Em um discurso contundente e possivelmente histórico, a secretária-executiva da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), Alicia Bárcena, defendeu, nesta sexta-feira (3), a abertura de fronteiras na América Latina e no Caribe para promover os canais de intercâmbio comercial na região durante a pandemia de covid-19.
A declaração da secretária-executiva foi dada em coletiva de imprensa em Santiago, no Chile, durante apresentação do relatório intitulado “A América Latina e o Caribe diante da pandemia da covid-19: efeitos econômicos e sociais”, em que a entidade aborda a conjuntura relacionada à crise e tece considerações sobre o caso. Vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), a comissão foi criada em 1948 e trata de incentivos à cooperação econômica entre os seus 33 países membros.
Para Bárcena, a abertura de fronteiras comerciais seria importante para superar diferenças políticas e incentivar a ajuda mútua em áreas consideradas mais relevantes, como é o caso do comércio de medicamentos, equipamentos médicos e alimentos. A secretária-executiva afirma que a iniciativa tenderia a contribuir para a autossuficiência da região, que importa U$ 6 bilhões todos os anos somente em produtos alimentícios, apesar de também produzir gêneros do tipo. Para a emissária, não há saída para a América Latina e o Caribe que não passe por esse modelo cooperativo de organização interna.
“O que vai acontecer depois dessa crise? Todo o mundo vai se regionalizar. A Europa vai olhar pra Europa, Ásia e Pacífico vão olhar pra Ásia e Pacífico e quem vai olhar pra América Latina e o Caribe? Não creio que sejam os Estados Unidos, que também têm uma problemática interna muito severa, portanto, seremos nós mesmos, com nossas fortalezas”, disse, destacando ainda que o Caribe carece de maior atenção. A região é uma das mais vulneráveis e atualmente pleiteia, no âmbito internacional, um alívio da sua dívida externa.
Fundo regional
Nas considerações sobre o futuro que se anuncia em meio à crise, a Cepal propõe a criação de um fundo regional dedicado às necessidades dos países do continente para que, a médio prazo, se possa facilitar a recuperação social e econômica.
O endividamento, por exemplo, é um dos pontos de destaque no relatório da comissão: o documento ressalta que, no terceiro trimestre de 2019, a dívida mundial alcançou o patamar dos U$ 253 bilhões de dólares, o que equivale a 322% do PIB mundial. Uma das preocupações da comissão está no fato de a questão envolver especialmente o setor corporativo não financeiro e os governos.
O problema se soma a outros efeitos da crise, como a desaceleração mundial da economia e a perda de postos de trabalho, o que provoca também queda no consumo dos indivíduos. Como a economia opera como uma engrenagem, a Cepal chama a atenção para o risco real de aumento crescente dos problemas sociais, como é o caso da pobreza.
Para a secretária-executiva, a ONU, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial são “essenciais” para garantir o acesso a financiamentos e apoiar o gasto social e a atividade econômica com medidas inovadoras. Na visão da emissária, as soluções estariam “fora da caixa”.
Na avaliação da comissão, o impacto econômico final da pandemia vai depender das medidas que forem tomadas aos níveis nacional, regional e mundial. Nesse sentido, o colegiado tece algumas orientações aos membros. Para Alicia Bárcena, seria fundamental os países garantirem, por exemplo, a manutenção das políticas de isolamento social para assegurar a eficácia das ações de combate ao coronavírus.
“Creio que a grande pergunta que temos que fazer neste momento é ‘como não achatar a economia?’, e fazê-lo requer um cumprimento rigoroso e muito efetivo das quarentenas. Se não cumprirmos as quarentenas, a profundidade [da crise] na América Latina e no Caribe vai ser muito difícil e vamos estender esta situação”, disse, categoricamente.
Estado
Com base nisso e na retração econômica observada no mundo, a Cepal sustenta que o papel do poder público seria fundamental no contexto de agravamento da crise econômica e social, que põe em risco principalmente as populações mais vulneráveis, como é o caso dos trabalhadores informais. Segundo a secretária-executiva, 53% do segmento vivem sob intensa precarização na região.
A comissão também entende como vulneráveis, neste contexto, as micro e pequenas empresas, que existem em grande número nos países locais. No México, por exemplo, o setor representa 97% da planta empresarial, tendo impacto monumental na economia. Por esse motivo, Alicia Bárcena disse apoiar medidas de incentivo como a liberação de linhas de crédito rentáveis e o auxílio do Estado no pagamento dos salários dos trabalhadores.
A secretária-executiva mencionou, por exemplo, a importância das políticas de concessão de renda mínima para garantir o consumo básico das famílias, como foi aprovado no Brasil. Outros países, como Argentina e Peru, também discutem atualmente o tema.
“É o Estado, o público, aquilo que vai nos tirar dessa crise. Obviamente com a ajuda do mercado também, mas o mercado sozinho não vai resolver os problemas”, disse, com veemência.
“Repensar o capitalismo”
É dentro dessa linha de raciocínio que Bárcena aponta que o mundo tem caminhado nos rumos da financeirização da economia e que seria preciso rever o modelo de desenvolvimento em curso.
“Nós temos deixado que ocorra esse desacordo entre o financeiro e o real. Isso não é possível hoje e por isso temos que repensar a economia, repensar a globalização. Creio que é a isso que está nos convidando essa crise, e repensar o capitalismo”, assinalou.
A emissária disse que o posicionamento não significa que a entidade “não esteja a favor do mercado”, mas sim que defende que a postura deste esteja “a favor da sociedade”. “O que tem se passado entre os países, por exemplo, é que se tem mercantilizado a saúde. Isso nós não podemos permitir. A saúde é um direito”, frisou.
Diante disso, a Cepal disse valorizar o processo de conversão pelo qual estão passando as empresas que agora investem na produção de outros tipos de gênero para se adaptar à crise e, ao mesmo tempo, ajudar a população. A emissária mencionou aquelas que passaram a produzir máscaras, respiradores e álcool em gel, por exemplo.
Na visão da comissão, isso mostra que, na região latina e caribenha, há países que teriam capacidade estrutural de se adaptar para enfrentar uma crise dessa natureza, como é o caso de Argentina, Brasil e México. Ao tocar nesse aspecto, a emissária voltou a mencionar a importância das políticas de integração para garantir o fluxo comercial desses produtos dentro da região. Nas projeções do Cepal, em 2021, alguns países devem se recuperar mais rapidamente da crise, mas terão destaque aqueles com maior capacidade produtiva instalada.
“O mundo mudou e, mais uma vez, digo que temos que repensar o modelo de desenvolvimento. Esta é nossa visão, uma visão histórica. Estamos em uma mudança de época, há uma mudança de paradigma. Temos ir que ir até o fundo e pensar em como vamos incrementar a produção, mas com base na igualdade e na sustentabilidade ambiental. O planeta está enfermo”, finalizou a emissária.
Edição: Vivian Fernandes