"Lavajatismo"

Esquerda não deveria celebrar "ativismo jurídico", alerta jurista sobre caso Ramagem

Jurista analisa os aspectos da politização do Judiciário em torno da saída de Sérgio Moro e das ações no STF

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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"É uma questão política e a gente não pode incentivar ativismos, porque o pau que bate em Chico, bate em Francisco", enfatiza o constitucionalista Lenio Streck - Arquivo/STF

Diante da pandemia do novo coronavírus – que já ultrapassa 105 mil casos confirmados e registrou 7.288 óbitos no país –, outro cenário que gera incertezas e preocupa a população é a crise política. Nesse contexto, o Judiciário tem sido cobrado a se posicionar em defesa da Constituição e da democracia.

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A saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça ainda repercute. O ex-juiz acusou o ex-chefe de interferir politicamente na Polícia Federal (PF) e de querer ter acesso a investigações sigilosas. No sábado (2), Moro depôs por nove horas na unidade da PF em Curitiba sobre as evidências apresentadas por ele – como nos tempos de Lava Jato  –, utilizando o horário nobre da televisão.

pedido de inquérito criminal contra Bolsonaro foi feito pelo ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal (STF) e encaminhado pelo procurador-geral, Augusto Aras. Também partiu do STF, pelo ministro Alexandre de Moraes, a suspensão da nomeação do delegado Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal (PF) – devido à relação de amizade do indicado com a família Bolsonaro. 

Embora reconheça a suspeição que recai sobre a nomeação pretendida por Bolsonaro, o professor de Direito Constitucional Lenio Luiz Streck, argumenta que a reação do Judiciário no caso teve mais base política e do que jurídica.

"Embora parte da esquerda e outros tenham apoiado essa decisão de não deixar o Ramagem assumir, acho que o Supremo não poderia ter impedido. É uma questão política e a gente não pode incentivar ativismos, porque o pau que bate em Chico, bate em Francisco."

O pós-doutor em Direito pela Universidade de Lisboa e membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) caracterizou o episódio como “ativismo jurídico”, quando a Justiça toma decisões que fogem à sua alçada constitucional. 

"Lula sentiu na carne o que é isso. Se você fizer um levantamento nos últimos três anos, quantas pauladas a oposição ou a esquerda levou dos tribunais? A suspeição do Sergio Moro até hoje não foi julgada [pelo STF]", exemplifica o jurista.

Para Streck, ao tentar se desvencilhar do governo Bolsonaro, Moro e o lavajatismo voltam a lançar cartas e atuar de forma mais incisiva. Ele destaca que, inicialmente, as pesquisas de opinião mostraram que Moro saiu mais fortalecido do que o presidente, mas coloca expectativa sobre o que pode ser um ponto de inflexão desta história: "quem faz um depoimento de oito horas ou está incriminando totalmente o outro, ou está se explicando demais".

Leia a entrevista completa de Lenio Streck ao Brasil de Fato.

Qual a sua análise deste contexto do país e da saída de Sérgio Moro do governo Bolsonaro?

O Sérgio Moro quis dar impressão da nação, e muitas pessoas caíram nessa. Grandes veículos de comunicação – Globo, Globonews, a própria CNN e também a Bandeirantes – compraram a tese de que o Sergio Moro saiu para salvaguardar a sua própria biografia e também para evitar que a Polícia [Federal] sofresse intervenções.

Quem olha de fora pensa que o Palácio do Planalto e o Ministério da Justiça era um Colégio de Freiras, e havia até uma espécie de pacto daqueles padres que fazem silêncio e essas coisas assim. Quando na verdade aquilo poderia ser uma grande caravana Holiday, do Bye Bye, Brasil, do Cacá Diegues. 

Deu-se essa impressão, quando o Sérgio Moro sai falando palavra bonita, que ninguém vai entender, rule of law para dizer que é Estado de Direito. Então ele sempre fez a coisa certa, ele sempre fez a coisa dentro do Estado de Direito...

Se fizermos uma lista do que o Sérgio Moro fez contra o Estado de Direito desde a confessada ilegalidade quando liberou os áudios (de Lula e Dilma). Porque ali começou a derrubada da presidente Dilma, depois ele faz uma carta pedindo desculpas, 30 e poucas laudas pedindo desculpas. O Supremo diz que ele agiu mal. 

Depois ele solta, uma semana antes das eleições, a delação do Palocci. Ele todo tempo ficou de combinação com o Ministério Público, tudo isso saiu no Intercept e ele negou tudo. Isso é interessante. 

A lista dele do passado é muito grande, ele é o último jurista para falar de Estado de Direito. Estado é Direito é aquilo que protege a democracia contra arbítrios.

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E como ministro, qual foi a atuação dele com relação aos indígenas durante os incêndios? Qual foi a atuação dele com relação ao caso Marielle? Qual foi a atuação dele com relação ao massacre de São Paulo no Paraisópolis? E em relação à greve dos policiais (no Ceará), que no fundo ele apoiou, que na verdade não era uma greve, era um motim, e que ele chamava de greve? E em relação às torturas nos presídios?

Esse é o personagem Sergio Moro. Ele sai atirando no seu ex-chefe. Então seu ex-chefe sai como "mau e impuro" e ele sai como "puro". As pessoas dizem, “Sergio Moro sempre fez a coisa certa e o Bolsonaro então o enganou”, e o Bolsonaro diz o contrário, “eu fui enganado por ele”.

Além da suspeita de crimes de Jair Bolsonaro, também há um indicativo de crimes do próprio Sérgio Moro?

Tem-se que o Sérgio Moro teria juntado gravações e seus prints etc. A questão é saber o seguinte: ele gravou o seu próprio chefe? Ele gravou o presidente da República? 

Alguém vai dizer sim, mas não é proibido. Vamos supor que nós estivéssemos falando sobre, você [repórter] e eu, numa conversa privada por WhatsApp. Eu não tenho compromisso público, nem você, nós temos uma conversa. Se eu estiver ameaçando você, você pode gravar como defesa contra mim. Isso é uma coisa. 

Outra coisa é um ministro gravar o seu próprio presidente da República e agora usar isso como prova contra o seu próprio chefe. Isso é um problema seríssimo, porque se ele gravou impropriedades do presidente e nada fez, ele também pode estar prevaricando. Se as acusações que ele fez ao presidente não forem provadas, pode configurar calúnia.

Por outro lado, o presidente tem também contra ele um rol de questões. Por quê? O Sergio Moro está acusando ele de tentar obstruir. Ou que pensou em obstruir. Ninguém pode ser processado ou condenado por intensões.

O fato de você ter intenção de dar uma surra em um colega seu na redação, não quer dizer nada, porque isso não é crime. Ninguém pode ser processado por meras intenções. Mesmo que você se prepare para isso e compre uma luva de box ainda assim são atos preparatórios que não configuram o crime. Significa que há muita questão técnica por trás disso e muita política. 

Agora o que há de política nessa questão toda é que a população está observando isso e todos dias há novos fatos políticos. Mas o Brasil tem uma crise de pandemia como qualquer país do mundo, tem uma crise econômica por causa da pandemia, como qualquer país do mundo. Mas me diz um outro país que tenha crise polícia com tanta gente ameaçando todos os dias intervenção de Forças Armadas, querendo AI-5, gente desqualificada nas ruas fazendo passeatas, se infectando com vírus – o próprio presidente fazendo isso. Só o Brasil. 

Então eles estão deliberadamente construindo uma crise política. Nós chegamos ao ponto das pessoas dizerem que Dória é comunista, ele pode ser tudo menos comunista. Que Sergio Moro é comunista, ele pode ser tudo menos comunista.

Esse grupo de pessoas é uma espécie de lumpesinato da política, aquela classe que é menos que alienada. A mídia pode até comprar essa questão com o Moro, pode comprar essa tese que ele vá ser candidato, ou que seja o candidato da grande mídia e das grandes corporações e tal. Mas eu acho que isso não significa, por exemplo, o Estadão, a Globo, a Globonews, esses grandes veículos, vá comprar alguma ideia de golpe. Não há espaço pra isso. 

E o papel do STF diante deste contexto?

Aí tem duas coisas, o Supremo não andou bem nessa questão da pandemia quando tirou os sindicatos das questões das negociações. O Supremo errou ali. O Supremo pode ter acertado nessa questão no fortalecimento da federação, com relação a dizer que os estados e municípios podem decretar as questões de restrições das pessoas. 

Porque como não há vacina nem remédio é preciso ficar em casa. Eu sei que é difícil a questão econômica. Agora o que nós não podemos fazer é dizer que nós podemos sacrificar vidas para salvar a economia. Nenhuma vida pode ser sacrificada.

O Supremo errou, na minha concepção, sobre o caso do Ramagem. Eu não tenho nenhuma simpatia pelo Ramagem, nem o conheço, muito menos com o governo Bolsonaro, por óbvio. Agora, embora parte da esquerda e outros tenham apoiado essa decisão de não deixar o Ramagem assumir, acho que o Supremo não poderia ter impedido. É uma questão política e a gente não pode incentivar ativismos, porque o pau que bate em Chico, bate em Francisco.

Há três, quatro anos, todos lembram que o Lula foi impedido de ser ministro. Alguém diz, “ah, mas não foi a mesma coisa”. Olha, se você admite que você pode tirar o Ramagem, você pode tirar qualquer um. Eu sou muito cauteloso nessas coisas. Tem de cumprir sempre a Constituição. Se o Ramagem podia ter sido nomeado, isso é responsabilidade e um ônus do presidente da República. 

Assim como eu fui contra quando tentaram impedir aquela filha do Roberto Jefferson, a Christiane Brasil [de assumir o Ministério do Trabalho no governo Temer]. Eu disse 'deixa ela ser ministra, isso é responsabilidade do presidente, o Supremo não tem votos, não foi eleito'. Eu tenho apanhado muito da esquerda esses dias porque eu tenho sido coerente.

É uma questão política e a gente não pode incentivar ativismos, porque o pau que bate em Chico, bate em Francisco.

Até o Lula criticou e apanhou em relação a isso. Porque o Lula sentiu na carne o que é isso. Se você fizer um levantamento nos últimos três anos, quantas pauladas a oposição ou a esquerda levou dos tribunais? A suspeição do Sergio Moro até hoje não foi julgada [pelo STF].

Aliás, quando o Lula foi impedido, ali podia ter mudado a história. E o Supremo impediu, e o Lula lembrou disso agora quando falou. Eu apanhei, até ofendido eu fui, eu apanhei de gente da esquerda. Alguns chamando até de ignorante.

Isso é um sinal da volta da política do lavajatismo?

Sim, reforça isso. Porque há sempre um fato e a sua repercussão. Em parte das redes sociais e na grande mídia o lavajatismo foi reforçado porque o Bolsonaro ficou para um canto com a extrema direita, que é bem bolsonaro-olavista e acha que Moro é comunista. E do outro lado, digamos assim, os bolsonarianos. As pesquisas mostraram que o Moro está melhor que o Bolsonaro. Então sem dúvida, sim, respondo afirmativamente. 

Os inquéritos levantam questões, isso não vai ficar morcegando, alguma coisa vai acontecer, e alguém vai sair chamuscado. 

Quem faz um depoimento de oito horas ou está incriminando totalmente o outro, ou está se explicando demais. Não tem teoria do meio. Oito horas de depoimento isso deve dar 150 páginas, isso é um depoimento enorme, então ali deve ter detalhes contra o presidente. Mas ao mesmo tempo também tem muita explicação ou autoincriminação que o Sérgio Moro tem que fazer.

Qual é o problema do que a gente chama de lavajatismo? É que nisto os fins justificam os meios. Quando Moro fez tudo aquilo e quando houve o Intercept e contou tudo aquilo [as revelações da Vaza Jato], teve quem dissesse “mas foi bom para o Brasil”. Então os fins justificam os meios. 

Significa que para chegar na outra ponta eu posso dar cotovelada, eu posso ganhar com gol de mão etc. Porque, afinal de contas, o que vale é a comemoração da vitória... Mas política não deve ser feita desse modo. 

Qual a consequência disso para o Estado de Direito, para as instituições do país tanto do “ativismo” jurídico quanto da judicialização da política por meio do STF para contornar crises políticas ou irresponsabilidades do governo?

A minha tese é que ativismo judicial sempre é ruim. Mas há uma diferença entre ativismo e judicialização. Isso que nós estamos falando que é sempre ruim é ativismo. Quando, por exemplo, o Judiciário dá remédio para as pessoas ou quando dá uma decisão em relação a saúde é judicialização. Não é problema que se judicialize, por vezes é necessário.

Obrigar as pessoas a usar máscaras, vamos supor que as pessoas não usassem e vai chegar o momento que precisa. O Judiciário é chamado como uma questão de saúde pública. Isso é judicialização.

Ativismo é toda vez que o judiciário toma decisões que não são de sua alçada, essa é a questão. Então eu sou anti-ativista desde a Constituição para cá, porque ativismo jurídico não é bom para democracia. 

O senhor acha que há questões jurídicas e políticas para o impeachment de Jair Bolsonaro?

Claro que tem motivos jurídicos para fazer impeachment, mas não tem maioria. O Bolsonaro tem mais de 171 votos no parlamento e, portanto, isso é inviável.

Quem tem votos não sai do poder, para ser bem claro. Quem tem parlamentares de apoio pode vender a mãe, que não tem problema nenhum. Essa é a questão, é uma resposta muito objetiva em relação a isso. Um parlamento em que o presidente tenha um mínimo de votos, ele fica blindado.

Agora, é claro, que as crises políticas que advêm disso são questões duríssimas.

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O senhor vê alguma alternativa para o país retomar o papel e fortalecimento das instituições dentro do Estado de Direito?

Eu penso que os erros cometidos no passado são uma conta muito alta e que a extrema-direita conseguiu capitalizar isso. Eles conseguiram colar um decalque. Pode falar qualquer coisa do Bolsonaro, do governo ou do próprio Sérgio Moro, qual é a resposta? “Foi bom, porque é melhor isso que a maior roubalheira que já houve neste país.”

Eles colaram isso e botaram todos os dois governos, Lula e Dilma principalmente, no imaginário das pessoas que isso foi algo que de pior aconteceu no Brasil. Todos os benefícios do governo são escondidos por trás dessa capa. 

Veja que as pesquisas já estão mostrando que há uma disputa entre Moro e Bolsonaro. Ou seja, uma conjunção de esquerda ou mesmo de oposição têm menor chance. Então as perspectivas para o futuro não são nada boas.

A menos que a gente conseguisse sair dessa crise rapidamente sem maiores traumas e de fato as lideranças de oposição no Brasil abrissem mão de algumas coisas, o centro, os liberais etc. e sentassem e fizessem uma concertação para pensar o seguinte: ou se faz isso aqui para que o país se possa avançar ou continuaremos nessa guerra ideológica.

Ninguém vai convencer a turma do Olavo de Carvalho e companhia de que eles estão errados. Eles só serão derrotados se os outros forem maioria contra eles. Tem de se fazer uma concertação e superar isso, principalmente agora, que vem uma crise econômica.

Veja que as pesquisas já estão mostrando que há uma disputa entre Moro e Bolsonaro. Ou seja, uma conjunção de esquerda ou mesmo de oposição têm menor chance.

Eu sou um constitucionalista, eu acho que tudo tem que ser feito dentro da Constituição. Fora da Constituição não tem espaço. A Constituição dá o caminho. É a escolha da democracia. 

Edição: Rodrigo Chagas