"Eu quero que vocês morram". Foi isso que um funcionário do Presídio Estadual de Alcaçuz, em Natal, no Rio Grande do Norte, disse a um detento que estava vomitando sangue. A informação é de um ex-presidiário que cumpriu pena e contou como está a penitenciária atualmente. Entretanto, o caso não é isolado, e só se sabe quando algum preso é colocado em liberdade.
Walbert Silva* saiu do Presídio Estadual de Alcaçuz na semana passada. Ele disse ao Brasil de Fato que teme uma rebelião no local, porque as torturas e privações de direito são diárias."Tem uns lá que estão doentes, com febre, com dor de cabeça, deitados, sem conseguir se levantar. Eu também estava doente lá e a gente não sabe o que é isso que está acontecendo, alguns estão vomitando sangue. Nós falamos com os agentes pedindo um remédio e eles dizem que querem mesmo é que a gente morra. Eu dei graças a Deus por sair de lá, porque eu estou vendo a hora de acontecer qualquer coisa, alguma rebelião, porque muitos não estão aguentando mais", conta.
:: "Nessa pandemia, estamos esperando um massacre", afirma Pastoral Carcerária ::
O marido de Mariana Silva* está no mesmo presídio e ela não fala com ele desde o dia 13 de março. "Não temos informações de nada. A SEAP (Secretaria de Administração Penitenciária) implantou números nas unidades para termos informações, mas os policiais penais não estão dando informações para a gente. Os meninos que saem do sistema é que nos informam que eles estão sendo torturados direto", diz ela.
Dois meses sem notícias
Historicamente, a sociedade fez uso de uma série de mecanismos para lidar com as pessoas que cometem delitos. Em solo brasileiro, de acordo com a lei, pessoas são mandadas ao presídio para serem ressocializadas. Isso em tese, porque os relatos em todo o país são de torturas e privações de direitos.
:: Pesquisa indica que alimentos e produtos de higiene não estão chegando aos presos ::
Com a pandemia do novo coronavírus, os governos estaduais amparados no decreto de calamidade pública restringiram ainda mais o acesso aos encarcerados. Assim, familiares de seis estados brasileiros estão há quase dois meses sem saber, sequer, se o seu parente privado de liberdade está vivo.
Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), o país tem hoje 755.274 presos. Esse número vem crescendo gradativamente. Em 2017, foram cerca de 722 mil e em 2018 mais de 744 mil. Em 15 de fevereiro deste ano, o presidente Jair Bolsonaro comemorou o aumento do encarceramento em seu Twitter. Mas para quem tem um parente preso, não há motivos para comemorar.
Juliana Silva* tem dois familiares encarcerados em Manaus, capital do Amazonas. Um foi detido por tráfico, outro por roubo. Com o decreto de calamidade, que restringe o acesso às unidades prisionais, ela está há quase dois meses sem falar com eles. E pior, sem notícias também. "A gente não sabe mais se vai perder nosso ente para a covid-19 ou para a polícia. Então é muito difícil, porque a gente está passando na pele o que é estar privado de liberdade, a gente tem limitações e já está sendo difícil. Agora, para eles é mais complicado", diz ela.
:: Pastoral Carcerária cobra medidas do governo para conter coronavírus nas prisões ::
No Amazonas, a situação se assemelha à boa parte do país: superlotação, falta de higiene, de água, de comida adequada e violência diária contra os detentos. O irmão de Juliana está preso há três anos, o sobrinho há pouco mais de doze meses. Diante da forma como ambos são tratados, Juliana já perdeu as esperanças na possibilidade de ressocialização, como é proposto na lei brasileira.
"Ali não há ressocialização é desumanização. Eles são tratados como animais e até um animal a gente trata bem, mas eles são maltratados. Uma pessoa que é espancada sem motivo, uma pessoa que não oferece nenhuma resistência a uma revista, que não oferece resistência às regras impostas e ainda assim é espancada, torturada e humilhada não tem como melhorar. E não é só tortura física é também psicológica", denuncia.
A questão das violações de direito aos encarcerados no nosso país é complexa uma vez que as denúncias são feitas, mas elas continuam sendo cometidas. Atualmente, mesmo que todos sintam na pele que a privação de liberdade já é uma punição por si só, o sistema se encarrega de punir os detentos mais e mais. E não somente a quem está atrás das grades, mas todos os que os cercam.
Desde que teve seus parentes encarcerados, a rotina de Juliana foi completamente modificada: desde ter que fazer cadastro no sistema prisional para visitar seus parentes até se habituar a viver com o medo constante de receber uma ligação e saber que eles foram mortos.
:: Doença de pele atinge presos de Roraima há meses, denuncia Pastoral Carcerária ::
Juliana conta que as agressões no Amazonas vão desde tapas, socos, tiros, até detentos que são obrigados a ficar nus e segurar o órgão genital do companheiro como punição. Ela diz que incitar o ódio é uma das práticas mais corriqueiras no cárcere. "Eles já chegaram até a mandar os presos a cantar uma música. Caso alguém erre a letra, todos são espancados. O objetivo é fazer eles sentirem ódio uns dos outros", lamenta.
Consciente de que seus parentes cometeram delitos, Juliana gostaria, apenas, que a privação de liberdade fosse o suficiente e que ninguém precisasse ser torturado. Afinal, pergunta ela, quais benefícios a violência e as agressões podem dar aos detentos?
"Para mim é uma tortura. É um sofrimento diário, contínuo. De manhã a gente acordar, tomar um café e saber que eles não estão se alimentando, quando cai a noite, a gente fica imaginando como é viver no escuro, porque nas unidades daqui não tem luz nas celas e pavilhões. Então, é muito doloroso saber que eles estão convivendo com pessoas doentes, porque já estavam [doentes]. A covid-19 é uma a mais, que pode levar vidas, porque a imunidade dos internos é baixa em todo o lugar do Brasil. A gente sabe que o risco é muito grande, a gente sabe o que está acontecendo, porque se não estivesse acontecendo, eles não teriam feito aquela revolta lá no UPP no dia 12 de maio. Eles estavam pedindo justamente isso: água, comida, energia e medicamento".
:: Secretaria nega casos de coronavírus em presídios de SP; sindicato afirma contágio ::
A rebelião da qual Juliana fala ocorreu no dia 2 de maio quando detentos da Unidade Prisional do Puraquequara (UPP) iniciaram uma rebelião para exigir melhores condições dentro do presídio. A UPP conta com 1.079 presos.
A pandemia é mais uma forma de matar
A coordenadora nacional da Pastoral Carcerária, Irmã Petra Pfaller, lembra que há anos a Pastoral Carcerária denuncia as situações desumanas e degradantes do cárcere no Brasil. Desde o atendimento na área de saúde, atendimento jurídico, restrições no atendimento à assistência religiosa, alimentação insuficiente ou ainda estragada. Tudo isso, que é rotina para os detentos, piorou com a pandemia do novo coronavírus.
"Está agravando cada dia mais e mostra cada vez mais que o sistema é mortífero, um sistema repressivo que só traz mortes, mais violência e não traz paz, não traz ressocialização e não diminui a violência. Dentro do cárcere e fora do cárcere os mais afetados são os pobres, os negros, as pessoas que vivem nas periferias, nos morros, nas favelas e que vivem atrás das grades", diz ela.
Segundo Irmã Petra, as visitas por videoconferência estão sendo feitas em pouquíssimos presídios do Brasil e com tempo reduzido. Há denúncias, em Manaus, por exemplo, de que os detentos, ao narrar situações de maus tratos, têm a ligação interrompida.
"Poucos presídios estão fazendo videoconferência, são poucas unidades que temos conhecimento que estão fazendo isso. Essas visitas online são por pouco tempo e supervisionadas. Temos relatos em que as visitas são por dois minutos e quando a pessoa presa fala alguma coisa sobre as más condições a ligação é cortada. Então, é muito complicada essa questão de falta de transparência e essa incomunicabilidade para os familiares", afirma ela.
A falta de comunicação, contudo, vai além da relação do familiar com o preso, chegando também à Vara de Execução Penal e ao próprio Estado, diz Irmã Petra. Ela afirma que com a pandemia, ninguém sabe o que está ocorrendo, de fato, dentro dos presídios, o que se tem conhecimento é quando algum preso saí e narra os horrores vividos na prisão.
:: Rebeliões atingem 4 presídios em SP; presos estão expostos a contágio por coronavírus ::
Segundo dados do dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), no dia 15 de maio foram confirmados 653 presos e presas com covid-19 no país. Destes, 26 morreram em decorrência da doença, mas como as subnotificações são um fato admitido pelas autoridades de saúde, o número pode ser ainda maior.
"Os dados do Depen não mostram a realidade, o que nós podemos acompanhar são alguns agentes da pastoral carcerária, que têm contato com a direção e repassam informações. O estado aumentou a sua postura repressiva durante a pandemia. A recomendação do CNJ [Conselho Nacional de Justiça] do desencarceramento, infelizmente, não está sendo aplicada pela grande maioria dos magistrados", contesta Irmã Petra.
Ainda segundo o Depen, foram realizados apenas 2.575 testes para a covid-19 nos detentos, o que representa menos de 0,4% da população carcerária. Outro problema denunciado há anos é a superlotação. Entre janeiro de 2000 e junho de 2020, a população carcerária brasileira saltou de cerca de 232 mil para de 775 mil pessoas. Ainda assim, há somente pouco mais de 461 mil lugares, ou seja, a taxa de superlotação ultrapassa 160%.
:: Pesquisa indica que alimentos e produtos de higiene não estão chegando aos presos ::
A Pastoral Carcerária lembra que o sistema prisional já estava em colapso antes da pandemia, uma vez que 31% das unidades prisionais do Brasil não contam com qualquer tipo de assistência médica. "A superlotação junto com as péssimas condições de higiene, o excesso de umidade e a falta de ventilação só tornam a realidade deles ainda mais cruel", diz ela.
Será que estão vivos?
"Estamos todos há tempos sem poder estar perto de quem amamos. Para isso, usamos o celular, mandamos mensagem, fazemos uma chamada de vídeo". O relato é de Bárbara Maués, de 38 anos. O filho dela está preso no Complexo penitenciário do Ceará e há dois meses a comunicação tem sido feita apenas por carta ou e-mail.
"Até o momento eu recebi a resposta de duas cartas que eu mandei. Mas eu sou letrada, eu tenho acesso à internet, mas eu sei como é a vida de quem tem um filho preso. Eu sou uma exceção, tem pessoas que nunca receberam resposta. Mas a verdade é que a notícia que eu tenho é através dessa carta e eu nem sei se é uma resposta real ou se está manipulada. Todas dizem que ele está bem, mas eu não posso nem olhar nos olhos do meu filho, porque mãe que é meu conhece o olhar do filho e sabe quando está tudo bem", desabafa ela.
:: Ministério Público pede inclusão de presos e agentes em testes rápidos do coronavírus ::
A última vez que Bárbara o viu pessoalmente foi em março. De lá para cá, viver com a angústia é uma rotina. Segundo ela, a situação no estado do Ceará piorou desde a entrada do novo secretário da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado do Ceará (SAP-CE). Para a mãe do detento, após a chegada da Força de Intervenção Penitenciária (FTIP) todo tipo de violência foi cometido.
Desde que o filho foi preso, a mãe se tornou responsável financeiramente por tudo que ele utiliza dentro da prisão: colchão, fardamento, cueca, insumos de higiene e até a água que ele bebe. E não somente ela, mas todas as mães de detentos do Ceará. Bárbara diz ainda que entende a suspensão das visitas como forma de proteger os detentos, mas discorda da arbitrariedade do sistema e da ausência de informações.
"A gente está falando de um local que é insalubre, estamos falando de um espaço, que se não for a família que dê esse suporte tanto emocional quanto dos insumos básicos, o estado não dá. Para gente, os familiares, o contexto da pandemia adoece, por tudo o que a gente já enfrentava antes. A pandemia veio para nos deixar com essa angústia, porque a gente sabe que o presídio é um amontoado de corpos pretos", diz ela.
:: Psicólogos se voluntariam para ajudar familiares de detentos, que estão sem visitas ::
Em Rondônia, Maria Santos* diz que as pessoas estão mais preocupadas em prender do que em ressocializar. Atualmente, a Associação dos Familiares de Rondônia, da qual ela faz parte, está justamente empenhada em fazer isso, porque o Estado não faz.
"É difícil para uma mãe diante de uma pandemia dessas não saber como o seu familiar está, não saber se ele está bem. Ele [meu filho] já teve tuberculose e ficou curado, mas é muito preocupante, é preocupante mesmo".
O Brasil de Fato conversou ainda com familiares de detento de São Paulo e do Pará. Todos enfrentam restrições de saber sequer se o parente está vivo. No Pará, uma associação de familiares de presos denuncia que a única forma de obter informações é por meio de advogados, quando isso é possível.
"Infelizmente esse privilégio [advogados] nem todas têm. Como é que nós familiares vamos poder dormir tranquilos sabendo que qualquer hora pode acontecer uma tragédia dentro dos presídios do Estado do Pará. Lá não tem alimentação adequada, não tem remédios. Lá eles não tem material de higiene", questiona.
O presídio em questão mencionado pela denúncia é do Complexo de Americano, localizado em Santa Izabel.
:: Artigo | Coronavírus e a imediata soltura de presos: uma questão de direitos humanos ::
Em São Paulo, Kátia Santos* visitou seu marido na Penitenciária de Irapuru, no dia 22 de fevereiro. No dia 7 de março ela tentou vê-lo, mas foi impedida devido à pandemia do coronavírus.
"Tive que ficar na cidade por conta da passagem de volta que seria só no domingo. Conclusão: dinheiro gasto à toa, fora o psicológico. Depois desse final de semana não teve mais visita, a única notícia que tenho do meu marido foi por uma carta que recebi. Ele escreveu em 17 de março e chegou no final de abril. Dizem que a doença já chegou lá. Está muito difícil essa situação, pois funcionários não vão falar como estão cada um dos detentos", diz ela.
Todas essas mães, esposas, tias e familiares estão vivendo algum nível de isolamento social para se protegerem do novo coronavírus. Mas, somado a essa isolamento, há o silêncio perturbador da ausência de informação sobre aqueles que, mesmo quando acabar a pandemia, continuarão privados da liberdade e torcendo para que os outros perigos, além do coronavírus, como o sistema carcerário e sua precariedade, não lhes roubem a vida.
A Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) do Amazonas disse que desconhece as denúncias apontadas pela reportagem e que as unidades prisionais recebem constante fiscalização por parte dos órgãos de controle, como o Ministério Público do Estado (MPE). Sobre a falta de informações, eles disseram que foram "o primeiro estado a implantar o sistema de visita por vídeochamada enquanto as visitas de familiares estiverem suspensas por conta da pandemia do novo coronavírus".
O Brasil de Fato entrou em contato com cada uma das secretarias de administração penitenciária dos Estados e aguarda posicionamentos das que, até o momento, não se manifestaram.
*Todos os nomes foram modificados para preservar não só a segurança das mulheres que fizeram as denúncias, mas também dos seus parentes privados de liberdade.
Edição: Douglas Matos