Desde o pronunciamento do presidente argentino Alberto Fernández, no dia 8 de junho, sobre a intenção de estatizar o conglomerado Vicentin o assunto está presente em todos os setores no país. O mandatário anunciou que enviará um projeto de lei ao Congresso Nacional para intervir e expropriar o grupo agropecuário, que possui cerca de 25 empresas e é a principal cerealífera do país, que está em processo de quebra e sob investigação judicial por fraude em empréstimos e fuga de capitais.
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Por um lado, a notícia é boa para os grupos de produtores que demandava a investigação e o controle de capitais da empresa, e também por ser uma resposta aos empréstimos fraudulentos e a fuga de capitais praticada pela cerealífera durante os anos de governo de Mauricio Macri. Por outro lado, é intensa a reação instantânea da oposição e a voz dos interesses do monopólio alimentício – como disse uma apresentadora do noticiário do canal Telefe, Cristina Pérez, em uma tendenciosa entrevista ao presidente na noite de quarta-feira (17), “a palavra ‘expropriação’ faz eriçar a pele do setor empresarial”. Rapidamente esses grupos moveram a opinião pública, através da mídia, em um panelaço nas varandas e janelas das zonas mais abastadas, sob o lema "primeiro vão pelas empresas, depois por nossas casas".
Em resposta aos constantes ataques de setores da oposição, Fernández ressaltou que a empresa está quebrada, e que seu governo não tem objetivo de estatizar empresas, senão para resgatar as consideradas centrais para o desenvolvimento do país. “Acredito que o Estado deve estar presente quando uma empresa dessa magnitude cambaleia e pode terminar em mãos estrangeiras”, afirmou. “Temos que estar muito felizes por estar dando um passo a caminho da soberania alimentar”, disse o presidente em resposta a um jornalista de Clarín, um dos principais meios de comunicação que representam a oposição. “O debate seguirá no Congresso. Aí terão oportunidade para comparar-nos com a Venezuela, ou com o que queiram”, ironizou.
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Ricardo Peidro, secretário geral da Central Autônoma de Trabalhadores da Argentina (CTA), ressalta esse debate como uma batalha cultural, mas também como cortina de fumaça para outro caso em processo judicial, revelando um esquema de espionagem do governo Macri a dirigentes políticos, jornalistas e, inclusive, dentro de seu próprio governo. “É uma batalha cultural, onde ganham as subjetividades”, afirma Peidro. “Um panelaço em defesa de uma empresa que fraudou os produtores é incompreensível. Sei que é um esforço, mas há uma camada com quem devemos convencer para ganhar essa batalha cultural. Os meios jogam um papel importante, mas se dependesse disso, Macri teria sido reeleito”, conclui.
Esquema com governo macrista
Atualmente em concurso preventivo de credores, a empresa deve AR$ 18.500 milhões ao Banco Nación, principal instituição pública financeira da Argentina. A dívida acumulada viola a norma do banco de empréstimo a grandes empresas, o que evidencia o estreitamento da agroexportadora com o governo de Mauricio Macri. A cerealífera foi financiadora das campanhas da colisão Cambiemos, sendo a principal em 2019, ano de eleição em que Macri foi derrotado pelo atual presidente, Alberto Fernández.
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O diretor do Banco Nación, o economista Claudio Lozano, fundador da CTA Autônoma, foi nomeado em janeiro deste ano e revela que, ao assumir o cargo, as contas no banco designadas à empresa já estavam vazias.
“Essa conta atuava em garantia do crédito, de forma que as autoridades anteriores poderiam ter executado esse valor e recuperado o crédito, coisa que não fizeram”, avalia. “A irregularidade é evidente, e só tem uma explicação, que é o forte vínculo político da condução da empresa Vicentin, por Alberto Padoán e Gustavo Nardelli, com o presidente Macri. Não tem muito o que discutir.”
Resgate e soberania
O projeto de lei prevê a passagem de gestão de Vicentin à YPF-Agro, empresa líder em capitais mistos com maioria estatal. A medida favoreceria o sistema cooperativo, como afirmou o ministro da Agricultura Luis Basterra: “Esta decisão permite que o Estado, que mostrou ser um bom administrador da YPF sem necessidade de ser monopólico, possa também articular com o sistema cooperativo, que é o melhor modelo de transferência de agregação de valor às pequenas e médias empresas.”
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Sendo uma grande empresa de alimentos, e com a qual contam cerca de 2.600 produtores, foi declarada como sendo de utilidade pública pela lei de expropriação anunciada pelo presidente. “Trata-se uma operação de resgate a uma empresa de magnitude no mercado agrícola. Isso favorece a Argentina nesse momento tão singular, para alcançar a soberania alimentar que o país precisa”, afirmou Fernández, em seu pronunciamento, assegurando que trabalhadores e produtores continuaram contando com a empresa, e que nenhum emprego estaria em risco com a expropriação. O resgate seria também, segundo o presidente, uma forma de enfrentar a crise financeira do país, reforçada pela pandemia do coronavírus.
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Dessa forma, o tema da expropriação instalou a pauta sobre a soberania alimentar, em um amplo debate sobre o modelo do agronegócio e a consequente subordinação dos pequenos e médios produtores às demandas das multinacionais, que controlam o preço e a distribuição dos alimentos. No caso da Argentina, a produção e exportação de grãos e cereais conformam um dos principais pilares da economia do país, sendo o conglomerado Vicentin uma referência no setor agroalimentário.
Demanda
O controle de capital do conglomerado por parte do Estado é reivindicado por organizações e setores que representam os trabalhadores, os agricultores familiares e camponeses. O controle de preços é um dos pontos enfatizados como consequência desse resgate, já que pequenos e médios produtores são castigados com os baixos preços comprados pelas grandes empresas, seguindo o modelo do agronegócio.
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Integrante do Movimento Nacional Camponês Indígena de Santiago del Estero (Mocase), Deolinda Carrizo, destaca que a intervenção do Estado em uma empresa exportadora é importante para o setor produtor e caminho a um novo sistema de produção. “Lutamos e defendemos a soberania como o direito da população a produzir, e que seja para o mercado local, acessível, saudável, variada de acordo a cultura dos povos. A expropriação de Vicentin é um passo mais nesta grande luta da produção de alimentos, e para sair das garras das transnacionais, que fazem dos nossos alimentos uma mercadoria.”
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Ricardo Peidro reitera o tom de celebração que o anúncio sobre o projeto de intervenção e expropriação de Vicentin foi recebida nos setores populares. “Isto é visto pelas organizações como um triunfo sobre o poder, um dos poderes reais que há. Essa grandes empresas só enriquecem: apesar das crises, não são as que sofrem o impacto. A crise impacta os produtores, principalmente os pequenos e médios”, afirma, enfatizando a necessidade de criar um poder que respalde o setor popular. “Apenas com Vicentin, não vamos transformar a realidade argentina, mas é um caminho que acreditamos ser o correto. Seria uma grande desilusão que esse processo termine não se aprofundando. Agora, aguardamos os próximos passos.”
Edição: Lucas Weber