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O sorvete e o racismo estadunidense

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Capa de partitura do espetáculo de quadrilha norte-americana que mostra o personagem chamado de Zip Coon. O espetáculo estimulava o preconceito contra negros livres - Detroit Public Library Digital Colletction
Músicas racistas contribuíam para o ambiente que naturalizava as leis de segregação racial

Para Maria Conceição Oliveira, com quem eu aprendo sempre

Nos subúrbios dos Estados Unidos, durante o verão, uma camioneta com uma animada música chama as crianças para se refrescarem. Gerações e gerações de americanos passaram a reconhecer a música do caminhão de sorvete, e essa lembrança passou a ser uma das mais felizes da infância de muita gente. Mas a música da camioneta de sorvete guarda um segredo racista. Se hoje os caminhões tocam apenas a melodia, a letra original das músicas que as crianças ainda hoje ouvem fazia alusão ao personagem de Zip Coon, um “negro fanfarrão” que “não sabia seu lugar na sociedade”.  

As crianças corriam atrás desses veículos com suas moedas para comprarem o doce. Os caminhões de sorvete, assim como os de hot dog e os de hambúrgueres, tornaram-se símbolo da cultura americana. 

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As músicas, tocadas desde os anos 1920, são duas versões de antigas quadrilhas sulistas –  “Turkey in the straw” e “Ni**er love a watermelon ha! ha! ha!”. Antigas companhias costumavam tocar as músicas em suas lojas também chamando as crianças e jovens como forma de entretenimento. “Turkey in the straw” ridicularizava Zip Coon. Já a letra de “Ni**er love a watermelon ha! ha! ha!” começa chamando os negros que, segundo a música, eram feitos de carvão, para tomarem sorvete – e o único sorvete que eles gostariam seria o de melancia. 

Essas músicas, extremamente racistas, contribuíam para o ambiente que naturalizava as leis de segregação racial, que vigoraram até a década de 1960. Compostas na primeira década do século 19, elas foram usadas como metáforas para negros ao longo de todo o século.

Zip Coon tornou-se um sinônimo pejorativo de homens negros. Na música ele era um menestrel assim como Jim Crow, outro personagem de quadrilha que também tornou-se um sinônimo pejorativo de negro. A palavra “nigger” traz consigo tanto racismo e preconceito que foi praticamente banida do vocabulário – e as únicas pessoas a usá-las hoje em dia são notórios racistas e segregacionistas. 

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Jim Crow foi usado para nomear as diversas leis segregacionistas dos estados sulistas. Depois da Guerra de Secessão (1861-1865), em que a escravidão foi abolida em todos os Estados Unidos, esses estados aprovaram uma série de leis, chamadas de Jim Crow Law, que limitavam os direitos de negros, tanto de voto como da vida em sociedade. Essas leis, teoricamente, diziam que brancos e negros era iguais, mas deveriam estar separados – nas escolas, nas bibliotecas, nos restaurantes, parques, ônibus e na vida social. Na prática o que se verificou foi a instituição de um regime racista comparável ao apartheid sul-africano. 

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Mas, voltando ao sorvete, na época em que as músicas tornavam-se correntes nos caminhões de sorvete, alguns estados sulistas também usaram as leis segregacionistas para proibirem os negros de tomarem sorvete de baunilha. Aos negros só estaria permitido tomar sorvete de baunilha no dia da independência estadunidense, 4 de julho, como uma forma de reverenciar a cultura branca. Várias gerações de negros lembram-se do fato com espanto e tristeza. 

Dentro do racismo estrutural do sistema americano, mencionar as músicas e atitudes racistas presentes no prosaico ato de tomar sorvete pode parecer super menos importante ou até superficial. Mas são em pequenos gestos da vida cotidiana que a batalha contra o racismo se faz essencial.   

Edição: Rodrigo Chagas