“A gente vem dizendo há tempos: se o mundo não parou para escutar os alertas que a terra vinha dando, a terra parou o mundo para se fazer escutar. E é exatamente nesse momento que a gente está nessa pandemia”, afirma a coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sônia Guajajara.
O primeiro caso confirmado de contaminação por covid-19 entre indígenas brasileiros foi de uma jovem de 20 anos do povo Kokama, no dia 25 de março, no município amazonense Santo Antônio do Içá. De lá para cá, diariamente novos casos vêm surgindo.
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Diante do descaso do governo federal e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) de fazer um acompanhamento mais rigoroso, foi criado o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, composto por lideranças indígenas das cinco regiões do país, colaboradores e voluntários, que tem como objetivo acompanhar a evolução da pandemia causada pelo novo coronavírus em tempo real.
Enquanto os dados levantados pelo Comitê até essa quinta-feira (14) apontam 92 óbitos indígenas, 446 infectados e 38 povos atingidos, números registrados pela Sesai informam 19 óbitos e 301 confirmados. “É absurdamente inaceitável o que a Sesai está fazendo. Ela não está contabilizando todos os óbitos indígenas, e não só, além de não estar dando conta, nega-se a fazê-lo com as informações levadas até ela”, aponta Sônia.
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De acordo com ela, mesmo quando o Distrito Sanitários Especiais Indígenas (Disei) declara o óbito, o caso não está sendo alimentado no Sesai. Além disso, relata, os DISEIs foram orientados a não receber nenhum tipo de ajuda que venha de organizações não governamentais ou mesmo do movimento indígena. “A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) teve uma iniciativa no estado de ajudar as Casas de Assistência à Saúde Indígenas (CASAIS) e com isso mandou um pequeno recurso para cada uma delas comprar Equipamento de Proteção Individual (EPIs) para os profissionais da Saúde e algumas dessas casas estavam dizendo que não podiam receber porque tinham orientação do Disei. Negar apoio, nesse momento, dessas parcerias é totalmente inaceitável”, afirma.
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Para Sônia é preciso que o Estado brasileiro reconheça oficialmente esses dados levantados pelo movimento indígena. “Não dá para manter essa situação no anonimato como se tivesse tudo bem, ou como se não existisse óbito entre os indígenas”, frisa.
Povo Kokama pede socorro
Em relação à covid-19 em território indígena a preocupação maior e com situação mais grave está no estado do Amazonas, com 69 óbitos, atingindo principalmente o povo Kokama, com 41 mortes. Segundo a APIB, o contágio foi feito por um médico vindo de São Paulo a serviço da Sesai, que estava infectado com o vírus. “O descaso do governo federal e da Sesai fez com que a região do Alto Solimões seja, atualmente, o território com a maior quantidade de casos confirmados de indígenas com o novo coronavírus no Brasil e que o povo Kokama seja a população indígena com mais mortos até este momento”, ressalta a entidade.
“Meu povo está morrendo e temos feito denúncia. Pedimos socorro e ninguém faz nada, os municípios tanto alto como médio Solimões estão abandonados pelo governo, não temos médicos, não temos respiradores, teste rápido, nossas máscaras é do jeito que a gente tá se virando. Pedimos socorro porque queremos evitar o genocídio do povo indígena. Nossas vidas é como se não tivéssemos valor. Somos povos originários”, desabafa Milena Kokama. Emocionada, relata brevemente ao Brasil de Fato RS, entre lágrimas as agruras e descaso.
“Nossa rua é o rio, nosso carro é a canoa, para sermos transportados precisamos de UTI aérea”, explica Milena. Os indígenas com suspeita de covid-19, ficam no Hospital de Guarnição de Tabatinga (militar) com poucos recursos, lá estavam sete kokamas, dos internados, dos quais dois vieram a óbito. Milena, com voz embargada, informa que durante três semanas lutaram para que fosse removido para Manaus, uma de suas lideranças tradicionais, Guilherme Padilha, um dos que faleceu. Mesmo tendo conseguido articular uma UTI aérea a demora da resposta e a burocracia que envolve a liberação de remoção, Guilherme veio a óbito nessa quinta-feira (14). “Se nosso líder tivesse sido removido há três semanas atrás, com certeza ele não teria falecido.”
Além disso Milena relata que nas certidões de óbito ao invés de constar como indígena, são registrados como pardos. A justificativa que dão para isso é a necessidade do Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (Rani), ao qual nem todos possuem. “Não é um documento feito por branco que vai dizer se sou ou não indígena. Eu sei o que sou, não sou parda, sou povo originário. E no meu último documento quero que esteja lá, indígena”, finaliza Milena.
Para Sônia, se o Estado brasileiro, se a Sesai quisesse poderia logo no início ter instalado barreira sanitária ali e evitado essa proliferação. Diante da ausência do Estado, aponta a coordenadora, se está buscando parcerias da sociedade civil, das entidades de apoio, de órgãos internacionais, órgãos oficiais de Saúde para pensar em como adotar estratégias próprias. “Vimos que somos nós que temos que buscar agora formas de nos proteger, porque sabemos que o governo não vai assumir, não está assumindo a população de forma alguma, muito menos nós indígenas, e ele continua fazendo tudo ao contrário do que tem que ser feito”, conclui.
Na região Sul, o primeiro caso confirmado no estado de Santa Catarina foi de um ancião do povo Kaingang de 81 anos da aldeia Condá, no município de Chapecó. E no Rio Grande do Sul mais dois indígenas testaram positivo para covid-19, na TI Nonoai.
Estados com casos de mortes
Amazonas: 69
Amapá: 1
Ceará: 4
Pará: 6
Pernambuco: 6
Rio Grande do Norte: 1
Roraima: 3
São Paulo: 1
Alagoas: 1
Povos indígenas do Brasil atingidos diretamente pela covid-19
1) Apurinã (AM)
2) Atikum (PE)
3) Baniwa (AM)
4) Baré (AM)
5) Borari (PA)
6) Fulni-ô (PE)
7) Dessana (AM)
8) Galiby Kalinã (AP)
9) Guarani (SP)
10)Guajajara (MA)
11) Hixkaryana (AM)
12) Huni Kuin (AC)
13) Jenipapo Kanidé (CE)
14) Kariri Xocó (AL)
15) Kaingang (RS)
16) Karipuna (AP)
17) Kokama (AM)
18) Macuxi (RR)
19) Mura (AM)
20) Munduruku (AM)
21) Pandareo Zoro (RO)
22) Pankararu (PE)
23) Pankará (PE)
24) Palikur (AP)
25) Pipipã (PE)
26) Pitaguary (CE)
27) Potigua (RN)
28) Sateré Maué (AM)
29) Tabajara (CE)
30) Tariano (AM)
31) Tapeba (CE)
32) Tembé (PA)
33) Tikuna (AM)
34) Tukano (AM)
35) Tupinambá (CE)
36) Tupiniquim (ES)
37) Warao (Amazônia Venezuelana - casos registrados no Pará, Pernambuco, Roraima)
38) Yanomami (RR)
A mãe terra enfrenta dias sombrios
Carta final da Assembleia de Resistência Indígena, redigida em 9 de maio
A mãe terra enfrenta dias sombrios. O mundo atravessa sua maior crise social, econômica e política provocada pela pandemia da covid-19 que atinge apenas seres humanos, colocando a humanidade em profunda reflexão e resistência pela preservação da vida. Nós povos indígenas, assim como os brancos também sofremos e somos vitimados por este vírus que já ceifou milhares de vidas no planeta.
É hora de refletir sobre o modo de vida que exercemos até os dias atuais, pois as diversas crises ambientais como aquecimento global e o forte desmatamento foram o prenúncio do que estamos vivendo hoje, foram os alertas da mãe terra de que nosso modo de existir necessita ser repensado e por hora nossa solidariedade precisa ser exercida.
Para o Brasil e o mundo, pode até ser novidade essa guerra viral, mas para nós povos Indígenas não. Já conhecemos porque fomos vítimas destas doenças utilizadas como estratégias em pleno processo de invasão do Brasil usadas para exterminar nossos povos, nossa identidade e nosso modo de vida.
No Brasil atravessamos dias difíceis, de muita tristeza e diversas crises, já são mais de 10 mil vidas, dentre as quais somam-se 64 indígenas vítimas fatais, que tiveram suas histórias cerceadas devido ao profundo descaso e ausência de políticas públicas capazes de assegurar a manutenção dessas vidas.
Não são apenas números, são pessoas, são memórias e histórias dos povos Apurinã, Atikum, Baniwa, Baré, Borari, Fulni-ô, Galiby Kalinã, Guarani, Hixkaryana, Huni Kuin, Jenipapo Kanidé, Kariri Xocó, Kaingang, Karipuna, Kokama, Macuxi, Mura, Munduruku, Pandareo Zoro, Pankararu, Palikur, Pipipã, Sateré Maué, Tariano, Tembé, Tikuna, Tukano, Tupinambá, Tupiniquim, Warao e Yanomami, todos afetados pela pandemia!
A crise política em curso no Brasil para além de acentuar as sombras sobre o nosso sistema democrático mostra a face cruel do fascismo em marcha dividindo o país em dois polos; os que defendem as vidas; e o lamentável lado dos que defendem apenas o sistema econômico, o latifúndio, a grilagem de terras que são as bases históricas do racismo provedor de desigualdades sociais e econômicas.
Esta ala responsável pela disseminação do fascismo e autoritarismo em curso no Brasil que defende apenas as elites genocidas deixa nítido seu racismo institucional. Para tanto, usam da estratégia da subnotificação para minimizar os impactos dessa crise sanitária que acomete fortemente as populações indígenas e o povo brasileiro.
São diversas as burocracias estabelecidas para questionar a auto declaração dos povos em casos como dos kokama da região amazônica que foram questionados se de fato eram indígenas cobrando a apresentação de seu RANI, ou seja, identidade de indígena. Além de outros povos que tiveram seu direito ao acesso a cestas básicas negados, a exemplo dos kaingang, que ao solicitarem tais benefícios receberam como devolutiva a necessidade de comprovarem não apenas a real necessidade, mas a sua identidade enquanto povo, comprometendo a sua segurança alimentar e o seu isolamento social.
É nítido que o Estado Brasileiro cria barreiras para impedir que povos indígenas tenham seus direitos assegurados e que promove deliberadamente uma política de higienização social por meio de sua tática de subnotificação.
A inanição da SESAI promovida de maneira deliberada pelo governo Bolsonaro com seu gradual desmantelamento, só reforça a sua face higienista e genocida. Desde o seu início é nítida a tentativa de extinção da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), do modelo de contratação de profissionais da saúde indígena, além da fragilização do controle social com a extinção do Fórum de Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (Condisi) e os cortes orçamentários. Em outras palavras, medidas que expressam a determinação em desmontar a política diferenciada de saúde indígena.
Somam-se mais de 30 etnias impactadas por vítimas fatais da covid-19 em todo território nacional, dentre as quais, em sua maioria de Idoso que são nossos tesouros vivos, nossa fonte de manutenção ancestral e cultural.
A atitude de suspensão das demarcações de terras indígenas, a fragilização das atribuições constitucionais da FUNAI por meio da IN 09/2020, a militarização sobre o comando dos órgão de controle ambiental por meio do Decreto no 10.341/2020, os ataques a Mata Atlântica promovidos pelo ministro do Meio Ambiente, o avanço do garimpo ilegal e as ações de milícias rurais que provocam queimadas e invasões ilegais na Amazônia, estimuladas por esse governo são fatores que colaboram diretamente com a fragilização nos territórios indígenas e são responsáveis pelos acirramentos dos conflitos de terras no país. Essas medidas ampliaram o desmatamento na Amazônia e deixando vulnerável nossa biodiversidade em todo ́país.
São diversas as dificuldades a serem mensuradas no enfrentamento à covid-19: escassez de água potável nos territórios indígenas para garantir as medidas sanitárias como recomenda a Organização Mundial de Saúde; transporte para os casos mais graves por infecção da covid-19; o deslocamento até as áreas urbanas para saques do auxílio emergencial; o respeito às recomendações sanitárias pelos órgãos no tratamento com os indígenas; o acolhimento adequado nas Casais e outros.
São muitos os desafios diante da enorme crise humanitária e civilizatória. Para tanto, seguimos firmes, assim como nossos ancestrais, que há mais de 520 anos resistem lutando seja pelo direito ao território, para superar os ditames da ditadura, bem como outras epidemias, as balas do latifúndio e a tentativa diuturna de invisibilizar nossas culturas e modo de vida.
Em tempos de pandemia a luta e a solidariedade coletiva que reacendeu no mundo só será completa com os povos indígenas, pois a cura estará não apenas no princípio ativo, mas no ativar de nossos princípios humanos.
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, (APIB).
Brasília, 09 de maio de 2020.
Para acessar boletins, campanhas e outros conteúdos relacionados à epidemia da covid-19 entre os povos indigenas brasileiros, acesse: http://quarentenaindigena.info/
Com informações da APIB
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Vivian Fernandes e Katia Marko