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O campo, os cantos de trabalho e a resistência

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Ouça o áudio:

O cantar serve para amenizar um trabalho pesado. Fragmento do filme "Cantos de trabalho:-cana de açucar", do documentarista Leon Hirszman - Reprodução/Leon Hirszman
Canções de trabalho nascem nas lavouras, e na maioria das vezes são criadas por mulheres camponesas

Outro dia vi um vídeo de uma apresentação na varanda na Itália. A moça tocava acordeão e cantava Bandiera Rossa, canção tradicional do repertório de músicas de esquerda do mundo.  “Avanti o popolo, alla riscossa,/ Bandiera rossa, Bandiera rossa. / Avanti o popolo, alla riscossa, / Bandiera rossa trionferà.”. A letra composta por Carlo Tuzzi em 1908 é simbolo da luta dos operários italianos pelo comunismo e pelo socialismo.

Como muitas outras canções de protesto, Bandiera Rossa foi escrita em cima de uma melodia tradicional dos camponeses da Lombardia. Outra canção tradicional italiana, Bella Cio, foi escrita da mesma maneira, usando uma tradicional canção das colhedoras de arroz. 

No Brasil temos muitos exemplos de cantigas de trabalho, entoadas por camponeses ou operários em serviços. Dentro da história da alimentação, poucos são os estudos sobre a relação do trabalho com alimentos. A ênfase dos estudos costuma ser na gastronomia, na história das receitas e na origem dos ingredientes. Mas trabalho e comida são indissociáveis. A questão da distribuição da terra e do fim dos grandes latifúndios é essencial também para os estudos de gastronomia, além de essa já ser uma área de estudos e debates na sociologia, na ecologia, na biologia e ou na política. Alimentos produzidos por pequenas propriedades, orgânicos, que sustentem famílias camponesas com dignidade são fundamentais para se pensar a comida e suas relações com a sociedade.

Mas este é um texto sobre a relação entre a produção de alimentos e as canções de trabalho camponesas, é uma espécie de aperitivo, uma isca para quem quiser se aprofundar num tema tão vasto e interessante. As canções de trabalho nascem da lida nas lavouras, e na maioria das vezes são criadas por mulheres camponesas. Assim, existem cantigas entoadas por escravas que colhiam algodão no sul dos Estados Unidos, por índias tupinambás no Nordeste, por catadoras de café no porto de Santos. 

Os cantos de trabalho têm diferentes funções dependendo da sociedade em que são criados. Eles podem ir da comemoração de feitos e eventos da natureza (boas colheitas, a chegada do verão), o estabelecimento de pontos geográficos e temporais (os animais, os rios, a floresta), a narrativa histórica de eventos marcantes, a luta pela vida e a dureza do cotidiano. No Brasil, essas canções se misturaram, receberam diferentes influências – antigas canções indígenas receberam letras em português, cantos africanos também, novas letras e músicas foram sendo criadas conforme o tempo e a necessidade.

O escritor paulistano Mario de Andrade (1893-1945) recolheu e escreveu sobre os cantos de trabalho em suas muitas pesquisas sobre o folclore. Para Mario, em 1929, existiam poucas cantigas coletivas no país. Mas, ao longo da vida, ele recolheu muitas canções tradicionais e populares, mostrando que essa era uma vasta área no Brasil. Encantou-se, curioso, em procurar uma conhecida canção do carregadores de pianos, muito comum no século 19, bastante ritmada, e fez o seguinte comentário, publicado na revista Imburana: “Até faz pouco, na Bahia, no Recife, no Rio, contam que os carregadores de piano cantavam juntos uma melopeia ritual quando transportavam o instrumento pela rua. Diziam que era pra não desafinar...”. 

Entre os cantos que recolheu para suas pesquisas estavam as cantigas referentes à abertura dos trabalhos de moagem da cana de açúcar nos engenhos do Nordeste. Uma delas dizia assim (mantive aqui a grafia adotada pelo escritor para registrar a letra dessas canções): 

Depois da cana caiana 
Muinto dotô so formô, 
Vou aprantâ a caiana 
Prá me formá em dotô.

Outra canção falava de amor enquanto os trabalhadores pegavam pesado na moagem: 

Essa noite tive um sonho, 
Sonho de munta alegria:
Que me casavam á força 
Com quem eu muito queria, 
Oh-lê-ôh-dá!...

Mas muitas das canções de trabalho tem uma história também nos dias de hoje, uma permanência – elas se transformaram em cantigas de crianças. As trabalhadoras, tendo de levar os filhos para campo ou para o armazém ou mesmo para moagem de cana de açúcar ou para secagem dos grãos de café, cantavam e distraíam as crianças, que aprendiam as melodias.

Os ritmos marcavam o trabalho. Muitas músicas eram assustadoras, falando de cotidiano recheado de monstros conhecidos (“Boi boi boi/ boi da cara preta/ pega essa criança/ que tem medo de careta), de ausências (Dorme nenê/ que a cuca vem pegar/ mamãe foi pra roça/ papai foi trabalhar), do próprio trabalho (Olê mulher rendeira/ Olê mulher rendá/ Tu me ensina a fazer renda/ que eu te ensino a namorar).

Escrever sobre os cantos do trabalho relacionados à alimentação é uma maneira de valorizar esse trabalho, de recuperar a importância de uma cultura tão rica. O cantar serve para amenizar um trabalho pesado. Muitas músicas e formas de cantar nascidas nas plantações foram incorporados pela indústria fonográfica, como foi o caso blues americano, que dos campos de algodão ganhou o mundo e tornou-se uma marca da cultura negra. 

Cantar no trabalho, no campo ou na cidade, é uma forma de sobreviver, resistir e criar.

Edição: Rodrigo Chagas