O governo federal anunciou nos dias 17 e 18 de junho algumas medidas para a agricultura empresarial e familiar. O primeiro dia do anúncio foi no Palácio do Planalto, com a presença do presidente da República, Jair Bolsonaro. No segundo dia, voltado especificamente para a agricultura familiar, foi realizada uma apresentação via internet, com a presença de alguns convidados, entre eles representantes do Cooperativismo de Crédito Agrícola, mas sem a participação das entidades da agricultura familiar, como era usual nos governos anteriores.
::MPA denuncia: Bolsonaro está propondo um "Plano Safra da Fome"::
A realização destes dois eventos confirma a realidade do campo, onde 84% dos imóveis rurais da agricultura familiar são responsáveis por 70% da produção dos alimentos consumidos no País, ocupando apenas 20% do território nacional. Por outro lado, 16% dos imóveis rurais ocupam 80% do território nacional, sendo responsáveis por 61% das exportações brasileiras no mês de maio. De fato, é preciso reconhecer que a agricultura brasileira não é única, uniforme, e que existem modos de vida e de trabalho completamente diferentes. Não reconhecer isso pode ser uma tentativa de encobrir a realidade.
O contexto de pandemia que o mundo está vivendo atualmente e que poderá se prolongar por mais tempo, tem levado os governos a adotarem medidas de estímulo à economia e de combate ao Novo Coronavírus. No caso do Brasil, um dos países mais seriamente afetados, em parte pelos erros cometidos pelo próprio governo federal, que está em descompasso com os governos estaduais e com as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), é importante considerar as duas dimensões: a econômica e a política.
Na dimensão econômica observa-se uma redução considerável dos juros e uma enorme retração da atividade econômica, que elevou o número de desempregados e a perda da renda. E, na política, o desgaste do Presidente em função da participação em atos contra a democracia, entre outros acontecimentos, o que levou o governo a buscar a ampliação da sua base de apoio no Congresso Nacional rumo ao “Centrão”, onde está a bancada ruralista.
O Plano Safra 2020/2021 foi gestado pelo governo federal nesse contexto: de um lado a necessidade de estimular a economia e de outro de manter e ampliar a base de apoio parlamentar. A agricultura e a Frente Parlamentar da Agricultura (FPA) contribuem com esses dois objetivos.
Os anúncios
Foi anunciada a disponibilização de R$ 236,3 bilhões, um crescimento de 6,1% em relação ao plano anterior. Especificamente para a agricultura familiar foram destinados R$ 33 bilhões, um crescimento de apenas 5,7% em relação ao anterior. Em termos reais o crescimento foi de 4% nas dotações totais e para os beneficiários do Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) foi de 3,6%.
As taxas de juros foram reduzidas para custeio e comercialização, mas em percentuais distintos entre os três segmentos de produtores. A agricultura familiar teve a redução de 13% na taxa de juros mais alta do Pronaf e 16,7% na menor taxa. Para os médios produtores a redução da taxa de juros foi de 16,7% e os grandes produtores tiveram a redução de 25% .
A Taxa Selic está em 2,25%, e a menor taxa de juros do Pronaf ficou em 2,75% ao ano, o que significa que os agricultores familiares que produzem alimentos de consumo interno, que abastecem a mesa dos brasileiros com os alimentos básicos, entre eles o feijão, feijão caupi, mandioca, tomate, cebola, batata-doce, frutas, olerícolas e os produtos da exploração extrativista ecologicamente sustentável, terão que pagar, pela primeira vez na história do Pronaf, taxas de juros 22,2% maiores que a taxa Selic.
Uma prova da pouca atenção aos agricultores familiares são as novas alíquotas básicas do adicional para enquadramento de empreendimentos em regime de sequeiro no “Proagro Mais”, que a partir de 1º de julho de 2020 terão uma elevação muito significativa, tornando os financiamentos de custeio de muitas culturas praticamente inviável economicamente. Alguns exemplos dos novos valores das alíquotas demonstram isso.
As alíquotas para o milho e o feijão cultivado na região Nordeste foram elevadas de 3% para 3,8%, uma elevação de 8,57% no caso do milho e de 3,0 para 3,5 com elevação de 16,7% . A alíquota para o sorgo cultivado na região Nordeste permaneceu em 3%.
As alíquotas do trigo, aveia, cevada e canola cultivados na região Sul foram elevadas de 6,5% para 7%, ou seja, uma elevação de 7,7%. No caso da ameixa, maçã, nectarina e pêssego as alíquotas foram ajustadas de 6,5% para 7,5%, um aumento de 15,4%.
O caso da soja, houve um tratamento privilegiado: a alíquota era de 3,0% e foi para 3.5%, um aumento de apenas 8,6%. Esse tratamento privilegiado à soja demonstra qual é a prioridade do governo: produzir soja para exportação in natura para alimentar animais do oriente e da Europa.
O crédito rural é uma política pública que, para dar certo, exige que a Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) seja apoiada e fortalecida. Não foram anunciados recursos para a ATER nos dois atos de lançamento do Plano Safra. Isso compromete os resultados esperados, como também coloca em risco o uso sustentável dos recursos naturais e a qualidade de vida da população do campo e das cidades. Os agricultores familiares nunca tiveram tão pouco apoio deste serviço como agora.
Outros programas governamentais foram descontinuados ou reduzidos, como é o caso do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)
O Planapo, política desenvolvida pela Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, extinta pelo governo Bolsonaro, deixou de existir nos planos safras. Tendo recebido mais de R$ 1 bilhão no primeiro Plano, agora não foi sequer mencionado, assim como no Plano Safra 2019/2020.
Já o PAA, um programa que apoia a comercialização de uma enorme variedade de alimentos produzidos pela agricultura familiar e que atende uma grande quantidade de organizações sociais, como creches, escolas e asilos, recebeu uma dotação muito limitada de R$ 220 milhões, enquanto a demanda dos movimentos sociais era de R$ 1 bilhão.
::PL propõe pagar os R$ 850 do Garantia-Safra para todos os agricultores cadastrados::
Três anúncios merecem registro. Trata-se do Pronaf Produtivo Orientado, que mesmo que tenha metas acanhadas (R$ 15 milhões e 13 mil agricultores), pode estimular a adoção dessa modalidade do Pronaf que associa crédito e ATER, a partir de uma visão integrada do imóvel rural.
Outro destaque é o Programa Residência Agrícola, que visa apoiar a formação de jovens profissionais dos cursos das Ciências Agrárias e afins, mas que também conta com recursos limitados. Serão apenas R$ 17,1 milhões, contemplando 900 estudantes.
A modalidade de crédito do Pronaf para o financiamento da construção e reforma de moradias para os agricultores familiares foi modificada para atender a demanda dos movimentos sociais do campo. Agora está permitido financiar a construção ou reforma de moradia em imóvel rural de propriedade do mutuário ou de terceiro. Isso permitirá que os jovens filhos de agricultores familiares construam suas residências nas áreas dos pais ou de um terceiro, que concordar em ceder formalmente o local da construção ou a moradia por prazo não inferior a 25 anos.
Uma expectativa não correspondida foi o anúncio do Programa Bioeconomia Brasil – Sustentabilidade. Uma iniciativa que visa aprofundar a Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobidiversidade (PGPM-Bio), foi anunciada como convênios a serem estabelecido com consórcios públicos para preparação dos produtos do extrativismo para o mercado. Os recursos também são muito limitados, com dotação de R$ 4 milhões, podendo apoiar, apenas, 4 projetos de R$ 1 milhão ou 16 de R$ 250 mil.
Esse esforço do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), que recebeu a atribuição de apoiar o extrativismo, função que antes era do Ministério do Meio Ambiente, contrasta com o avanço do desmatamento no bioma Amazônia, e talvez ajude a explicar o tamanho acanhado do programa.
Segundo Joaquim Belo, do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), “estamos um pouco preocupados com esse debate sobre a bioeconomia, corremos o risco de continuarmos como meros fornecedores de matéria-prima. E todos sabemos que a riqueza é gerada na ponta da cadeia, quando os produtos já estão no controle das empresas”.
As reações ao Plano Safra
As manifestações das organizações da agricultura familiar foram negativas ao Plano.
A Confederação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil (Contraf), considera que programas como o Minha Casa, Minha Vida Rural e o premiado Programa de Cisternas, entre outros, não tiveram atenção do Estado. Segundo Marcos Rochinski, Coordenador Geral da Contraf Brasil, “por mais que tenha sua importância, o recurso do crédito anunciado atende só uma parcela que tem acesso ao crédito”. E conclui: “o recurso é insuficiente, sobretudo pelo momento que enfrentamos de pandemia e de desestruturação do processo produtivo dos agricultores familiares”.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag) também segue nessa avaliação. “De um modo geral, a agricultura familiar sai insatisfeita com o Plano Safra anunciado. Precisávamos de mais recursos para investimento e taxas de juros menores, para que os agricultores e agricultoras familiares consigam se recuperar dos efeitos da pandemia. Houve perda de produção e de renda com a suspensão das feiras livres, da venda para o PAA e para o PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], entre outros prejuízos. É preciso reafirmar que é a agricultura familiar que garante a soberania e segurança alimentar do País”, avaliou Aristides Santos.
A Diretora Executiva do Instituto Conexões Sustentáveis (Conexsus), Carina Pimenta, considera que "o Plano Safra 2020/2021 coloca a bioeconomia em destaque. O que a Conexsus sugere é que o esforço para apoiar as atividades relacionadas à produção, ao uso e a transformação de biorecursos, de forma sustentável, deve ser precedido de políticas e programas de apoio às organizações econômicas socioambientais, cooperativas e associações”.
O que se vê na prática é a redução dos recursos para as políticas públicas voltadas para a agricultura familiar, diminuindo o papel do Estado na promoção da segurança alimentar e nutricional da população. E isso pode levar à escassez e ao encarecimento dos alimentos, o que tornará mais penoso o período pós-pandemia. Por outro lado, o governo federal cede à pressão dos ruralistas para garantir a expansão da agropecuária de exportação.
João Guadagnin é engenheiro agrônomo; Paulo Cabral é engenheiro agrônomo e professor do Instituto Federal de Brasília (IFB).
Edição: Geisa Marques