Após a demissão massiva de 300 professores da Universidade Nove de Julho (Uninove), uma das instituições de ensino superior com mais estudantes do país, a indignação entre profissionais e estudantes cresce cada vez mais. Prestes a iniciar as aulas remotas na última segunda-feira (22), os docentes foram surpreendidos com uma notificação sobre o desligamento ao acessarem o sistema interno da instituição.
A mensagem solicitava que os professores comparecessem ao RH da universidade para a entrega do crachá e equipamentos disponibilizados para auxílio às aulas online durante a pandemia do novo coronavírus.
Em entrevista ao Brasil de Fato, um professor que lecionou por mais de cinco anos em um curso na área de ciências exatas da instituição estima que 60% do corpo docente da graduação em questão tenha sido demitido.
Perplexo ao ler a mensagem de desligamento, constatou tratar-se de uma demissão massiva ao consultar seus colegas.
Em nota divulgada na última terça-feira (23), a Uninove alegou que a decisão foi tomada devido aos impactos econômicos da covid-19.
“Diante da pandemia que atingiu o mundo, tivemos que nos adaptar à nova situação e fomos ao limite para manter nosso quadro funcional e todas as nossas obrigações contratuais em dia. (...) Todas as medidas de readequação foram necessárias para preservar o sonho dos futuros profissionais que aqui se formarão”, diz o texto.
O professor, por sua vez, refuta o argumento e afirma que nos últimos anos já havia um processo contínuo de demissão dos trabalhadores de ensino ao fim dos semestres.
“Como qualquer empresa privada, o lucro é o objetivo principal, o resto fica em segundo plano. É diminuição de custo e pronto. É uma empresa como outra qualquer, o produto que muda. Tem empresa que vende feijão e empresa que vende educação, mas o objetivo é o lucro”, critica.
Como qualquer empresa privada, o lucro é o objetivo principal, o resto fica em segundo plano
Ele avalia ainda que a precarização não ficará restrita ao seu antigo local de trabalho. “A Uninove tomou a iniciativa mas muitas outras gostariam de fazer a mesma coisa. Talvez aguardem com a repercussão negativa. Ninguém esperava que houvesse essa dimensão, mas muitas vão querer seguir esse caminho”.
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Reação
Poucas horas após a demissão coletiva, imagens do aviso do desligamento e um abaixo-assinado organizado por estudantes circulava amplamente pela internet. O documento reivindica a recontratação imediata dos profissionais e até esta quinta-feira (25), contava com quase 28 mil assinaturas.
No dia do desligamento, as aulas online que seriam lecionadas pelos docentes foram substituídas por uma palestra motivacional com o Padre Fábio de Melo.
O estudante Lucas Martins Villela, que cursa o terceiro ano de Design na Uninove, afirma que os demais estudantes e funcionários receberam a notícia com revolta. Três professores que ministraram aulas para sua turma foram demitidos e agora as aulas às quintas e sextas estão comprometidas.
“Os professores não tiveram sequer a oportunidade de se despedir e notificar os alunos de sua saída. Muitos só descobriram quando fizeram o login para acesso à aula e foram surpreendidos com a palestra. É engraçado a universidade tomar essa atitude de colocar uma palestra motivacional bem no dia em que realiza uma ação de demissão em massa, notificando os professores com uma mensagem pop-up na central do aluno”, ironiza o estudante.
Ele acredita que as palestras serão utilizadas como estratégia pela instituição até o fim do semestre. Como forma de apoio, Villela e outros colegas organizaram um vídeo em homenagem aos seus professores.
Estudante do segundo ano do curso de Fisioterapia, Alycia Silva de Oliveira recebeu a notícia da demissão de dois de seus professores com muita tristeza.
“Achei totalmente desrespeitoso. Uma falta de empatia sem igual. Até o momento, achávamos que estava tudo bem, que estavam fechando as notas e lançando no sistema. Sempre tivemos uma relação muito boa com todos os professores, sempre aceitaram nossas críticas, nos davam críticas construtivas. Principalmente esses dois professores, tínhamos um carinho muito grande”, relata Oliveira.
Na opinião da jovem, as demissões pioram as condições limitantes do Ensino a Distância (EAD), que a impede de participar de aulas práticas. O processo de precarização das aulas já começa a dar sinais.
“Com todas as dificuldades, principalmente nossa professora de Anatomia, se desdobrava para passar o conteúdo da maneira mais fácil para aprendermos. Tenho certeza que vai impactar nossa formação. Um exemplo foi a aula de ontem, era uma professora muito querida que ainda estava finalizando a matéria e tivemos aula com um professor totalmente aleatório com mais quatro salas. Um excesso de informação, muita gente conversando. E eu já tinha cursado aquele módulo, já tinha visto aquela matéria”.
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EAD
Assim que o professor Márcio Esdras de Godoy, que atuou por 3 anos e meio como docente do curso de Design, recebeu o pop-up informando sobre sua demissão, a primeira reação foi tirar um print da tela e enviá-lo ao grupo dos professores da graduação.
“Eu fiquei chocado, você fica sem reação em um primeiro momento. Mas como eu tenho dito, não tinha o que esperar. É uma inovação negativa o que eles fizeram”, diz, sobre a “demissão online”.
“É assustador ser demitido em meio a uma pandemia, com duas filhas, com uma esposa. É triste”.
O docente defende que o processo de desligamento poderia ser feito de forma humanizada. “Tenho amigos docentes de outras instituições, nós sabemos que estão acontecendo as demissões, mas que receberam uma ligação. Não sei nem se ligaram por conta do rebuliço que estava dando. Outras empresas também estão demitido mas tudo de uma forma mais digna”, complementa.
É assustador ser demitido em meio a uma pandemia
Para Godoy, a pandemia foi encarada pela instituição como o momento oportuno de ampliar as aulas do Ensino a Distância a partir da decisão do Ministério da Educação (MEC), que em dezembro de 2019 publicou uma portaria que permite que 40% das aulas de cursos universitários presenciais sejam ensinadas à distância.
Ele avalia que o enxugamento das aulas práticas e presenciais é prejudicial para a formação dos estudantes.
“Como oferecer um curso um curso de enfermagem, de engenharia, de arquitetura, em EAD? É impossível. Por mais que seja uma tendência, para mim é uma ladeira abaixo. Vai vir e vai diminuir muito o salário dos professores. Vão substituir mestre e doutor, por tutor. Ou até mesmo os professores irão se sujeitar a ganhar menos da metade do que ganham hoje porque, lógico, precisamos comer pra sobreviver. É a era do sucateamento da educação”.
De acordo com o site oficial da instituição, a Uninove tem mais de 150 mil alunos distribuídos por cinco unidades e um centro de pós-graduação localizados na capital paulista, além de mais de 50 polos de educação a distância espalhados pelo país.
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Justiça do Trabalho
O Sindicato dos Professores de São Paulo (Sinpro-SP) solicitou ao Tribunal Regional do Trabalho uma liminar para que as demissões fossem anuladas de forma imediata. Logo quando as primeiras denúncias sobre a demissão coletiva começaram a chegar, a entidade da categoria procurou a Uninove para saber os motivos dos desligamentos e quantos profissionais seriam atingidos, mas, de acordo com Silvia Bárbara, diretora do sindicato, não obteve retorno algum.
A dirigente explica que a Convenção Coletiva da categoria determina que, caso o profissional seja demitido no meio do semestre, ele deverá receber até o fim do período. Exatamente por isso, os desligamentos costumam se concentrar em junho e setembro.
Bárbara classifica a atitude da Universidade Nove de Julho como “inusitada, desrespeitosa e inédita”.
“A demissão é ruim sempre, em qualquer circunstância, mas a forma como foi feita mostrou uma falta de respeito com os professores, com os estudantes e com a educação. Estamos pedindo o cancelamento das suspensões em caráter liminar, imediato, e, em segundo lugar, a mediação do Tribunal Regional do Trabalho, já que a Uninove não quis se manifestar”, afirma.
É um ensino de baixo custo e de altas margens de lucros. E como eles estão fazendo isso? Reduzindo, principalmente, o custo da folha de pagamento
Ao contrário do alegado pela Uninove, para o Sinpro as demissões não são consequência da pandemia da covid-19. A chegada do coronavírus, na verdade, teria acelerado um processo de precarização registrado nos últimos anos, que visa aumentar o lucro da instituição privada.
“A Uninove é uma das maiores universidades, um dos maiores grupos educacionais do Brasil, e representa muito o modelo de ensino superior privado que está se tornando referência no país inteiro, o modelos dos empresários da educação. É um ensino de baixo custo e de altas margens de lucros. E como eles estão fazendo isso? Reduzindo, principalmente, o custo da folha de pagamento”, alerta Bárbara, ressaltando o estímulo ao EAD dado pelo governo federal.
Ela acrescenta que o posicionamento do MEC “recupera uma política dos anos 1990, de suprir a necessidade de vagas no ensino superior pelas universidades privadas e não pela abertura nas universidades públicas. Foi o modelo usado nos anos 1990 e que foi retomado a partir do Temer e agora, principalmente, com Bolsonaro”.
Futuro em risco
Os estudantes ouvidos pela reportagem do Brasil de Fato afirmam que o descontentamento com a Universidade só se esgarçou com a demissão em massa dos professores. Conforme relata Lucas Villela, por exemplo, os aumentos abusivos na mensalidade são frequentes, assim como as dificuldades com instalações precárias da instituição.
“O que aconteceu essa semana foi o limite para aumentar a indignação dos alunos. Fomos nos perguntando se, se nem os professores foram respeitados nesse momento, o que podemos esperar desse fim de semestre e do que está por vir?”, questiona. “Essa atitude nos preocupa e nos faz questionar se realmente vale a pena seguir na Universidade, e se os 50 anos de história da Uninove estão tendo realmente o propósito de oferecer o melhor pros alunos”.
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O sentimento é compartilhado por Alycia Oliveira, que teme pela continuidade de sua formação. “É muito frustrante. Não só eu como outras pessoas estão pensando em trancar. Eu já tranquei anteriormente porque já tive problema com a Uninove. Quando realmente precisa, acaba ficando na mão”, desabafa.
Procurada por meio de sua assessoria de imprensa, a instituição não respondeu demanda da reportagem para se posicionar sobre o pedido de liminar ao TRT e sobre o abaixo-assinado.
Edição: Rodrigo Chagas