Neoliberalismo

Pandemia evidencia pobreza causada pelo sistema privado de previdência do Chile

Maioria recebe aposentadorias abaixo do valor do salário mínimo, e as mulheres chegam a receber cerca de 50% menos

Brasil de Fato | Valparaíso (Chile) |

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91% dos chilenos querem o fim do sistema privado de previdência - Paola Cornejo

Ser idoso no Chile já era muito difícil antes mesmo da chegada do novo coronavírus. A doença, que tem nas pessoas acima dos 60 anos suas maiores vítimas, chegou ao país andino com o potencial de gerar resultados catastróficos, devido à situação de extrema pobreza que essas pessoas enfrentam, sobretudo graças a um sistema previdenciário que gera altíssimos lucros para empresas, enquanto aposentados recebem pensões miseráveis.

Para entender esta situação é preciso saber que a previdência no Chile está hegemonizada por empresas privadas. Os contribuintes chilenos depositam suas contribuições em contas de capitalização individual das empresas de AFP (Administradoras de Fundos de Pensão), quase todas atreladas a grandes conglomerados do setor financeiro. Essas contas recebem entre 10% e 12% do salário de cada trabalhador, e acumulam valores que vão gerar as aposentadorias no futuro.

Quando foi criado, nos anos 1980, durante a ditadura de Augusto Pinochet, o sistema prometia que a chamada “eficiência empresarial” produziria melhores rendimentos. O resultado é que, atualmente, um aposentado do sexo masculino ganha uma aposentadoria média de US$ 250 (R$ 1,4 mil). O valor pode parecer alto se comparado ao do Brasil, mas está muito abaixo do salário mínimo nesse país, que é de US$ 390, aproximadamente.

A Fundação Sol, um grupo de economistas independentes do Chile, analisa dados oficiais do Ministério do Trabalho e denuncia contradições desse sistema previdenciário privado. As empresas de AFP chilenas registraram, em fevereiro de 2020, lucros de cerca de US$ 195 bilhões de dólares, que foram divididos entre os acionistas. Esse valor, segundo análise da organização, representa quase 80% do Produto Interno Bruto do Chile.

Outro aspecto relevante é que a aposentadoria média das mulheres chilenas é 50% menor que a dos homens, ou seja, menos da metade de um salário mínimo. As professoras María Inés Valencia e Manuela Prieto Aguilera são prova dessa situação. “Eu me aposentei em 2012 e, atualmente, tenho a triste realidade de uma aposentadoria de 105 mil pesos (cerca de R$ 729)”, conta María Inés.

Para Manuela Prieto, a situação das mulheres mostra que o sistema reproduz a discriminação já existente no mercado de trabalho. “As mulheres sempre são castigadas, porque temos filhos, porque temos uma expectativa de vida muito maior, então tudo isso faz com que este sistema nos castigue, e recebamos uma aposentadoria miserável”, reclama.

Eu me aposentei em 2012 e, atualmente, tenho a triste realidade de uma aposentadoria de 105 mil pesos (cerca de R$ 729).

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Revolta Social

Segundo pesquisa realizada pelo instituto Termómetro Social, em novembro do ano passado – pouco menos de um mês depois do início das mobilizações massivas no país – 91% dos chilenos queriam o fim do sistema de previdência privada.

Esse foi um dos temas mais presentes durante os meses de revolta social que estourou no país a partir de outubro de 2019, levando milhões de pessoas às ruas, com uma pauta marcadamente contra o modelo econômico ultraneoliberal.

A indignação crescente na sociedade fez com que, no Congresso Nacional do Chile, também surgissem propostas de transição para substituir o modelo de previdência privada. Um dos modelos prevê a administração por um ente público, com a transferência dos recursos atualmente administradas pelas empresas para esse novo organismo. Entre os parlamentares que promovem esse projeto está Yasna Provoste, ex-ministra de Educação do governo de Michelle Bachelet (socialista) e senadora pelo Partido Democrata Cristão.

“Creio que no dia 25 outubro (data do plebiscito constitucional) aprovaremos o início de uma nova constituição, também de uma constituinte eleita plenamente pela cidadania. E a reforma da previdência também se iniciará, talvez nessa hora, ou será depois, mas ela acontecerá. A boa notícia é que ela acontecerá. A má notícia, para os que continuam apoiando as AFP, também é o fato de que ela acontecerá em nosso país, queiram vocês ou não”, declarou a senadora.

E a reforma da previdência também se iniciará, talvez nessa hora, ou será depois, mas ela acontecerá. A boa notícia é que ela acontecerá.

Uma das organizações sociais que protagoniza a luta por aposentadoria digna é o movimento NO+AFP, que está instalado em todo o Chile há mais de 10 anos, e que vem organizando desde 2015 protestos massivos pelo fim do sistema de previdência privada. Após outubro de 2019, o NO+AFP se uniu a diversos outros movimentos sociais de todo o país para criar a Mesa de Unidade Social, uma confederação de organizações que defendem a realização de uma assembleia constituinte no Chile.


91% dos chilenos desaprova o atual modelo de previdência gerido pela iniciativa privada / Martin Bernetti/AFP

Porta-voz do movimento No+AFP, Luis Mesina é um aposentado que trabalhou em uma empresa de AFP e conhece por dentro os vícios do sistema. Em declaração recente, ele apoiou a apresentação do projeto que visa eliminar as AFP, um modelo que relegou idosos chilenos a viver "em condições absolutamente indignas".

Segundo Mesina, "o objetivo é avançar para uma mudança estrutural que permita às chilenas e aos chilenos o acesso, no final de sua vida de trabalho, a uma aposentadoria digna". “Aqueles que se resistem às mudanças são prisioneiros de um dogma. Este dogma monetarista que, infelizmente, tem manejado os destinos do nosso país, transformando os direitos em bens de consumo", asseverou.

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O governo de Sebastián Piñera é abertamente contrário às mudanças no modelo previdenciário, e tem razões públicas para assumir essa postura. O irmão mais velho do presidente chileno, José Piñera, é um dos famosos Chicago Boys. Foi ele quem criou o atual sistema de AFP, entre 1978 e 1980, como ministro do Trabalho de Pinochet. Mas não foi ele quem implementou o plano, em 1982: antes disso, o economista virou ministro da Mineração, pasta onde iniciou o projeto de privatização das reservas de cobre que haviam sido nacionalizadas por Salvador Allende.

Aqueles que se resistem às mudanças são prisioneiros de um dogma. Este dogma monetarista que, infelizmente, tem manejado os destinos do nosso país, transformando os direitos em bens de consumo.

Atualmente, Sebastián Piñera tem em sua equipe de governo muitos ministros e secretários ligados à Associação das Empresas AFP. São também essas empresas as principais financiadoras de campanha da direita chilena, que é base da atual administração. No entanto, também vale destacar que os últimos quatro governos chilenos também tiveram funcionários ligados à essa Associação, que apesar da suas afinidades ideológicas com a direita, também financia alguns políticos de outros setores.

Paulo Guedes

Quando foi implementado, nos anos 1980, o modelo chileno de previdência privada também inspirou o “chicago boy brasileiro” Paulo Guedes, que era professor da Universidade do Chile. Como ministro do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), Guedes apresentou um projeto de reforma da Previdência que previa a mudança do sistema de repartição, que existe hoje no Brasil, para o de capitalização individual.

Esse aspecto seria crucial para a adaptação ao modelo chileno desejada por Guedes. Até o momento, o Congresso brasileiro tem impedido que a ideia avance. Mas apesar de a capitalização ter ficado de fora do texto final da reforma da Previdência, o ministro da Economia já declarou a intenção de retomar a pauta com uma nova proposta ao Congresso.

Enquanto isso, na terra que inspirou Guedes, a precariedade da aposentadoria chilena obrigou o governo a criar um auxílio emergencial para pessoas idosas, buscando amenizar a vulnerabilidade dessa população – já acostumada a uma saúde e alimentação precárias – durante a pandemia.

As empresas de AFP também se dizem vítimas da crise, apesar dos lucros bilionários, e ameaçam repassar aos aposentados e contribuintes supostas perdas milionárias do mercado de ações. Não seria uma novidade, já que na crise financeira de 2008, os contribuintes chilenos perderam cerca de 15% das suas economias, investidas pelas empresas no mercado de ações.

Na mesma época, a Argentina, que tinha um sistema de aposentadorias idêntico ao chileno, decidiu nacionalizar a Previdência. A mudança proposta pela então presidenta Cristina Fernández de Kirchner transferiu todos os fundos à administração de um ente público. É exatamente o que as chilenas e chilenos exigem hoje, e o contrário do que Jair Bolsonaro e Paulo Guedes querem fazer no Brasil.

*Matéria escrita em colaboração com Paola Cornejo, direto de Santiago

Edição: Rodrigo Chagas