São Paulo amanheceu nesta terça-feira (11) lidando com as consequências das enchentes que inundaram e travaram a cidade no dia anterior. O volume de água registrado no intervalo de 24 horas entre domingo e segunda foi o maior dos últimos 37 anos para o mês de fevereiro, conforme informações do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).
O temporal deixou cinco pessoas mortas em regiões do interior e um cenário desolador com centenas de pontos de alagamentos, desabamentos e quedas de árvores. Até a tarde da segunda-feira (10), o corpo de bombeiros havia recebido mais de 7.650 mil chamados apenas na capital e região metropolitana da capital paulista.
Mas, por que os alagamentos atingem São Paulo de forma tão brutal? Segundo especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, o descaso global em relação às mudanças climáticas e um modelo urbanístico desordenado são os principais fatores.
Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), relator do Plano Diretor da cidade, explica que as enchentes e os consequentes alagamentos são resultado de uma excessiva impermeabilização.
“Em toda a cidade temos avenidas que estão em cima dos rios, que foram canalizados com uma vazão, a quantidade de água que passa no rio, menor do que a existente hoje. Com a urbanização da cidade, construção de prédios, casas e pavimentação das ruas, a quantidade de água que chega é maior do que era no passado. As canalizações são insuficientes. Isso é um problema estrutural de toda concepção da cidade que tem uma enorme área urbanizada”, diz Bonduki.
O rio Tietê e o rio Pinheiros, por exemplo, foram retificados nos anos 1940. O processo substituiu por concreto a várzea natural dos rios, que, naturalmente, em períodos de cheia, seria ocupada pelas águas. Com o estreitamento e alteração dos leitos nas cidades, a água das cheias passa a invadir as margens, onde não existem mais árvores e solo permeável. Apenas asfalto. No caso do Tietê e do Pinheiros, rodovias marginais de grande porte.
Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima, alerta que com a intensificação do aquecimento global, a média de pluviosidade anual tende aumentar a cada ano, assim como a temperatura do planeta. Neste contexto, as chuvas serão cada vez mais intensas e os períodos de seca mais longos.
Para ele, o planejamento urbano do estado de São Paulo não tem considerado as graves alterações causadas pelos próprios seres humanos no meio ambiente.
“Infelizmente as mudanças climáticas já estão trazendo impactos para as nossas vidas. E isso está sendo agravado pela expansão urbana desordenada, pela destruição das áreas verdes que são importantes não só para boa temperatura ou para lazer, para o equilíbrio climático local, mas também para absorver partes da chuva que caem sobre nosso solo. Quando temos mais impermeabilização do solo a tendência é que, com mais chuvas, as enchentes se intensifiquem e passemos a ver mais cenas dramáticas como as do Espírito Santo, Minas Gerais e São Paulo”, diz.
Prevenção insuficiente
De acordo com a Base de Dados de Execução Orçamentário do Município de São Paulo, a Prefeitura usou 48% da verba destinada ao orçamento para a prevenção de enchentes em 2019. Do total de R$ 973 milhões previstos, apenas R$ 474 milhões foram utilizados.
Levantamento da Globo News mostrou que as ações também deixaram a desejar em nível estadual: o governo não aplicou 42% de verba contra enchentes na última década.
Sobre as cifras, Nabil Bonduki pondera que nem sempre o orçamento previsto está disponível para o investimento, mas, ainda assim, analisa que há incapacidade das gestões para compor projetos, fazer licitações de obras e priorizar áreas. Mesmo dentro das políticas realizadas, analisa ele, a maioria não resolve problemas estruturais.
São Paulo vai precisar de mais piscinões, não temos como enfrentar o problema a curto prazo sem eles. Mas se não tivermos medidas estruturais, eles apenas enxugarão o gelo.
Ele pontua ainda que, em momentos de tragédia como a que atingiu São Paulo, fica nítido que iniciativas do Plano Diretor não foram cumpridas. Como por exemplo, a criação de 168 novos parques na cidade.
A criação de “piscinões” é uma das principais construções antienchente utilizada pelo Poder Público. No fim de 2019, a gestão Doria-Covas anunciou a conclusão de cinco grandes reservatórios para a macrodrenagem de água, porém, o número total está abaixo da meta prevista de 19 construções no início do mandato. Até agora, apenas 8 piscinões foram entregues.
“São Paulo vai precisar de mais piscinões, não temos como enfrentar o problema a curto prazo sem eles. Mas se não tivermos medidas estruturais, eles apenas enxugarão o gelo. Vai amenizar o problema de hoje mas amanhã vai ressurgir”, comenta Nabil Bonduki.
O especialista adiciona que a criação de “piscininhas” para atuação que a população pudesse armazenar água em prédios e casas também seria uma alternativa. E sugere ainda outras medidas que também poderiam ser adotadas, além da preservação de áreas verdes e criação de parques, inclusive nas áreas periféricas.
Entre elas estão a implementação de sistemas permeáveis nas calçadas ao invés do uso do cimento, a criação de canteiros verdes e mudança do padrão de mobilidade, que beneficia o transporte individual em detrimento do transporte público.
Bonduki relembra que, há dez anos, o governador José Serra criou três faixas na marginal do rio Tietê com apoio do então prefeito Gilberto Kassab, eliminando cerca de 1500 árvores e áreas permeáveis.
“A opção pelo automóvel precisa ser revertida. Infelizmente a Prefeitura se propõe a gastar um milhão para asfaltar as ruas, quando esse recurso poderiam ser direcionados a outras questões para que contribuíssem para aumentar a permeabilidade da cidade”, lamenta.
Futuro
Seguir o caminho da urbanização selvagem e ignorar as mudanças climáticas, a na opinião de Carlos Rittl, do Observatório do Clima, é o presságio de uma perspectiva ainda pior, que tornará a vida da população inevitavelmente mais difícil.
O secretário executivo assegura que “remediar é muito mais caro do que prevenir” e que é imprescindível que todo plano de desenvolvimento incorpore as mudanças climáticas, tratadas como fatores determinantes, assim como um sistema de recolhimento e tratamento de resíduos gerados em todas a cidade.
“Daqui para frente temos que nos preparar para conviver com eventos como os desses últimos dias. Ou seja, é enfatizar que é preciso políticas públicas que levem à redução das emissões de gases do efeito estufa que provocam as mudanças climáticas, como também precisamos pensar estratégias de adaptação”, defende Rittl.
Além das cinco mortes, o temporal na cidade de São Paulo deixou 500 desalojados e 142 desabrigados.
Edição: Rodrigo Chagas