Ainda criança, ao lhe perguntarem o que queria ser quando crescesse, enquanto os outros diziam médico, engenheiro, e as mais variadas profissões, o Flávio dizia: Oscarito! Ele queria ser o Oscarito. O grande fenômeno da comédia nacional talvez não seja mais conhecido das novas gerações. Eis a vida do ator. E principalmente do ator brasileiro!
Um teórico do teatro certa vez comparou essa arte com uma vela, que ao mesmo tempo em que ilumina, vai desaparecendo. Assim são os grandes momentos da cena. Acontecem e ficam apenas enquanto houver a memória.
E por aqui, parece que a memória é uma vela que se apaga rapidamente e sua luz se perde nas trevas do esquecimento, atrás das cortinas do tempo, nos bastidores apagados, nos camarins de abandono.
E é sobre esse abandono, sobre a forma como são tratados os idosos, o caos que tomou conta do nosso país, a desagregação de tudo e a violência que se voltou contra as nossas esperanças, sobre essa sociedade que ele já mencionara estar organizada “de uma forma totalmente errada” é que o ator vai escrever suas últimas palavras: em uma carta em que lastima tudo isso. O palhaço, em sua solidão, não conseguiu mais provocar a gargalhada, nem esboçar um sorriso. Entristeceu.
Minha mãe acendia uma luz e projetava a nossa sombra num lençol que ela colocava na janela. Ela queria que os vizinhos lá fora assistissem a nossa representação, então, ali, eu 'tava' fazendo cinema.
Assim ele nos foi contando um pouco sobre o início de tudo. Sobre as cortinas que se abriam para suas futuras cenas. O teatro amador na igreja. O teste para fazer um curso. O curso, e depois...
A necessidade de assistir às peças de teatro e não ter como comprar o ingresso fez com que ele ficasse do lado de fora estudando as fotografias e os cartazes. Mas um dia alguém o levou para que fizesse “claque”, ou seja, deveria rir e aplaudir. Assim ficou durante um bom tempo.
::Artigo | Voltar à “normalidade” é auto-condenar-se, por Leonardo Boff::
Através de Ruggero Jacobbi, importante figura do teatro, cenógrafo, crítico, diretor teatral, acabou conhecendo aqueles que estavam criando o Teatro de Arena, em São Paulo.
Ele também nos conta que seu primeiro encontro com Oduvaldo Vianna Filho (o Vianinha) aconteceu na rua, quando o grupo pedia dinheiro para montar uma peça. Ao se apresentar e manifestar a vontade de participar do grupo, Vianinha lhe passou a ponta do lençol em que recolhiam as contribuições. Ele ainda afirma:
Bons tempos aqueles em que se recolhia dinheiro em um lençol.
Seu primeiro papel foi de um morto. Um morto que já entrava em cena dessa forma. Mas no Teatro de Arena, já sob a direção de Boal, é que Flávio Migliaccio inaugurou o seu jeito de representar. Os atores da época, dos outros teatros, ainda representavam muito empostados, segundo suas próprias palavras.
Mas o Arena queria trazer à cena o homem brasileiro, a fala brasileira. Era preciso reinventar o teatro. Voltar à “estaca zero” e de lá partir para uma nova representação e uma nova dramaturgia. Nesse aspecto, Flávio Migliaccio estava à vontade.
Ele era o homem brasileiro. Não tinha a cultura e os vícios do teatro tradicional. Era um homem do povo. Vianinha conta que ele, inicialmente, fazia “pontas” (pequenos papéis) e carregava o material de contrarregragem. Com a evolução do seu trabalho, inventava-se um novo tipo de ator, mais popular.
Eu vinha da estaca zero, eu era um trabalhador lá, um cara que veio lá de Vila Mazzei, de Jaçanã...eu 'tava' apto a colocar o homem brasileiro em cena. Eu fui recolhendo tudo que aparecia para tornar minha arte melhor. Arte é a maneira como a gente vê a vida...E tendo a obrigação de mostrar as pessoas para as pessoas...Vivi muita coisa no meio de televisão, cinema, circo... O ator Flávio é muito parecido com a pessoa Flávio.
Admirador do neorrealismo italiano, da fala despojada de falsos adornos e afetações, com aquele olhar que parece que a qualquer momento vai dizer uma piada ou dar uma gargalhada, não consigo desassociar esse ator que coloriu minha juventude com seus muitos personagens, da figura de um palhaço.
A alma e a sutileza da arte do palhaço. E se ele beirava o drama, era o sentimento pungente do picadeiro da vida. Em uma entrevista citou Shakespeare como os atores o representavam e em seguida mostrou como faria, caso fosse representar aquela mesma cena.
Impressionante a verdade que trouxe para o texto. Em seguida pediu desculpas por ter diminuído a obra shakespeariana. Não, Flávio! Você não diminuiu nada. Você nos traduziu. Você nos acrescentou! Palmas, palmas e palmas!
Ele partiu, a vela apagou. O teatro escureceu. As cadeiras ficaram vazias. Os cinemas estão fechados. Muitos viraram templos evangélicos. A busca desesperada por Deus é grande.
Também o nosso ator-personagem-homem brasileiro buscou esse Deus. Pensou até em ser padre. Estava nutrindo a ideia, foi estudar para isso. Mas então conheceu o outro lado. Foi assediado por um sacerdote e brigou, brigou muito, não admitiu aquilo de jeito nenhum.
Foi expulso do colégio. Ainda continuou sua busca de Deus, mas foi ligando os pontos, vendo tanta injustiça, tanta farsa, tanta mentira e abandonou sua busca.É verdade, meu querido ator, não merecíamos isso aí que estamos vendo e ouvindo todos os dias. Esse péssimo texto que se repete à exaustão.
Não merecíamos essa sociedade tão injusta e desagregada. Mas se pudéssemos voltar, por uma mágica, alguns dias atrás, e se tivéssemos a chance de penetrar em tua solidão, gostaríamos de dizer: não, teus 85 anos não foram em vão.
Quantas crianças cresceram vendo o teu Xerife, Tio Maneco e outros personagens. Quantos de nós temos a alma ternamente tocada pelo teu olhar, teus trejeitos e tua fala de homem brasileiro e sensível.
Toda esta realidade cruel que hoje vivemos não há de vencer. Todo o ódio e desrespeito por aqueles que já desbravaram tantos caminhos e pisaram tantos palcos, não são nada diante da tua figura.
E termino aqui reproduzindo em texto uma fala que assisti em vídeo. Profundamente emocionante. Uma defesa dos atores, um pedido, um recado de Flávio Migliaccio às autoridades:
Com toda humildade que eu peço, deixem o ator em paz, o ator não oferece perigo, o ator é um sonhador, sabe? E ele não oferece perigo nenhum, ele quer sonhar só, ele quer conhecer outros mundos. É isso que é o ator! A própria sociedade, ela tem os seus mecanismos para rejeitar ou aceitar as ideias do ator. Então deixem ele em paz, por favor!
*Sylvio Costa Filho é ator e professor.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Leandro Melito e Mariana Pitasse