O contexto da pandemia do novo coronavírus ampliou o debate sobre a dívida externa na Argentina. Organizações sociais se reuniram no início deste ano para exigir a suspensão do pagamento e uma auditoria sobre a legalidade da dívida. O país está em risco de entrar em default – ou moratória, quando um país deixa de pagar a dívida – e, consequentemente, de ser levado a um processo em tribunais internacionais. O governo do presidente Alberto Fernández, que assumiu em dezembro de 2019, tenta negociar com seus credores. Já venceram diversas datas de pagamento dos juros enquanto as partes tentam entrar em acordo.
Nas últimas semanas, a proposta apresentada pelo Ministério da Economia voltou a ser rejeitada pelo grupo dos três maiores detentores de títulos da dívida argentina, que concentram 40% do valor total. Apesar disso, há uma disposição a continuar negociando e a próxima data estipulada para firmar um acordo entre o governo e investidores é 12 de junho.
O governo argentino quer a reestruturação da dívida, que não seria paga por três anos, entre 2020 e 2022, e, a partir de 2023, passaria a ser paga em uma taxa média de 0,5%. Essa proposta quitaria cerca de 5% da dívida, reduziria os juros e aliviaria de maneira considerável a necessidade de recursos em curto e médio prazos. A reestruturação foi vista positivamente pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e, recentemente, pelo presidente francês Emmanuel Macron, que manifestou apoio às propostas argentinas diante do FMI e do Clube de Paris.
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Herança neoliberal
O destino político e social do país entra em tensão enquanto se desenrolam as negociações e se agrava a crise social. A desaceleração econômica em consequência da pandemia se soma aos resultados das políticas dos últimos quatro anos, quando o país esteve sob comando do Cambiemos, partido do ex-presidente Mauricio Macri. É o que aponta o economista argentino Julio Gambina.
“O endividamento público da Argentina é um tema muito preocupante, que vem desde a ditadura militar, e que foi se agudizando com o tempo, principalmente durante a gestão de Mauricio Macri”, afirma. “A dívida passou de representar pouco mais de 50% do PIB para 90%. A dívida pública externa equivale praticamente à produção de bens e serviços de um ano do país. Estamos falando US $323 bilhões. É uma hipoteca impossível de pagar.”
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De fato, na última auditoria do FMI, a dívida foi classificada como insustentável pelo próprio organismo. O economista explica que, dos US$ 323 bilhões, 20% corresponde a dívidas com fundos financeiros externos, que administram investidores estrangeiros que possuem títulos da dívida pública argentina. Essa porcentagem equivale a US$ 66 bilhões. Por outro lado, o país possui uma dívida similar com organismos internacionais, como o FMI, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento.
De todos eles, o mais importante é o FMI, pelo empréstimo de US$44,5 bilhões, outorgado em 2018 durante o governo Macri.
Estamos falando US$ 323 bilhões. É uma hipoteca impossível de pagar
“A Argentina não pode pagar nem aos credores nem ao FMI”, continua Gambina. “A Argentina apresenta a ideia de que não pode pagar sua dívida, e o presidente Fernández diz que o país está em default virtual. O que se discute agora, a princípios de junho, é se esse default virtual se tornará um default real.”
A vida antes da economia
Se por um lado o governo atual se posiciona a atender às necessidades sociais antes de pagar a dívida, pautando, assim, sua proposta de negociação com os credores, por outro, há um grande questionamento sobre a posição favorável ao pagamento. Isso sem mencionar a campanha da oposição que, mascarando seus interesses de discurso moral, esbraveja que “as dívidas se pagam”. Porém, processos semelhantes de endividamento com tais organismos historicamente revelam como esses países são subordinados à lógica do movimento internacional de capitais e às decisões que se tomam fora deles.
Pelas próprias palavras de Alberto Fernández, a vida vem antes da economia, frase que virou lema de sua postura política diante da crise sanitária do coronavírus. Nesse contexto, o presidente também ganhou maior popularidade já no início do seu governo, período marcado pela pandemia e pelo notável contraste de controle de número de contágios em relação a outros países que não optaram pela quarentena desde os primeiros casos confirmados de covid-19.
Ainda que Fernández contrarie a reivindicação de parte da população, o governo se posiciona favorável ao pagamento de sua dívida, mas retomando a ideia de que isso não deve significar “deixar as necessidades do povo em segundo plano”.
“Pagar essa dívida, seus vencimentos e os juros, implica deixar de atender uma série de necessidades da nossa população”, afirma o integrante da Frente Pátria Grande e do ALBA Movimentos Manuel Bertoldi. “Nós, dos movimentos populares, vemos como acertada a posição do governo de priorizar a vida antes do lucro. No entanto, devemos ser conscientes que, hoje, a Argentina possui mais de 50% da população abaixo da linha da pobreza”, afirma. “Se não for possível chegar a um bom acordo em função dos interesses dos setores populares como prioridade por parte do Estado, então, é preferível não acordar.”
Pagar essa dívida, seus vencimentos e os juros que implica, significa deixar de atender uma série de necessidades da nossa população.
Nesse sentido, movimentos sociais pedem que o pagamento da dívida seja suspenso e destacam o fato de a dívida ser “odiosa”, ou seja, que não é sinônimo de investimento nos interesses da população e garantias de direitos sociais.
A agenda defendida pelos movimentos populares na Argentina inclui uma proposta de aumento do salário social complementar, de atualmente 8.500 pesos argentinos (equivalente a cerca de R$ 425), e de implementar uma agenda de terra e teto para garantir condições de vida digna nos setores rurais e urbanos. “Estamos pressionando o governo para levantar essa agenda”, diz Bertoldi.
Um futuro possível
Enquanto a Argentina debate a melhor forma de atender às necessidades da população, o Brasil discute sobre a possibilidade de contrair empréstimos em moeda estrangeira. Assim como o processo de endividamento e suas graves consequências sociais na Argentina serve de lição para seus países vizinhos, abre-se espaço também para contemplar novos horizontes, outras alternativas que não essas apresentadas como únicas medidas de solução em governos neoliberais, como o ministro da economia Paulo Guedes busca também para o Brasil.
Em recente conferência com integrantes das organizações que assinam a autoconvocatória pela suspensão do pagamento da dívida argentina, o Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel destacou os principais pontos da reivindicação: “Exigimos uma auditoria para determinar o que é e o que não é legítimo nessa dívida, e se não vamos parar nos mesmos lugares. Porque são mecanismos de dominação. Não somos países pobres, somos países empobrecidos.” Citando Eduardo Galeano, que dizia que “quanto mais pagamos, mais devemos e menos temos”, Pérez Esquivel lançou a interrogante: “E então, o que faremos? Voltaremos aos mesmos lugares?”
Quanto mais pagamos, mais devemos e menos temos.
Essa pergunta parece revelar uma chave para reflexões que, no contexto de crise sanitária e social atual, estão tomando novo corpo. “Felizmente, a dívida externa não é um assunto alheio à grande maioria popular”, assinala Bertoldi. “Isso permite gerar um debate amplo e coletivo, e elevar os níveis de consciência que são fundamentais para pensar o país que queremos, em uma sociedade que, como parte da América Latina, é profundamente desigual.”
Segundo o economista Julio Gambina, terminar com o flagelo do endividamento remete a um modelo de integração econômico e produtivo. Além de se pensar em instrumentos para uma nova arquitetura financeira na região – entre projetos já discutidos, como a ideia de fundos de financiamento regional –, a integração produtiva da América Latina poderia atender não só à região, mas resolver, inclusive, o problema da fome no mundo; e, também em matéria energética.
“O endividamento é a solução apresentada pelas corporações transnacionais. Mas a solução deve ser a soberania dos nossos povos e a luta articulada que recrie o internacionalismo popular necessário para encarar um projeto autônomo de independência que atenda às necessidades das nossas populações”, reflete.
“Temos a tecnologia, a experiência e capacidade humana de produção de trabalhadores, camponeses, produtores, intelectuais, profissionais vinculados a áreas imensas que permitiriam resolver o problema de alimentação não só de nossos territórios, senão gerar um excelente produção alimentícia para combater a fome no mundo. Nossa América tem uma riqueza em bens comuns imensa: água, terra, minerais, biodiversidade. Podemos pensar um projeto produtivo que ponha em primeiro lugar a satisfação das necessidades do povo e do meio ambiente, e não destruir a natureza como o faz, hoje, o modelo produtivo do capitalismo.”
Edição: Rodrigo Chagas