“Eu quero a minha belezura de volta, eu quero a minha belezura de volta”, era o que gritava uma mulher com sofrimento mental após 24 anos sem se olhar no espelho, período em que estava presa, internada em um manicômio.
A mulher havia sido transferida, recentemente, para uma residência terapêutica, que a psicóloga Lumena Castro, docente da Unifesp e integrante do Laboratório de Saúde Coletiva e do Instituto Silva Leme, acompanhava à época.
Na casa nova ela teve direito de se recuperar da internação, receber apoio de profissionais de saúde mental, o direito à liberdade e ao próprio reflexo. Essa é apenas uma das tantas histórias relembradas por Castro em seus 40 anos de carreira no atendimento a saúde mental. “O manicômio não rouba só a liberdade de ir e vir, ele rouba das pessoas a própria identidade”, explica
Há pouco mais de 30 anos, relatos de aprisionamento em manicômios como esse eram comuns como forma de cuidado das pessoas com sofrimento mental. “Os manicômios eram lugar onde se depositavam pessoas que tinham sofrimento, ou que saiam um pouco da norma social e lá elas ficavam para o resto da vida, morriam ali dentro sem nenhum cuidado. Além de ser um lugar de tortura, de horror”, explica a psicóloga.
Mas, a violação de direito a liberdade, a “realidade cruel e perversa”, como definiu ela, que muitos desses lugares ofereciam como tratamento e cuidado dessas pessoas, provocou reações na sociedade civil a partir da década de 1970.
Foi então que o lema “Por uma sociedade sem manicômios” ganhou força com a mobilização de profissionais de saúde, usuários, familiares, professores, movimentos sociais e trabalhadores, e se transformou no Movimento de Luta Antimanicomial.
O Movimento se tornou uma data para manter acessa a necessidade de se combater esse legado, celebrado nesta segunda-feira (18), pelo Dia Nacional de Luta Antimanicomial: “O 18 de maio pra gente é um dia muito importante, o dia de luta são todos os dias, mas ele marca a importância dessa luta. Então quem puder no 18 de maio mais fortemente ainda, celebrar esse nosso trabalho do próprio cuidado em liberdade, denunciar as possibilidades de desrespeito a esse direito seria bastante importante”, pontua Lumena Castro.
A data marca encontros históricos do Movimento, que aconteceram durante o ano de 1987, e registraram uma nova forma de tratamento das pessoas com sofrimento mental no país, a Reforma Psiquiátrica Brasileira. O objetivo era e, ainda é, que todo cidadão com transtornos mentais, tenha o direito fundamental à liberdade, o direito a viver em sociedade, além do direito a receber cuidado e tratamento.
Mesmo depois de algumas conquistas como a própria residência terapêutica aberta, o Movimento de Luta Antimanicomial resiste contra as tentativas de intervenções na Política Nacional de Saúde Mental do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), que retomam, por exemplo, a lógica manicomial de internação.
::Luta antimanicomial: Movimentos denunciam retrocesso nas políticas de saúde mental::
Para entender melhor o cenário da luta antimanicomial no Brasil, confira a seguir a entrevista do Brasil de Fato com a psicóloga e sanitarista, Lumena Castro:
Ainda há preconceito com pessoas com doença mental?
Infelizmente, nós ainda temos muitos preconceitos, não só com aquelas pessoas que tem um sofrimento específico mais grave, mas com a diferença. As diferenças ainda não são aceitas com tranquilidade, o direito a diferença ainda não é respeitado. Infelizmente, nesse momento que temos um presidente que debocha e desrespeita as diferenças fica ainda mais grave a vivência das pessoas que sentem na pele todos os dias o preconceito com relação ao seu modo de viver.
Qual a importância do Estado no cuidado de pessoas com doença mental e no apoio às famílias?
É importante ressaltar que o direito de acesso a saúde, o direito à liberdade, como é um direito que tem que ser garantido a todos, ele exige uma postura e uma ação muito clara do Estado brasileiro. Portanto, o estados federal, estadual e municipal tem um papel central na construção de rede de cuidados, na construção de modos de acesso das pessoas aos serviços públicos, que definem como será construída essa rede. Essa não é uma politica de governo, tem que ser uma política de Estado.
Nesses 30 anos, a gente conseguiu, passando por vários governos, ir construindo e qualificando uma rede, que é o que a gente chama de substitutiva aos manicômios. Pessoas que ficaram internadas, como ainda tem infelizmente hoje, morando 10, 20, 30 anos em manicômios puderam sair desses lugares e acessar uma rede que se compõem de Unidades Básicas de Saúde, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), alguns funcionando 24 horas, com essa política pública de garantir o cuidado e a liberdade. São residências terapêuticas, responsáveis por tirar essas pessoas que moraram e ficaram presas no manicômio tanto tempo da sua vida, para que elas possam morar em liberdade, andar, circular. Isso tem sido fundamental na garantia de direitos.
E também a possibilidade de termos ações intersetoriais. Não é só saúde que tem um papel nessa política de Estado, também assistência social, cultura e esporte. Várias ações integradas são previstas nessa rede de cuidados intersetoriais para que possamos garantir a cada uma dessas pessoas o direito a vida em liberdade, à cidade, à moradia. Enfim, o direito a um cuidado que possa fazer diferença na vida dessas pessoas.
Essa é uma rede, repito, que não é uma proposta de um governo apenas. Ela estava sendo construída nos últimos 30 anos em todo o Brasil, em todos os municípios, estados, nessa perspectiva de um cuidado antimanicomial.
O Movimento de Luta Antimaniconial conquistou passos importantes na garantia de direitos das pessoas com doença mental como a Política Nacional de Saúde Mental. O que mudou nessa política no governo Bolsonaro?
É importante marcar que essa não é uma política construída apenas a partir de propostas de governos. Essa é uma política que nasce de movimento social. Esse movimento social se fortalece, cresce, ocupa todo o território nacional e essa política só tem a força que tem, só conseguiu se transformar no que ela se transformou, porque ela é fortemente construída nessa relação com os movimentos sociais.
Os movimentos de luta antimanicomiais, são mais de um, são movimentos que tem ajudado a construir as propostas dessa política e isso fez com que a gente invertesse, nos últimos anos, o financiamento da política nacional.
Um recurso financeiro que era fortemente colocado, há muitos anos atrás, nos hospitais psiquiátricos e manicômios passou a ter uma inversão de prioridade com relação à rede ambulatorial aberta, substitutiva. Esta inversão de financiamento federal mexe com interesses econômicos, com pessoas que ficam bastante incomodadas nessa mudança da política, priorizando, inclusive financeiramente, os serviços abertos e assim diminuindo o financiamento para hospitais psiquiátricos e manicômios.
::Movimento Antimanicomial denuncia 'indústria da loucura' no Governo Bolsonaro::
O governo Bolsonaro está fazendo uma mudança muito substancial nessa política. Ele trouxe de novo os manicômios para dentro da rede de cuidados de saúde mental, que havia sido retirada nos últimos 30 anos. Por isso que a rede que a gente construía, a gente chama de substitutiva aos manicômios.
O Brasil estava fechando manicômios e ampliando a rede de cuidado aberta e o governo Bolsonaro vem inverter essa lógica. Ele recupera o manicômio para dentro da rede de cuidados e inverte o orçamento.
Hoje o orçamento federal vai prioritariamente para serviços fechados, manicômios e comunidades terapêuticas, e vai diminuindo os cuidados de serviços abertos, como CAPS, Unidade Básica, consultórios de rua e os vários tipos de cuidados que a gente faz nos territórios. Então é uma mudança absurda, importante e que de fato coloca em risco muitas conquistas que a gente vinha alcançando nesses 30 anos.
Como estão hoje os serviços públicos para atendimento a pessoas com doenças mentais severas e crônicas?
O governo Bolsonaro está fazendo um movimento muito forte de desmanchar a rede substitutiva e a priorização dos serviços abertos de cuidados e está investindo nos manicômios. Isso, se a gente olhar de primeira mão, pode significar que todo mundo agora passou a cuidar a partir da lógica manicomial e não é verdade. Um movimento muito importante tem sido feito em cada serviço de saúde mental público no Brasil.
Nos CAPS, nas UBSs nós temos trabalhadores que têm feito toda a diferença. Eu tenho muito contato com a rede de saúde mental, converso muito com os trabalhadores, com os usuários e a gente vê o esforço, o empenho das equipes de trabalhadores de manter em cada serviço um cuidado com a lógica antimanicomial, um cuidado que prioriza o que a gente chama de Projeto Terapêutico Singular. Os trabalhadores fazem um trabalho com cada pessoa que está sendo atendida, para que possa reconstruir seu cotidiano, ampliar suas conexões com coisas que são importantes na vida, trabalho, educação, acesso à cultura, relações afetivas, enfim.
Esses serviços de saúde mental que existem em todo o território nacional, em todas as regiões que a gente tem de saúde - são mais de 400 - são serviços que tem feito muita diferença nesse cuidado. E tem enfrentado essa orientação do governo federal de voltar à uma ênfase no cuidado manicomial. É importante que a gente deixe claro que esse movimento tem garantido ainda que existam em muitos serviços, espaços, os cuidados com a perspectiva de garantir o direito a liberdade, o direito à vida nos territórios.
Agora, claro que a mudança no governo federal não é pouco importante, porque o financiamento é fundamental para essa rede existir. Quando o governo restringe o financiamento de vários CAPS, de ações intersetoriais, na perspectiva do cuidado em liberdade para pessoas com sofrimento psíquico grave e para pessoas em uso abusivo de álcool e drogas, que é um outro tema que entrou fortemente nos últimos anos na discussão dessa política, você enfraquece a qualificação, ampliação de serviços e, logicamente, portanto, você enfraquece a possibilidade do cuidado em liberdade e fortalece aqueles que estão investindo em cuidados presos em manicômios e comunidades terapêuticas.
Com a pandemia do novo coronavírus, como ficaram os atendimentos a essas pessoas?
Um dos efeitos da pandemia é que para essas pessoas que ficaram muitos anos presas nos manicômios e agora estão morando nas residências terapêuticas, ter que ficar presa na casa tem um sofrimento ainda agravado, porque recupera pra elas aquele período de reclusão. Como se fosse um retrocesso na vida.
Mas a saúde tem exercido um papel muito importante além dos hospitais, UTIs, que a gente fala bastante na imprensa, nos territórios com Unidades Básicas de Saúde, com os CAPS atuando muito fortemente com os movimentos sociais, lideranças de território, comunidades para construir alternativas de cuidado que possam nos ajudar nisso.
E a rede de saúde mental tem tido um papel bastante importante. Nos CAPS, por exemplo, alguns atendimentos tiveram que ser reorganizados, porque tinha muito trabalho em grupo, as pessoas ficavam muito juntas, isso foi reorganizado para outras formas de cuidado mais individuais.
Mas os CAPS tem tido um papel também muito importante com quem antigamente não acessava esse serviço. Não são pessoas com um sofrimento psíquico mais grave, que demandam cuidados mais intensivo, mas pessoas que, por causa da pandemia, estão com ansiedade, estão com medo, não estão conseguindo lidar com as suas emoções. Essas pessoas têm acessado os CAPS em muitos territórios e tido ali um acolhimento, uma possibilidade de escuta e de cuidado, que antes eram pessoas que nem sabiam talvez que existisse um serviço como esse perto da sua casa, no seu bairro.
Nós temos também um trabalho importante dos CAPS hoje, dos profissionais de saúde mental, para ajudar as Unidades Básicas de Saúde a trabalhar também essas questões que a pandemia traz mais fortemente, de aumento do sofrimento emocional.
Além desse cuidado na saúde mental, as famílias de pessoas que fazem uso abusivo de álcool e drogas, também tem participada da construção de ações concretas, tipo construir uma pia no bairro, numa praça para quem está na rua e não tem acesso, discutir com as lideranças daquele território.
Em São Paulo, por exemplo, tem um movimento que chama Rede Brasilândia Solidária, que a saúde mental também faz parte muito fortemente e que tem ajudado a construir alternativas de enfrentamento à pandemia para além das questões específicas da saúde mental.
Essa é a hora que a gente precisa se unir, montar rede solidária. Isso tem sido um movimento bem forte na saúde, na atenção básica, na saúde mental, que a gente tem entendido como movimento que faz toda a diferença nos territórios que as pessoas estão.
::Movimentos de moradia organizam ações de solidariedade em comunidades em todo o país::
Nem sempre movimentos puxados pelo governos, mas pelas próprias pessoas, com participação dos movimentos sociais, dos movimentos dos trabalhadores, que estão em serviço, dos usuários, enfim, um movimento que vem da base e vem dos territórios.
Edição: José Eduardo Bernardes