coronavírus

ARTIGO | Direito à alimentação escolar em tempos de pandemia

Uma das principais tarefas neste momento é preservar o direito à alimentação dos alunos da rede pública de ensino

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Aulas da rede pública foram suspensas em todo o país, por conta da pandemia de coronavírus. - Wikimedia Commons

Dentre as muitas questões a serem enfrentadas pelas secretarias de educação estaduais e municipais durante a pandemia do covid-19, uma das mais importantes é como preservar o direito à alimentação dos alunos da rede pública de ensino, principalmente aqueles em situação de vulnerabilidade social, durante o período de suspensão das aulas presenciais.

Continua após publicidade

O PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) beneficia hoje cerca de 41 milhões de estudantes no Brasil. Para muitos deles, é na escola que encontram a única refeição do dia. Das mais de 54 milhões de pessoas que vivem na extrema pobreza no Brasil hoje, 14 milhões têm menos de 14 anos, segundo dados do IBGE.

Essa situação já foi alertada em estudos e reportagens nas últimas semanas, o que levou a Câmara e o Senado a aprovar rapidamente o Projeto de Lei nº 786/2020 que permite a distribuição dos alimentos da merenda escolar adquiridos com recursos do PNAE às famílias dos estudantes que tiverem suspensas as aulas em razão de situação de emergência ou calamidade pública, como a da atual pandemia.

Contudo, mesmo aprovado pelo Senado na segunda, 30, o PL está aguardando sanção do presidente desde então. Essa demora pode colocar milhares de crianças e jovens em situação de insegurança alimentar, desnutrição ou fome.

Apesar dessa iniciativa legal ser um avanço na garantia do direito à alimentação dos estudantes nesse período, ainda será preciso um resolução específica do MEC (Ministério da Educação) e do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento para Educação) para nortear os estados e municípios na concretização imediata dessa distribuição alternativa, já que a Resolução atualmente vigente sobre o tema (26/2013) não trata do assunto. Seria prudente que o MEC/FNDE trabalhasse desde já nessas alterações, para tentar garantir a publicação dessa nova resolução logo após a sanção e publicação da lei.

Um ponto essencial que essa resolução do MEC/FNDE deverá tratar é como será feito o cálculo do valor a ser repassado às famílias dos alunos.

Se tomar como base o valor per capita previsto no art. 24 da Lei 11.947/09 e atualizado por resoluções do FNDE/MEC, o repasse será insuficiente.

A Resolução CD/FNDE/ME n° 1/17 define o atual valor que deve ser repassado pela União a estados e municípios por dia letivo para cada aluno. No Ensino Fundamental, por exemplo, é de R$ 0,36. Esse valor, mesmo quando complementado pelos estados e municípios, é bem baixo porque tem como base compras em larga escala.

Se esse for o critério usado para calcular o valor a ser distribuídos às famílias durante a pandemia, chegaremos a irrisórios R$ 7,20 por mês (20 dias letivos X 0,36).

O melhor caminho seria manter a aquisição centralizada pelo poder público e a distribuição de kits alimentares às famílias elaborados em consonância com as diretrizes de segurança alimentar e nutricional do próprio PNAE.

Em casos excepcionais, quando não for possível a elaboração e distribuição dos kits, será preciso buscar outras alternativas, como o repasse do valor referente a esse kit aos pais ou responsáveis dos alunos por meio de cartão alimentação ou complemento ao bolsa família.

Resumindo: preferencialmente, kits de alimentação condizentes com as diretrizes da segurança alimentar. Quando não possível, repasse direto do valor do kit aos pais ou responsáveis.

Além disso, o Projeto de Lei não deixa claro que essa possibilidade de distribuição direta poderia ser realizada também com os gêneros alimentícios oriundos da agricultura familiar. Isso porque a lei que institui o PNAE em 2009 definiu que, no mínimo, 30% dos recursos repassados aos estados e municípios - que hoje está na casa dos 4 bilhões por ano - deverão ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios advindos diretamente da agricultura familiar, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas.

Esse é um ponto muito sensível porque, com a suspensão das aulas presenciais na rede pública de ensino, assentados, indígenas, quilombolas e agricultores familiares que fornecem alimentos para merenda escolar, por meio das chamadas públicas do PNAE, estão receosos que seus contratos administrativos sejam rescindidos pelos governos estaduais e municipais. Isso afetaria não só os estudantes, como a renda e a produção de milhares de famílias camponesas.

Apesar desses contratos serem regidos pela Lei de Licitações nº 8.666/93, que prevê a possibilidade de rescisão unilateral dos contratos por razões de interesse público, caso fortuito ou força maior (art. 79, I), esse não parece ser o melhor caminho a ser tomado.

Ao invés da rescisão unilateral, o mais adequado para esse momento seria realizar o que se chama de alteração qualitativa desses contratos (conforme previsto na alínea “a” do art. 65, I, da Lei nº 8.666/93), para ajustar as cláusulas que tratam da forma e local de entrega desses produtos. Desta forma, seria possível substituir, por exemplo, a entrega centralizada dos alimentos nas escolas ou centros de distribuição do poder público por entregas descentralizadas, que poderiam ser feitas em associações de moradores ou nas próprias residências das famílias dos alunos.

Se essa alteração qualitativa gerar impacto considerável nos gastos com a logística de transporte e entrega por parte dos agricultores familiares, é possível rever, inclusive, os valores contratados, incluindo o ressarcimento dessas novas despesas, de forma a manter o que se chama de equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, previsto não só na Lei de Licitações (art. 58, I e §2º, aliado com art. 65, II, "d"), mas também na própria Constituição Federal (art. 37, XXI). Essa hipótese de mudança é conhecida como alteração qualitativa com repercussões quantitativas.

A pergunta que pode ser feita é: entre a rescisão ou alteração contratual, porque a Administração Pública optaria pela segunda? Porque, nesse momento de pandemia, não se trataria de opção, mas sim de obrigação legal manter os serviços públicos essenciais à população, dentre eles o fornecimento de alimentos à comunidade escolar viabilizados pelos contratos administrativos com os agricultores familiar.

A Lei Federal nº 13.979/20, que trata das medidas de enfrentamento ao coronavírus foi recentemente alterada pela Medida Provisória 926/20 publicada em 20/3/2020 para ressaltar, dentre outras questões, que as medidas de enfrentamento porventura adotadas deverão “resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais” (art 3º, § 8º).

Já o Decreto 10.282/20, que regulamentou a Lei nº 13.979/20, definiu como serviços públicos e atividades essenciais que deverão ser resguardados durante o período de enfrentamento da pandemia, aqueles “indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população” (art. 3º, caput). Dentre esses serviços essenciais, o decreto elenca a “produção, distribuição, comercialização e entrega, realizadas presencialmente ou por meio do comércio eletrônico, de produtos de saúde, higiene, alimentos e bebidas” (art. 3º, XII).

Da leitura conjunta desses dispositivos legais, não seria equivocado concluir que a manutenção dos contratos de fornecimento com os agricultores familiares é uma forma não só de preservar o direito à alimentação escolar, garantindo segurança alimentar e nutricional aos alunos da educação básica brasileira, principalmente àqueles que se encontram em vulnerabilidade social (art. 2º, VI, e art. 3º da Lei nº 11.947/2009), como também de fazer cumprir a legislação atual de enfrentamento à pandemia do covid-19, em especial no que se refere à preservação dos serviços públicos e atividade essenciais (art 3º, § 8º, da Lei 13.979/20 e Decreto 10.282/20). Tudo isso, com respaldo e respeito à Lei de Licitações nº 8.666/93, que permite a alteração qualitativa e quantitativa dos contratos administrativos em seu art. 65.

Podemos partir de um caso prático do município de São Paulo para exemplificar como essas alterações contratuais poderão ser justificadas e concretizadas.

O Decreto Municipal nº 59.283/2020, que declarou situação de emergência no município de São Paulo, estipulou em seu art. 16, inciso III, que a Secretaria Municipal de Educação tem a obrigação de buscar “alternativas para o fornecimento de alimentação aos estudantes”;

Baseado neste Decreto Municipal e na legislação nacional indicada acima, seria possível que os assentados, quilombolas e agricultores familiares formalizassem à Secretaria Municipal de Educação um pedido de manutenção e alteração dos contratos administrativos de fornecimento de alimentação escolar para substituir a entrega centralizada dos alimentos no Centro de Distribuição da Coordenadoria de Alimentação Escolar (CODAE) para associações de moradores nos bairros onde residem as famílias dos alunos;

Isso porque, no modelo adotado pelo município para os contratos administrativos oriundo das chamadas públicas do PNAE, existe uma cláusula que determina que:

A  entrega  do  produto  deverá  ocorrer  no Centro  de  Distribuição  da CODAE, operado pelo SERBOM Armazéns Gerais, situado na Rodovia Anhanguera s/nº (km 26 a 421 metros), Jardim Jaraguá, São Paulo/SP – CEP 05275-000 - Tel (11) 3916.1013, em horário estabelecido em cronograma.

A critério da CODAE poderá ser determinado outro local de entrega. 

Bastaria, desta forma, uma alteração específica desta cláusula 3.2, ou até mesmo a utilização da prerrogativa já prevista na cláusula 3.2.1, para a adequação dos locais de entrega dos alimentos da agricultura familiar.

Vale destacar, para encerrar esse exemplo, que o próprio modelo de contrato já prevê, em sua cláusula 4.6, a possibilidade de reequilíbrio   econômico-financeiro, o que pode ser necessário caso haja um aumento nos custos de logística e frete com a alteração dos locais de entrega.

Por todo o exposto, seria possível, e até mesmo exigível, a manutenção dos contratos administrativos de fornecimento de alimentação escolar por agricultores familiares durante o período de enfrentamento da pandemia do covid-19. 

Uma manifestação ou resolução do MEC/FNDE, na qualidade de gestora dos recursos do PNAE, esclarecendo e regulamentado essa possibilidade, auxiliaria os gestores municipais e estaduais a realizar esses procedimentos. Até lá, os assentados, indígenas, quilombolas e agricultores familiares como um todo precisarão tratar diretamente com as prefeituras e governos estaduais a manutenção de seus contratos, com adequação dos locais de entrega, e questionar administrativamente toda e qualquer decisão administrativa que rescinda unilateralmente tais contratos.

* Thalles Gomes é advogado.

Edição: José Eduardo Bernardes