Desde a chegada da covid-19 ao Brasil, José* vive uma constante incerteza sobre seu futuro e de sua família. Migrante boliviano de 36 anos, vive com a esposa e dois filhos pequenos no bairro Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte do município de São Paulo. Trabalhador da costura, José está sem nenhuma renda desde que a oficina onde trabalhava fechou as portas, no último dia 23 de março. Atualmente, o bairro paulistano do Brás, que concentra a maior parte da indústria têxtil da capital, está praticamente vazio.
Com o auxílio financeiro emergencial de R$ 600 disponibilizado pelo governo federal, José enxergou uma possibilidade de minimizar a dificuldade econômica que se abateu sobre sua família. Entretanto, desde a última terça-feira (7), com a abertura do cadastramento online no programa, José vive uma verdadeira epopeia.
Após baixar o aplicativo da Caixa Econômica Federal, em um celular emprestado, ele não conseguiu concluir sua inscrição e a de sua esposa, devido a irregularidades no Cadastro de Pessoa Física (CPF). Por isso, o casal foi até uma agência dos Correios, onde o atendente informou que o erro estava ocorrendo pela falta do nome da mãe no CPF de ambos. Esse é um dos principais problemas que atinge a maioria dos migrantes, já que em muitos documentos de outros países não constam os dados filiatórios dos pais, como é o caso do Registro Geral (RG) brasileiro.
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Apesar de José e sua esposa pagarem R$ 7 pela regularização na própria unidade dos Correios, o funcionário indicou que o casal comparecesse à Receita Federal do Shopping Light, localizado no Anhangabaú. Esta unidade é referência para a população migrante de São Paulo. Entretanto, quando chegou ao local, o casal se deparou com as portas do shopping trancadas. No dia 18 de março, o governador de São Paulo João Dória (PSDB) havia anunciado o fechamento de grande parte do setor comercial em todo o estado.
“Eu perguntei para guardas municipais e para a polícia se a Receita estava aberta e eles disseram que sim. Quando eu já estava a meia quadra, no Anhangabaú, eles diziam que eu continuasse indo que a Receita me atenderia. Mas quando eu cheguei, estava fechada”, conta.
Depois de dias de apreensão, José conseguiu a informação sobre a existência de um e-mail de atendimento da Receita Federal. Em contato com o órgão, finalmente conseguiu regularizar o CPF e realizar o cadastro. “Foi uma luta, porque não sabíamos o que estava se passando. Foram dias de agonia”, recorda.
Projeto de lei
Além de correções em erros cadastrais, a Receita anunciou que passará a aceitar novas inscrições para o CPF por email ([email protected]), com isenção da taxa que até então custava R$ 7. Entretanto, uma das exigências é o comprovante de endereço, o que pode ser uma nova barreira para muitos migrantes, que representam aproximadamente 0,4% da população brasileira.
Até a última sexta-feira (11), a Receita Federal já havia regularizado o CPF de 11 milhões de pessoas que estavam com pendências por multas eleitorais. Entretanto, os migrantes não se enquadraram nessa ação por não terem direito ao voto no Brasil.
Diante desse cenário, a bancada de deputados federais do Partido Socialismo e Liberdade (Psol) apresentou o Projeto de Lei 143/2020, que propõe o fim da obrigatoriedade da regularização do CPF para o cadastro no auxílio emergencial.
"Não tem cabimento exigir CPF num momento em que pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social precisam urgentemente de dinheiro para não morrer de fome. Não se trata de um empréstimo, em que é necessário checar se há pendências no CPF, é uma garantia mínima de cidadania. Milhares de brasileiros pobres e imigrantes encontram-se em situação precária e sem documentos, exigi-los neste momento é ampliar ainda mais a exclusão e marginalização. Por isso apresentamos projeto para extinguir a exigência”, explica o deputado federal Marcelo Freixo (Psol), que assina o projeto ao lado de outros nove parlamentares.
Solidariedade
No entanto, a incerteza sobre receber o auxílio ainda não foi totalmente resolvida. Esse é o caso de Luís*, migrante equatoriano de 36 anos, que vive há 10 anos no Rio de Janeiro. “Muitos estrangeiros não conseguiram se cadastrar porque ainda estavam em trâmite de documentação quando chegou a pandemia. Para os que conseguiram, como eu, até agora não houve nenhuma confirmação do dinheiro na conta”, questiona.
Com isso, Luís está vivendo um quebra-cabeça econômico sem solução imediata. Músico e comerciante de artesanatos que ele mesmo produz, não sabe como sua esposa e os dois filhos pequenos conseguirão pagar as contas, mesmo que sejam contemplados com o auxílio. “Eu não sei como vou resolver o aluguel e as contas, o alimento é graças às doações”, explica.
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Luís e sua família estão contando com a solidariedade do Movimento Unido dos Camelôs e Ambulantes (MUCA), que desde o impedimento do comércio tem distribuído alimentos para as famílias de trabalhadores em condições de vulnerabilidade.
Iniciativas como essa têm se espalhado em todo o Brasil. Na capital paulista, o Projeto Canicas é um dos coletivos que estão contribuindo com informações, mas também com a arrecadação e distribuição de cestas básicas para famílias migrantes da Zona Norte de São Paulo.
A doutoranda em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), Rocio del Pilar Bravo Shuña, explica que o projeto vinha trabalhando em escolas com a formação de profissionais da educação no sentido da prevenção e combate ao trabalho infantil de crianças migrantes na cadeia têxtil. Com a chegada da pandemia, entretanto, viram-se obrigados a mudar emergencialmente o foco de ação.
“Sabemos que a atual conjuntura provocada pela covid-19 tem agravado a situação das famílias migrantes, que pararam a produção. Famílias que sem sustento econômico e com os entraves burocráticos que enfrentam para acessar alguma assistência emergencial do governo se encontram numa situação de vulnerabilidade. Cientes disto, o Canicas teve que fazer mudanças no escopo de suas ações a fim de atender a atual situação emergencial”, explica Rocio.
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Uma das 34 beneficiadas pelas cestas básicas arrecadas pelo Projeto Canicas é a boliviana Andrea*, de 30 anos, que se mudou para o Brasil há sete meses para buscar melhores condições de vida. Trabalhadora da costura e mãe de três filhas pequenas, está vivendo uma difícil situação desde que as atividades da oficina que trabalha foram paralisadas devido ao coronavírus. “A atual conjuntura está nos fazendo viver coisas muito difíceis. Não temos alimentos básicos para preparar nossas refeições, há dias não temos realmente o que comer”, relata.
O auxílio emergencial poderia ser uma solução temporária para Andrea, mas ela ainda não conseguiu tirar seus documentos e o governo federal ainda não informou se o benefício contemplará migrantes indocumentados. Tampouco há a certeza se esses casos de migrantes com problemas de documentação serão deferidos ou não pela Caixa Econômica Federal ou se haverá a possibilidade de retificação de dados em processos que estão em trâmite, uma vez que o banco tem declarado publicamente que não aceitará mudanças nos dados cadastrais dos requerentes do auxílio.
*Os nomes reais dos entrevistados foram alterados para resguardar o sigilo das fontes.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Mariana Pitasse