Um confronto com dezenas de mortes na fronteira entre Índia e China, em 15 de junho, chamou a atenção do mundo para o aumento das tensões na região do Himalaia, no sul da Ásia. Dez dias depois, a poeira parece ter baixado, mas o impasse está longe do fim.
Para entender os entraves ao processo de pacificação, o Brasil de Fato reuniu informações divulgadas por jornalistas e especialistas que vêm repercutindo os embates desde a semana passada.
Confira os interesses que movem as disputas territoriais entre as duas potências nucleares e as perspectivas de resolução do conflito.
O que aconteceu
Vinte militares indianos foram mortos em confronto com soldados chineses na noite daquela segunda-feira (15). No dia seguinte, o governo da China confirmou 43 baixas, entre mortos e feridos.
Foi a primeira vez em 45 anos que um enfrentamento entre as Forças Armadas dos dois países resultou em vítimas fatais.
As mortes foram causadas por pedradas e golpes com hastes de madeira cravejadas de pregos, a que o governo indiano chamou de embate “corpo a corpo” – um acordo assinado em 2005 impede o uso de armas de fogo entre os exércitos na região.
Dez soldados indianos foram capturados pela China e libertados na quinta-feira (18).
Antecedentes
No dia 19 abril, funcionários da inteligência indiana identificaram um aumento incomum de tropas chinesas na chamada Linha de Controle Real (LAC, na sigla em inglês), que divide os dois países. Por conta da pandemia de covid-19, o Exército da Índia optou por não reforçar o patrulhamento da região, julgando se tratar de um exercício de rotina.
Na semana seguinte, o Exército de Libertação Popular da China cruzou a LAC e avançou em direção ao vale do rio Galwan e ao entorno do lago Pangong Tso, entre a Índia e o Tibete.
Ocupações temporárias de militares chineses na região contestada já haviam sido realizadas em 2013, 2014 e 2017. Porém, segundo fontes oficiais, as operações de 2020 têm natureza diferente – pela primeira vez, foram flagrados tanques de guerra e armas de artilharia, por exemplo.
Em 5 de maio, houve um primeiro confronto com pedras, lançadas de ambos os lados, por conta de desentendimentos nos limites que cada exército deveria respeitar. As negociações para recuo das tropas foram malsucedidas, criando as condições para o episódio de 15 de junho.
Impasses
Com cerca de 4 mil km de extensão, a LAC atravessa os territórios indianos Jammu e Caxemira, Ladakh, Uttarakhand, Himachal Pradesh, Siquim e Arunachal Pradesh.
Parte dessa área foi objeto de disputa durante a guerra sino-indiana em 1962, que deixou 1,3 mil mortos e terminou sem definição sobre o desenho da região. O estado de Arunachal Pradesh, por exemplo, é chamado até hoje pelos chineses de Tibete do Sul.
O epicentro das tensões de junho está localizado entre a região norte de Ladakh e o deserto de Aksai Chin – área reivindicada pela Índia, mas controlada pela China.
“Arunachal Pradesh, que o embaixador chinês na Índia afirmou em 2006 ser território chinês, inclui o distrito de Tawang, local de nascimento do 6º Dalai Lama. Qualquer reconhecimento da soberania indiana sobre ela prejudicará a soberania da China sobre o Tibete, pois implicaria que o Dalai Lama é indiano”, escreve Yun Sun, diretora do Programa China no instituto de pesquisa Stimson Center.
“Aksai Chin oferece a única conexão rodoviária direta entre a Região Autônoma da China de Xinjiang Uyghur e a Região Autônoma do Tibete. Perder Aksai Chin, em outras palavras, comprometeria a estabilidade de toda a fronteira ocidental da China”, completa a especialista no mesmo texto.
Editor-chefe do portal indiano Newsclick, Prabir Purkayastha observa que o confronto do dia 15 ocorreu em meio a tentativas de resolução do impasse na região. “Foi lamentável para os dois lados. Ninguém queria que aquilo acontecesse”, analisa. “É muito difícil e não faz sentido apontar um culpado, quem atirou a primeira pedra”.
As indefinições na fronteira são anteriores à independência da Índia, em 1947. Os colonizadores britânicos e os chineses nunca chegaram a um consenso sobre as linhas que dividem a região.
Hoje, a China respeita a fronteira estabelecida em novembro de 1959, enquanto os indianos consideram a LAC de setembro de 1962.
Como a região estava praticamente inabitada, devido ao relevo acidentado e às baixas temperaturas, essa indefinição nunca resultou em embates militares desde a guerra sino-indiana.
Nos últimos 27 anos, cinco acordos de paz mantiveram a situação sob controle. “Devido ao crescimento econômico dos dois países nas últimas duas décadas, o cenário se alterou. Ambos aumentaram muito a sua infraestrutura na região”, completa Prabir, em entrevista ao programa Let’s Talk.
O jornalista ressalta os interesses chineses sobre aquele território. Em primeiro lugar, a necessidade de efetivar o Corredor Econômico da China no Paquistão (CPEC, na sigla em inglês), permitindo um acesso facilitado à costa da África pelo oceano Índico que fortaleceria o projeto da “nova rota da seda”.
Rival histórico da Índia, o Paquistão é o principal aliado da China no sul da Ásia e também teria interesse na efetivação do projeto. O corredor atravessaria a Caxemira, território disputado há décadas por indianos e paquistaneses.
Em agosto de 2019, o governo indiano revogou a autonomia da região, informando que tanto a parte da Caxemira controlada pelo Paquistão quanto a região de Aksai Chin pertenciam à Índia. O governo chinês considerou a ação “inaceitável” e disse que teve sua “soberania territorial violada”, mas não conseguiu reverter a situação.
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As movimentações chinesas nas proximidades da LAC também estão relacionadas às obras da Rodovia Nacional 219 – um dos gatilhos da guerra de 1962. Quando concluída, a estrada terá mais de 10 mil km e será a maior do país. A parte final do projeto extrapolaria a fronteira, segundo a interpretação indiana.
De acordo com o jornalista e analista de defesa Ajai Shukla, com os avanços realizados desde maio, a China conquistou 60 km² de território indiano – incluindo o vale do rio Galwan, estratégico para a continuidade do projeto da rodovia. A informação não foi confirmada por nenhum dos governos.
A construção de estradas em direção à Índia é uma das cinco áreas prioritárias do 13º Plano Quinquenal Chinês (2016-2020), que rege as ações civis e militares do país.
A Índia, da mesma forma, vem ganhando terreno. O projeto mais ousado é a estrada Darbuk-Shyok-DBO, em Ladakh, que levou quase 20 anos para ser construída e corre paralelamente à fronteira com a China.
O país liderado pelo primeiro-ministro Narendra Modi também mantém uma base militar a cerca de 20 km da cordilheira de Caracórum, reivindicada pelos chineses.
Se analistas indianos consideram que a China tirou vantagem das lacunas no patrulhamento da fronteira por conta da covid-19 a partir de maio, do lado oposto a Índia é questionada por aproveitar a “distração chinesa” – em plena guerra comercial com os EUA – para expandir sua infraestrutura na região nos últimos meses.
Contradições
Desde o dia 15, o governo indiano vem se contradizendo ao tentar explicar os motivos do confronto. Menos de 24 horas após a confirmação das mortes, o Ministério de Assuntos Exteriores informou que a China havia violado um pacto de respeito à fronteira, firmado em 6 de junho. Na sequência, Modi disse que a Índia é “amante da paz”, mas garantiu que a morte dos militares não seria em vão.
Fontes do alto escalão do Exército da Índia revelaram à imprensa, na quarta-feira (17), que soldados chineses haviam cruzado a LAC, ignorando o compromisso mútuo de retirada das tropas.
A versão oficial mudou no dia 19, quando Modi disse que ninguém entrou no território indiano e reconheceu que a área não pertence “incontestavelmente” à Índia. O discurso foi recebido como um balde de água fria pela imprensa local, que clama por boicotes e retaliações contra a China.
O governo chinês, em contrapartida, mantém a acusação de que a Índia invadiu seu território. O discurso de pacificação, assumido por Pequim, contrasta com novas movimentações de tropas na região. O especialista Ajai Shukla estima que a China aumentou sua presença militar em 30% ao longo da fronteira de Ladakh desde o dia 15.
“Enquanto a China faz o maior avanço militar na fronteira indiana desde 1962, o avestruz Modi está com a cabeça presa no fundo da areia”, resumiu Shukla em sua conta no Twitter, no dia 23.
O afã nacionalista de alguns órgãos e membros do governo indiano, que cogitaram boicotes à China, repercutiu mal do outro lado da fronteira. Em conversa com o jornal chinês Global Times, Long Xingchun, pesquisador da Universidade de Estudos Estrangeiros de Pequim, afirmou que essas notícias suscitaram raiva e antipatia no povo chinês. Para ele, os confrontos no vale do Galwan podem representar um ponto de inflexão em 70 anos de relações entre os dois países.
Perspectivas
Lideranças do alto escalão dos exércitos chinês e indiano acumulam dezenas de horas de reuniões na fronteira, mas nenhum acordo foi divulgado até o momento.
A pesquisadora Yun Sun não acredita em uma resolução definitiva do impasse, mesmo que a radicalização dos conflitos não interesse a nenhum lado.
“China e Índia acabarão encontrando um compromisso mútuo para resolver temporariamente o impasse em Ladakh, já que nenhum deles deseja uma guerra. No entanto, a fronteira instável continuará a se desestabilizar, apodrecer e produzir novos confrontos”, afirmou, em texto publicado no portal War on The Rocks.
Em artigo no Newsclick, o diplomata aposentado M.K. Bhadrakumar lembra que, apesar dos avanços indianos no setor bélico, a capacidade militar chinesa é significativamente maior. O autor observa que, durante décadas, a China não reagiu à construção de infraestrutura pela Índia próximo à fronteira – o quadro só mudou em 2017, quando a aliança entre Modi e Donald Trump se fortaleceu.
Prabir Purkayastha alerta para a postura dos Estados Unidos desde o embate de 15 de junho. “Trump disse que quer ‘mediar’ o conflito entre Índia e China. É de chamar a atenção que ele não se coloque ao lado da Índia nem em um impasse com a China, sua maior rival. Então, esse tipo de alinhamento não vale a pena”, analisa.
Para evitar uma guerra, o ultranacionalista Modi precisará escolher entre "dar uma resposta à altura" das perdas humanas do último dia 15 ou preservar sua economia, abalada pelo coronavírus.
Na visão do editor-chefe do Newsclick, a Índia só tem a perder se “esticar a corda” com a China. Entrar em um embate geopolítico ao lado dos EUA ou mesmo aceitar ajuda de Washington “seria um suicídio”, segundo ele. “Não podemos deixar o olhar televisivo-militar se sobrepor ao bom senso”.
A China é o maior parceiro comercial da Índia. As trocas comerciais entre os dois países somaram o equivalente a R$ 450 bilhões em 2018.
Edição: Leandro Melito