Eu, assim como Bolsonaro, também não sou coveira. Ao menos de profissão.
Mas hoje fiz enterro, com respeito e amor pela vida de todos os terráqueos, humanos ou não, que partiram. E, nesse breve ritual, como um átimo, veio-me a lembrança do belíssimo filme japonês, A partida, de Yojiro Takita, diretor que soube exaltar, como ninguém, a importância e a grandiosidade de todos os agentes funerários.
Essa noite, aqui no silêncio da colônia, assim como em outras partes do mundo, travou-se uma batalha perdida. Acordei com o sopro da morte em minha cara. Um corpo esfacelado.
Curiosamente, como alguns humanos sabem ser, a cabeça/razão de um lado e as vísceras/coração de outro. Assim encontrei esse passarinho que meu inconsciente logo quis identificar como bem-te-vi, ressaltando desde já a inexistência de qualquer compromisso com a ornitologia.
Diante de um corpo sem vida, sem novos voos e horizonte, sou dor. Sinto profundamente essa perda. Qualquer morte, qualquer abate, qualquer violência, faz aumentar essa fissura que nasceu em mim desde que tomei consciência de que a Terra onde habito pode (é) ser um mundo desigual, irracional, injusto, opressor e perverso. Perverso. Essa morte tem sentido em mim. Sou essa falta, esse corpo inerte; sem gestos, quereres, desejos, voz, luz, ânimo.
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Ainda sou a menina que enterrava passarinhos e cachorros, deixando junto toda a perplexidade diante da morte e, por isso, depositei esse pequeno cadáver em um cantinho da minha horta orgânica. Se esse bem-te-vi não pôde voltar ao lar, deixando seus filhotes sem comida, por isso eu também hoje não pude comer.
Essa noite, acompanhando o ritmo mundial do planeta, também fez-se luto e tristeza aqui em Linha Olinda, lugar ainda intocado pelo vírus mas impregnado de bolsonaristas, como se viu dos números das últimas eleições. Pode que aqui sintam mais a unha encravada do que um coração ao léu, atirado no jardim. Pode.
A morte do bem-te-vi foi em vão, já se sabe; tratou-se de um desatino atávico dos cães; amorosos, mas, caçadores. Para eles, matar foi suficiente. Do bem-te-vi não se alimentaram, a não ser seus instintos, agora apaziguados depois que o pequeno coração – do tamanho da unha do meu dedo do pé - , parou de bater.
Mas essa noite, teve muito mais do que isso. Dezenas, certamente, centenas de pessoas perderam suas vidas para a covid-19 no nosso Brasil, ainda que os testes não tenham sido realizados e, por isso, essas mortes não tenham sido contabilizadas.
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Algumas dessas pessoas sequer serão pranteadas ou enterradas com dignidade. Manaus está enterrando cadáveres – leia-se, pessoas que tiveram uma “gripezinha” - em valas coletivas.
Sei que a imagem do passarinho despedaçado por dois terráqueos irracionais não é nada comparada com a do cemitério de Manaus, pois esta mostra o que os números não querem dizer.
Mais e mais mortes, todos os dias, são PRODUZIDAS por Bolsonaro e sua trupe. A displicência, o desamor, o despreparo, a ignorância, a desfaçatez, o desrespeito, tudo isso dá lugar a algo que tem nome e que se traduz em projeto de Estado: necropolítica.
Bolsonaro ignora, ele mesmo, as recomendações da Organização Mundial da Saúde, sai às ruas como se não houvesse amanhã, nega a ciência, polariza uma doença que abate milhares de pessoas em todo o mundo, fomenta a discórdia com seus discursos de ódio, alia-se ao capital e esquece-se dos trabalhadores e trabalhadoras desse país. Em vez de editar medidas provisórias em favor do povo brasileiro, transfere trilhões para auxiliar bancos. Acossado, submete-se à vontade do Congresso Nacional e sanciona, com muito atraso, um auxílio emergencial que mal dá para pagar o aluguel e a luz do mês.
Bolsonaro é um fantoche nas mãos do empresariado, do capital, mas não é louco, retardado ou imbecil.
Bolsonaro faz a sua gestão da morte, com requintes de crueldade, ao desprezar e não incrementar as políticas públicas, seja deixando de comprar testes e respiradores em massa, seja deixando de importar máscaras para os nossos profissionais de saúde (não se esqueçam que na linha de frente não estão os médicos e, sim, as enfermeiras, os técnicos, as fisioterapeutas, as terceirizadas da limpeza), seja deixando de aportar verbas para que os Estados possam montar hospitais de campanha, seja congelando as verbas públicas destinadas à saúde, seja demitindo, em plena pandemia, o Ministro da Saúde.
Para compreensão do contexto atual, nos basta o conceito de necropolítica desenvolvido por Achile Mbembe. Trata-se de entender o modo como o poder político apropria-se da morte como objeto de gestão.
Bolsonaro se apropria da vida de milhares de brasileiros, estabelece normas de como essa população empobrecida, negra em sua maioria, deve se comportar, agir, trabalhar, e também decide, toma medidas de como deve morrer.
Bolsonaro, com suas ações, decide quem deve viver e quem deve morrer; Bolsonaro, apoiado na lógica hegemônica vigente no país, através do estabelecimento do inimigo interno, do racismo, de mãos dadas com as políticas neoliberais e fascistas, age de modo violento e mortífero com as periferias, locais onde, em tempo de coronavírus, há um risco permanente de morte.
A “saúde da população”, a “saúde nacional”, a “saúde do Brasil”, a “saúde dos empresários” está a salvo pois outros grupos indesejados, descartáveis, incômodos, esse excesso irrecuperável, esses verdadeiros inimigos da pátria, podem e devem ser mortos.
Bolsonaro com suas políticas decide quem morre, como morre, quando morre e porquê morre. Ainda assim, não quer ser responsável pelo número de mortes. Claro, de coveiro não se trata, como já declarou essa semana.
Alto lá! Coveiro, não! Respeito com essa classe de trabalhadores.
BOLSONARO, GENOCIDA DO POVO BRASILEIRO.
(*) A autora é juíza do 3º Juizado Regional da Infância e Juventude de Porto Alegre e integrante da Associação Brasileira de Juízes pela Democracia (ABJD).
Edição: Leandro Melito