Uma das maiores mobilizações de trabalhadores rurais da história da Índia, a Kisan Long March (ou "Longa Marcha Camponesa") completa dois anos em março. Na ocasião, cerca de 50 mil agricultores caminharam 186 km em seis dias, entre as cidades de Nashik e Mumbai, para protestar contra o agravamento da crise agrária no governo do primeiro-ministro Narendra Modi.
Secretário-adjunto da União Nacional de Camponeses da Índia (AIKS, na sigla em inglês), Vijoo Krishnan era um dos rostos à frente daquele movimento. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele afirma que a crise persiste e é resultado das políticas neoliberais implementadas há 29 anos.
A AIKS estima que 400 mil agricultores indianos tenham cometido suicídio desde 1995 como consequência dessas políticas. “Os custos para cultivo da terra aumentam sem nenhum tipo de seguridade social, pagamento antecipado ou compras pelo Estado”, lamenta o líder camponês.
Em 2014, primeiro ano de Modi como chefe do Executivo, o número de suicídios aumentou 42%. Desde então, o governo de extrema direita deixou de divulgar estatísticas oficiais sobre o tema.
Na entrevista a seguir, Vijoo Krishnan também analisa a contradição entre fome e alta produtividade agrícola na Índia e explica o que motivou os protestos contra a presença de Bolsonaro na capital Nova Delhi, em janeiro.
Confira:
Brasil de Fato: A Índia é líder mundial em áreas dedicadas a cultivos agrícolas, mas tem mais pessoas famintas e desnutridas que 40 países da África Subsaariana juntos. Como explicar essa contradição?
Vijoo Krishnan: Políticas econômicas neoliberais foram implementadas por diferentes governos desde 1991. Isso fez com que o Estado reduzisse os investimentos em desenvolvimento rural, segurança alimentar. Você deve ter ouvido que 400 mil agricultores indianos cometeram suicídio desde 1995 devido ao agravamento da crise agrária, por não receberem pagamentos adequados por sua produção e não conseguirem pagar suas dívidas. Ao mesmo tempo, os custos para cultivo da terra aumentam sem nenhum tipo de seguridade social, pagamento antecipado ou compras pelo Estado. Os suicídios são resultado dessas políticas.
Em nome de uma eficiência maior e da redução de custos, o acesso dos pobres a grãos está se tornando restrito em várias partes do nosso país. Na região de Maharashtra, por exemplo, todos os anos 21 mil crianças morrem antes dos cinco anos de idade devido à má nutrição.
De um lado, a classe dominante está tentando vender uma Índia digital, integrada à era da tecnologia. Do outro, temos crianças morrendo de fome e sofrendo com a desnutrição em diferentes partes do país. É um quadro semelhante ao que tínhamos durante o império britânico e que nos remete às milhares de mortes que ocorreram em Bengala [em 1943, quatro anos antes da independência da Índia, cinco milhões de pessoas morreram de fome naquela região]. Milhões de indianos ainda convivem com as mazelas daquela época.
A implementação de políticas neoliberais ocorreu durante os governos do Partido do Congresso da Índia (de 1991 a 1996). A situação se agravou quando Modi, do Partido do Povo Indiano (BJP), assumiu o cargo de primeiro-ministro, em 2014?
Não são políticas do Partido do Congresso ou do BJP: são políticas da classe dominante, que o capitalismo global está impondo sobre as pessoas pobres. Isso está sendo implementado aqui também, em meio a reações dos trabalhadores.
Houve momentos em que a esquerda conseguiu presença significativa no parlamento, houve manifestações de rua, e o governo da UPA [Aliança da União Progressista], eleito em 2004, ampliou os investimentos em agricultura e desenvolvimento rural. Houve alguns avanços em termos de políticas públicas, e então o governo da direita ultranacionalista chegou ao poder em 2014 com a promessa de acabar com a crise agrária.
Eles diziam que iriam garantir aos agricultores mais de 50% dos custos de sua produção como pagamento mínimo justo, prometeram créditos facilitados, acesso a água, etc. Após a eleição, eles esqueceram essas promessas: o que temos é um aprofundamento das políticas neoliberais.
Este governo está promovendo a pilhagem corporativa da terra, da água, das florestas e dos recursos naturais do nosso país.
Você mencionou o acesso à água. Mais de dois terços dos campos indianos são irrigados por água subterrânea, que está se esgotando. Quais as perspectivas?
Desde que a humanidade conhece a agricultura, a água é um dos bens mais importantes, tanto quanto a terra ou a semente. São as “ferramentas” do trabalhador do campo.
O acesso à água, em muitas partes do nosso país não é uma realidade, porque as técnicas de irrigação não são acessíveis a todos. E, especialmente nas áreas onde ocorreu a Revolução Verde [nos anos 1960], o uso de água é excessivo.
Hoje é preciso cavar cada vez mais profundo para encontrar água. Se considerarmos esse conjunto somando-se às mudanças climáticas, é uma situação de calamidade.
Nos últimos dois anos, tivemos estiagens contínuas em Kerala, Karnataka, Andhra Pradesh e em algumas partes de Maharashtra. Em outros estados, como Orissa, temos seca em algumas estações e enchentes logo em seguida. Lidar com tudo isso é um grande desafio.
Além disso, existe um processo de monopolização da água. Latifundiários controlam o acesso em algumas áreas, setores privados estão adquirindo os direitos de uso da água, e há até casos de privatização de rios por governos locais. Todos esses aspectos agravam a crise agrária que vivemos.
Em março de 2018, você foi uma das lideranças da Kisan Long March, em que 50 mil agricultores percorreram 186 km a pé para protestar. Quais eram as pautas e como foi possível mobilizar tantos camponeses?
Aquela marcha foi o auge de uma série de lutas travadas pela AIKS e por organizações de base que se uniram contra a aquisição indiscriminada de terras, em defesa dos direitos dos camponeses. Construímos unidade em torno dessas pautas.
Quando a marcha começou, em 2018, eu lembrei às pessoas da “marcha da fome”, de Malabar até o norte de Kerala, liderada pelo companheiro A. K. Gopalan nos anos 1930. Porque a situação que até hoje verificamos em algumas regiões da Índia não é diferente daquela de 90 anos atrás.
Basta olhar para os objetivos da nossa marcha. A mídia focou muito nos preços dos cultivos, mas havia pautas muito mais básicas. O direito à terra era uma delas.
Até hoje, milhões de trabalhadores indianos estão cultivando as terras de terceiros, de latifundiários. Eles ainda têm o controle da terra. Os direitos da floresta também estavam em pauta, e dizem respeito às comunidades tribais da Índia, que desde 2006 deveriam ter esse direito garantido.
Também nos posicionamos contra os projetos de trem bala e de interligação fluvial na região de Maharashtra, que o BJP está tentando implementar, devido a suas consequências ecológicas e seu alto custo – além das desapropriações de terras de camponeses da região.
No Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) possui acampamentos e assentamentos e até uma escola dedicada à formação política dos trabalhadores. Como a AIKS enfrenta o desafio de organizar os camponeses indianos sem dispor de estruturas como essas?
A AIKS existe desde 1936 e foi formada na luta contra o império britânico e contra o poder dos grandes proprietários de terras. Somos a maior organização camponesa do país, com mais de 15 milhões de membros espalhados pelo país. A nossa força está nas dezenas de organizações que existem nos estados e são filiadas à AIKS nacionalmente.
Para além da longa marcha de 2018, houve grandes mobilizações no Rajastão, em Karnataka, Andhra Pradesh, e em vários outros estados.
Desde 2014, conseguimos construir frentes de batalha contra as políticas fascistas do governo e contra todas as formas de opressão e exploração. A participação que tivemos na marcha do estado de Maharashtra é resultado dessa nossa capacidade de acolher as demandas dos camponeses. Ela começou com entre 12 e 15 mil camponeses, mas, gradualmente, chegamos a 50 mil.
Marchamos 186 km por seis dias, uma média de 25 a 30 km por dia. E, a cada dia, pessoas dos vilarejos próximos se juntavam, em solidariedade. Tínhamos a classe trabalhadora, dalits [população excluída do sistema de castas], adivasis [povos originários].... Todos os setores do país que sentem na pele a brutalidade dessas políticas se uniram, solidários.
Entendemos que é este o caminho: a solidariedade que se constrói entre classes, entre comunidades. Para as batalhas futuras, essa é a lição que fica.
Apesar da propaganda do agronegócio e dos investimentos do governo nos grandes proprietários de terras, quem coloca comida na mesa dos brasileiros é a agricultura familiar. A Índia também convive com essa contradição?
Sim. Na Índia, mais de 70% [do alimento da população] vem de pequenos produtores. Muitos deles, inclusive, são sem-terra que precisam pagar para produzir no terreno de terceiros ou dividir sua produção com o dono das terras.
Por exemplo, no estado de Andhar Pradesh, há quase 3 milhões de pequenos agricultores. O governo indiano costuma dizer que estamos quebrando recordes de produção de alimentos, mas isso se deve ao esforço dos camponeses, dos pequenos agricultores. Não é mérito do agronegócio.
Temos, sim, uma produção recorde. O problema é que o governo não consegue garantir que esse alimento seja distribuído à população de forma acessível.
Assim como no Brasil, a maior parte dos grãos produzidos na Índia é para exportação. Como isso impacta os trabalhadores, e quais as estratégias do agronegócio por aqui?
Em 1991, tivemos uma mudança na nossa política agrícola. Desde então, ela é voltada para exportação. O governo diz que, se você não produz grãos e não quer se dedicar a cultivos de alto rendimento, dê logo as suas terras para grandes corporações. Essa é a sugestão que vem do Fórum Econômico Mundial e de outras organizações internacionais.
Se a Índia não suporta certos cultivos, o governo tem estimulado as grandes corporações do agronegócio a comprar terras no exterior, na América Latina e na África Subsaariana. Isso já está acontecendo. Em Moçambique, por exemplo, a Índia já tem plantações.
Isso também ocorre em Myanmar, em vários países africanos. Porém, não é isso que vai atender as necessidades de uma população grande como a nossa. Somos a segunda maior população mundial, atrás da China. Para alimentar a todos, é preciso ser auto-suficiente não só em grãos, mas em frutas e vegetais, em leite.
No primeiro ano de governo, Bolsonaro autorizou o uso de centenas de agrotóxicos que antes eram proibidos no Brasil. Como vocês têm enfrentando esse problema na Índia?
A Organização Mundial da Saúde [OMS] tem uma lista de pesticidas extremamente perigosos para a saúde humana. O uso deve ser eliminado. Esse é o posicionamento da AIKS.
Temos uma campanha massiva contra o uso do inseticida Endosulfan. Nas plantações de caju em Kerala e Karnataka, conseguimos banir a aplicação desse veneno. O governo local [do CPI-M] conseguiu derrubar a permissão dada aos agricultores.
Hoje, grandes representantes do agronegócio, como Monsanto e Bayer, estão pressionando para que o uso de novos tipos de venenos seja tolerado. Nós também temos trabalhado para resistir a esses esforços.
Como organização, também estamos estimulando a prática da agroecologia, baseados em estudos científicos. O estado de Kerala antes importava vegetais de estados vizinhos. Nos últimos anos, temos produzido vegetais sem agrotóxicos em terras ociosas, de grandes proprietários. Agora, Kerala está se tornando auto-suficiente na produção de alimentos.
Em Tripura, outro estado indiano, estamos dando ênfase ao sistema de intensificação do arroz, em que o uso de água é reduzido em cerca de 75% e o uso de fertilizantes é muito menor do que em outros estados, como Punjab e Haryana.
Desejaríamos fazer muito mais. Mas, ao menos em estados liderados por governos de esquerda, temos conseguido respaldo para fortalecer as cooperativas e promover a agroecologia.
No Brasil, o agronegócio financia as campanhas de candidatos de quase todos os partidos e está muito atrelado ao poder político, o que dificulta o debate da reforma agrária popular. Quais as condições para resistir a essas grandes corporações na Índia, na esfera institucional?
O cenário é semelhante na Índia. As terras estão concentradas nas mãos de poucos, que são os mesmos que detém o poder político.
Um dos agravantes aqui é o sistema de castas. Se você estudar o perfil de quem é dono de terras na Índia, você verá grande predominância dos representantes das castas superiores. E são esses setores que dão as cartas, politicamente. Essa relação hierárquica persiste no nosso país.
Para além da classe dominante, existem os burgueses, donos de terras, defendendo seus interesses, e não importa se é o BJP ou o Partido do Congresso que está no poder.
Para analisar a velocidade com que o BJP tem conseguido implementar suas políticas, precisamos lembrar que eles têm a seu lado o RSS [Rashtriya Swayamsevak Sangh, maior grupo paramilitar do mundo e berço político de Modi]. Após 1991, também tivemos a ascensão de uma elite agrária, cujas origens remetem à estrutura feudal. São eles que concentram os investimentos do governo.
Mesmo projetos importantes, como o MGNREGA [Ato de Garantia de Emprego Rural Mahatma Gandhi, de 2005], são controlados por esses setores em vários territórios. Nossa luta também é contra esse cenário, porque a gente vê que o orçamento do MGNREGA está sendo reduzido ano a ano.
Toda orientação política deste governo é em benefício dos produtores mais ricos.
A AIKS se manifestou contra a visita de Bolsonaro a Modi, em janeiro. O que motivou os protestos contra o presidente brasileiro em janeiro?
A AIKS quer manter uma relação de amizade e unidade com o Brasil. Nossa oposição é exclusivamente em relação às políticas implementadas por Bolsonaro.
Nós ouvimos sobre como as florestas do Brasil estão sendo devastadas, como os opositores políticos estão sendo esmagados. Estamos passando por uma situação parecida aqui na Índia.
Os protestos que ocorreram aqui foram convocados inicialmente pela federação de produtores de cana de açúcar, que é filiada à AIKS, mas nós tentamos expandi-lo para outras organizações.
A primeira pauta da nossa manifestação é que o Brasil havia questionado a Índia na Organização Mundial do Comércio [OMC], dizendo que os agricultores indianos estavam recebendo subsídios muito altos. A realidade é que esses agricultores ainda estão para receber bilhões de rúpias como pagamento.
Dois anos atrás, eles investiram cerca de 2,1 trilhões de rúpias [equivalente a R$ 130 bilhões], trabalharam duramente e, agora que a produção foi vendida, eles estão esperando a compensação. E, mesmo assim, o governo não está aumentando os subsídios.
Nesse contexto, o Brasil pediu que a Índia respeitasse o limite de subsídios de 1998, sem reajuste. De lá para cá, houve grande aumento nos custos de produção, e isso não está sendo levado em conta.
Aparentemente, depois dos protestos que fizemos aqui, fomos informados de que Modi e Bolsonaro decidiram voltar a debater esse tema. É algo positivo, diante de tantos prejuízos.
Enfim, quero dizer aos amigos do Brasil que, em centenas de lugares da Índia, queimamos espantalhos do Bolsonaro e espalhamos a mensagem “Vá embora, Bolsonaro”. É nosso dever expressar solidariedade aos trabalhadores e camponeses brasileiros.
Edição: Leandro Melito