crescimento da pobreza e da extrema pobreza de uma forma acelerada.
Em segundo lugar, o desmonte das políticas de segurança alimentar e nutricional e soberania alimentar. Nesse sentido, esse desmonte se encontrou com o agravamento das condições de vida dessa população, que ficou completamente desprovida de assistência, portanto, isso aguçou o quadro de crescimento da pobreza e abandono, sobretudo em relação ao Brasil.
O desmonte do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi a primeira medida provisória do atual governo. Extinguir o Consea. Estava dentro da estruturação do novo governo.
Isso reduziu a capacidade de um órgão que vinha desempenhando um papel que é muito vital, seja na construção de políticas de segurança alimentar e nutricional, várias delas foram construídas lá dentro, entre governo e sociedade, em um período em que isso era possível.
Mesmo depois do golpe de 2016, havia ainda uma resistência em nível federal, muito articulada com os conselhos nos estados, e que possibilitava um grau de contenção maior do desmonte que se pretendia fazer. Há um preço grande de se ter eliminado a participação social dessa forma.
Caso o Conselho e outras estruturas tivessem sido mantidas, a resposta nesse momento de combate ao coronavírus seria diferente?
Acredito que haveria muita dificuldade para o Consea conviver com o atual governo e toda sua forma autoritária de não escuta da sociedade organizada. Seria um processo de confronto permanente. Mas, pelo menos, teríamos uma capacidade maior de falar para a sociedade.
Isso agora está acontecendo e sendo construído através das próprias organizações que buscam oferecer uma resistência. Acabou-se com a parceria, tem um preço grande. É bom citar que estava programada, para 2019, a realização da 6ª Conferência Nacional da Segurança Alimentar e Nutricional. Não só isso foi inviabilizado como não cria as condições para que, nesse momento, a sociedade de forma articulada, como um todo, pudesse dar contribuições e ter condições para oferecer diretrizes diante desse quadro excepcional que vivemos.
Entre as políticas de segurança alimentar, qual o peso dos cortes de orçamento da agricultura familiar? Qual a relação desse processo com o aumento da fome e da pobreza nos grandes centros urbanos?
É absolutamente vital o fortalecimento da agricultura camponesa, da agricultura familiar como um todo, porque ela propicia a produção da maior parte dos alimentos e de melhor qualidade, mais saudável, para a população.
O esvaziamento das políticas voltadas para essa agricultura tem um preço altíssimo. Nas prática, são essas situações que estamos vivendo agora.
Com a necessidade do fechamento das escolas, enfrentamos uma situação que ainda não está bem resolvida, ainda há muitos problemas que envolvem a alimentação escolar. Sobretudo para as famílias mais pobres, isso tem um enorme peso.
Muitas vezes, não contar com essa alimentação significa que essas crianças e ou pais delas vão deixar de se alimentar pelo menos uma vez por dia. Isso teve uma repercussão muito forte com o fechamento das escolas, mas elas precisavam ser fechadas se não a tragédia da pandemia seria ainda maior.
Mas, nós não vimos uma capacidade de fazer com que aquilo que era tão importante, o mínimo dos 30% garantidos para a alimentação escolar fornecido pela agricultura familiar, tivesse permanência.
O que aconteceu? Mesmo com estados e municípios acionando formas de repasse para essas famílias em termos de alimentação, ela deixou de sair da agricultura familiar. Criou-se um paradoxo. De um lado, fome nas famílias que ficaram desprovidas da alimentação escolar, as mais empobrecidas. Do outro lado, deixou de haver capacidade de escoamento da produção da agricultura.
Isso demonstra bem o que significa não ter um governo com capacidade de coordenação. Essa é a verdade. É a completa incapacidade, ou mais que a não capacidade, a completa indisposição de coordenar qualquer coisa.
A agricultura familiar é bastante atingida neste cenário. Tem-se buscado no Congresso Nacional medidas de proteção para que as atividades de produção não fiquem prejudicadas e haja fornecimento dos alimentos, seja pela alimentação escolar e outras vias.
Muito importante falar do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) mas também é muito importante o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PNAE). Seria outra possibilidade. Se esse programa não tivesse sido desmontado, com cortes orçamentários tremendos, que ocorreram nos últimos anos, teríamos um programa com a capacidade de ligar a produção ao consumo e possibilitar a chegada dos alimentos nos circuitos curtos, o que é o ideal em termos da soberania e segurança alimentar.
O orçamento para esse ano era absolutamente reduzido em termos do PAA. Teve um aporte de R$ 500 milhões, mas consideramos insuficiente, sobretudo nesse quadro, de estar sendo discutido entre R$ 1 bi e R$ 2 bi para rapidamente acionar esse programa com capacidade de fornecimento de alimentos.
O PAA tem um papel crucial na formação de estoques públicos de alimentação, o que vem sendo descuidado pelos últimos governos. É real que tenhamos problemas de estoque que poderão, ainda, aparecer.
Sabemos que o estoque de arroz e feijão do país são muito baixos, e poderemos, em meio a todas essas dificuldades, termos problemas de incapacidade de fornecimento desses produtos por conta da condição brasileira. Não temos como saber como será o mercado externo nos próximos tempos.
O chamado PAA Emergencial está previsto no PL 886, que está no Congresso Nacional. Qual sua opinião sobre a proposta?
Essa modalidade de compra direta e a doação simultânea é um aspecto crucial nesse momento. Já era uma das modalidades mais importantes do programa, porque ele possibilita essa capacidade de um rápido atendimento e de efetivar os circuitos, que chamamos de circuitos curtos.
E tem um outro aspecto muito positivo que é propiciar uma organização entre os agricultores para atender a demanda. Esse é um elemento muito fortalecedor da própria natureza da agricultura camponesa e familiar. É muito chave retomar esse processo.
É claro que não se constroem as coisas da noite pro dia. Vamos pagar por esse caminho que o Brasil tomou. Se os indícios da fome já eram preocupantes, ela agora é real. Ela vai, infelizmente, crescer muito.
Mesmo dentro dos critérios da ONU, o Brasil já está dentro do Mapa da Fome. Vamos ter que fazer todo um esforço de reconstrução. Essa palavra é muito importante, porque ela identifica exatamente o que tem que ser feito: O Brasil tem que ser reconstruído.
É necessário, então, a reconstrução dessas políticas. Esperamos que um dia se reponha a participação social no país, de forma que possamos, novamente, sair do Mapa da Fome, e oferecer condições de alimentação com comida de verdade para nossa população.
O que está em jogo no sentido da qualidade do que ingerimos atualmente?
Em 2007 e 2008, houve uma crise de alimentos no mundo. No qual o preço dos alimentos subiu muito. Nós observamos naquele momento, junto às populações mais pobres, qual era a reação de uma família diante da perda do poder aquisitivo. Estou falando das famílias nas cidades, em que já não conseguiam comprar os alimentos que geralmente consumiam.
Nós observamos que a reação primeira, não era de diminuir a quantidade, mas saiam à procura de alimentos mais baratos que geralmente têm as características de serem caloricamente mais densos, até para dar uma sensação maior de satisfação. Mas ao mesmo tempo, muito pobre nutricionalmente.
Esse é um aspecto que provavelmente está ocorrendo com a perda de poder aquisitivo. Pesquisas recentes mostraram o aumento do preço dos alimentos. Já deve estar se consumindo, em termos nutricionais, de uma forma pior.
Ao mesmo tempo, se a agricultura familiar está sem proteção, se desmonta a capacidade de fornecimento de alimentos mais saudáveis, produzidos agroecologicamente. Se essa capacidade se reduz, o apoio é menor, e ai não só os mais pobres, mas todos os consumidores ficam privados dessa possibilidade de uma alimentação saudável. Aquilo que chamamos de comida de verdade.
Que não se baseia em alimentos processados e ultra processados. Fórmulas que interessam muito ao agronegócio no consumo interno, mas que priva a população de todo um processo que acontecia no Brasil, de construção de condições para uma alimentação mais saudável.
Isso vinha sendo feito e não vou dizer que era um processo fácil. Todos sabemos a força do agronegócio. Não eram as muitas iniciativas nesse sentido mas tinha um programa e um plano de agricultura orgânica e agroecológica em andamento, e as coisas foram esvaziadas.Tem, por esse lado, um prejuízo grande também.
E não basta. É muito importante a educação alimentar. Sempre defendemos isso no Consea. Brigamos muito por uma regulamentação da publicidade de alimentos, mas é preciso que essa alimentação saudável, essa comida de verdade, tenha condições de ser ofertada. Se não, chegará com um preço muito alto a partir do que se conseguiu produzir.
Temos que combinar esse movimento de restabelecer uma cultura de uma alimentação sadia com o crescimento de condições para que essa alimentação chegue a todos em termos que seja possível adquirir e consumir.
Neste cenário de crise socioeconômica, qual a perspectiva para a população?
Essa é uma questão-chave. Se falamos de reconstrução, temos que, desde já, estabelecer quais serão as bases para essa reconstrução. Gostaria de falar da necessidade efetiva do estabelecimento de uma renda básica, mesma que não seja universal, que venha contemplar a população sem desmontar os esquemas já existentes e o modelo de proteção social. Esse modelo tem que ser reforçado, incorporando a renda básica.
Algumas propostas de renda básica falam de acabar com o Bolsa Família e com os outros programas. E não é isso. Temos que somar, o país tem que investir. O país tem que acreditar que isso não é gasto. É investimento em sua população, que, inclusive, tem um papel fundamental na retomada da economia. Justamente são as camadas de menor renda, que destina a renda que entra para os alimentos, para os vestuários, para outras necessidades essenciais. Isso ativa a economia. A renda básica é chave.
Por outro lado, não podemos continuar com essa Emenda Constitucional que foi feita em 2016, o chamado Teto de Gastos. Só na área da saúde, foram perdidos R$30 bi de lá pra cá. Desmontou as políticas de segurança alimentar e nutricional. Os recursos do PAA, cisternas, tantos outros que tiveram seus orçamentos fortemente reduzidos. Essa é outra prioridade. Essa desastrosa emenda, que inclusive não cumpriu nada das promessas de equilíbrio fiscal que se colocava, mas trouxe enormes sacrifícios para a população, tem que ser revogada. Aliás, é um elemento absolutamente inconstitucional. Tem que ser retirado.
Temos uma série de iniciativas políticas, sem dúvidas, voltadas para o fortalecimento da agricultura familiar que serão absolutamente necessárias nessa reconstrução. O Brasil tem que repensar. A pandemia evidenciou o grau de desigualdade, o grau absurdo de pobreza e falta de condições da população trabalhadora de viver uma vida digna. É preciso acreditar que vamos alterar esse rumo, porque se não, nosso futuro estará bastante comprometido.
Edição: Rodrigo Durão Coelho