Direitos

Revolta social chilena pode gerar 1ª Constituinte da história com paridade de gênero

Congresso aprovou lei de igualdade no órgão constituinte, mas só uma das fórmulas do plebiscito permitirá isso

Brasil de Fato | Santiago (Chile) |

Ouça o áudio:

Deputadas chilenas durante votação do projeto de igualdade no processo constituinte. - Assessoria de Impresa Frente Ampla Chile

Uma Constituição é o conjunto das leis que rege todo um país e a vida de todos os seus cidadãos. Sendo assim, ao dizer que ela deveria ser elaborada por uma quantidade igual de homens e mulheres parece um conceito básico de justiça e igualdade. Mas, na verdade, nenhuma Carta Magna vigente no mundo foi produzida de tal forma…por enquanto.

No Chile, a revolta social iniciada em outubro de 2019 poderia chegar a esse inédito resultado. Após a eclosão dos protestos, o país passa por um processo constituinte e um plebiscito constitucional acontecerá no dia 26 de abril.

Uma vez que o plebiscito autorize a conformação de um novo órgão constituinte, este precisará ter 50% de presença feminina e 50% de presença masculina, como estabeleceu uma lei aprovada pelo Congresso chileno no dia 5 de março.

A iniciativa do projeto aprovado foi apresentada pela bancada de deputadas feministas na Câmara. Uma das mais atuantes desse grupo é Gael Yeomans, presidenta do partido Convergência Social, o mais à esquerda dentro da Frente Ampla.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Yeomans disse que “foi muito emocionante ganhar essa votação [sobre a igualdade de gênero na Constituinte] em um Congresso que é bastante hostil para nós mulheres, onde também não há igualdade. Nós somos 35 deputadas de 155 deputados [no total] na Câmara. No Senado a proporção é mais ou menos igual, e portanto, somos minoria hoje. Além disso, nem todas as mulheres na Câmara são feministas, nem todas queriam a igualdade na Constituinte, e por isso tivemos que enfrentar uma luta muito grande”.


A deputada chilena Gael Yeomans. / Assessoria de Imprensa Frente Ampla Chile

Porém, essas conquistas nunca chegam assim tão facilmente, e ainda há um obstáculo para essa constituinte igualitária. Isso porque o plebiscito terá duas perguntas. A primeira é sobre aprovar ou não o início do processo e, segundo as pesquisas, mais de 70% dos chilenos são favoráveis à aprovação, mas a segunda pergunta permite escolher que tipo de órgão constituinte será criado, e aí está o problema.

Nesse caso, as opções são uma “convenção constituinte”, na qual 100% dos seus integrantes seriam pessoas eleitas especialmente para trabalhar na Constituinte, e a outra seria uma “convenção mista”, que terá somente 50% desses integrantes exclusivos, enquanto os outros 50% seriam parlamentares do atual Congresso que seriam deslocados para a nova assembleia.

Segundo a deputada Yeomans, “isso certamente será parte do debate constituinte porque, na convenção mista, 50% dos seus membros virão do atual Congresso, e neste Congresso atual não há essa igualdade. A única forma de haver um desequilíbrio mínimo, mas um desequilíbrio enfim, é se todas as mulheres do parlamento migrassem ao processo constituinte, mas isso significaria deixar o Congresso (que continuará funcionando paralelamente à assembleia constituinte) sem mulheres”.

Devido a essa situação, os movimentos responsáveis pela campanha em defesa da nova Constituinte, e a favor da criação de uma “convenção constitucional” sem os parlamentares atuais, lançaram um vídeo onde se enfatiza a questão da paridade. Na propaganda, uma mulher explica que a convenção constitucional é a única possibilidade de que o órgão constituinte seja igualitário para que o Chile possa ter essa inédita Constituição com 50% de participação feminina.

Como funcionará o mecanismo de igualdade na conformação do órgão constituinte

Se for aprovada a “convenção constitucional” -- as pesquisas mostram uma vantagem pequena dessa opção, perto de 60% --, a igualdade será norma desde a conformação das listas de candidatas e candidatos para a eleição dos constituintes.

A advogada Bárbara Sepúlveda, presidenta da ABOFEM (Associação de Advogadas Feministas do Chile), conta um pouco sobre como será esse processo. “As listas de candidaturas para a Constituinte deverão ser encabeçadas sempre por mulheres e, daí por diante, segue um padrão de alternância, o segundo será um homem, depois uma mulher, homem, mulher, homem, e assim sucessivamente”, explica.

Sepúlveda também assegura que as listas que não cumprirem com esse requisito deverão ser eliminadas automaticamente.


A advogada feminista chilena Bárbara Sepúlveda. / Arquivo pessoal

Depois, no momento de escolher as eleitas e eleitos, também haverá um mecanismo igualitário. “Evidentemente, nos distritos que elegem um número par de representantes, essa fórmula será mais simples, porque é só escolher os mais votados de cada um dos gêneros. Nos distritos com quantidade ímpar de vagas, vai haver sempre um homem a mais, ou uma mulher a mais. No final, se esse representante extra for, em uma grande maioria dos casos, a favor de um dos gêneros, operará uma fórmula de correção, que fará com que, entre esses extras, os menos votados de um gênero deem lugar aos mais votados do outro, até restabelecer o equilíbrio”.

Edição: Luiza Mançano