Quando pensamos a interrelação solo-planta-homem, continua valendo o que disseram os índios bolivianos, assinalou a agrônoma Ana Maria Primavesi no artigo Meio Ambiente, Solo, Nutrição de Plantas e Sustentabilidade Agrícola: “Somos feitos de Sol (energia) Chuva (água) e Terra (minerais). Vocês alteraram a luz (pela poluição do ar) alteraram a água (as chuvas e estão extinguindo os rios), destruíram a terra (pela aração profunda, suas máquinas pesadas, os adubos químicos, herbicidas, pesticidas e fogo) mudaram as plantas (geneticamente). E agora. O que será de nós?” (Agruco, 1998).
Apesar de todo “progresso” tecnológico e o esplendor das cidades, acrescentou, “a vida humana continua dependendo do Solo isto é das plantas que nele crescem e da água que por ele se deve infiltrar, para depois nascer em forma de fontes, formando os rios. Mas os solos estão compactados, em parte desertificando, muitos rios estão secos e os famintos e doentes aumentaram”. As palavras de Primavesi, que faleceu no dia 5 de janeiro, aos 99 anos, seguem atuais e carregadas de urgência. Apontada como pioneira da agroecologia no Brasil, Ana Maria Primavesi teve uma vida dedicada à terra, à agricultura e à vida.
Leia mais sobre o legado de Ana Maria Primavesi na página especial dedicada a ela
O seu livro Manejo Ecológico do Solo a Agricultura em Regiões Tropicais, de 1980, impactou decisivamente a produção científica em bases ecológicas para a agricultura em muitos países de clima tropical, motivando e orientando a emergência de movimentos de agricultura alternativa, agricultura orgânica, agricultura biodinâmica, agricultura natural e agroecologia.
Uma das questões centrais da obra de Primavesi é que o solo é um sistema vivo e nas condições ambientais e ecológicas das regiões tropicais a agricultura deve ser feita de forma absolutamente distinta daquela praticada em regiões de clima temperado. Cabe lembrar que não só a origem, mas todo o desenvolvimento subsequente da agricultura industrial se deu e continua se dando, de forma hegemônica, em países de clima temperado, sob domínio de empresas e corporações apoiadas por seus governos, que a impõem por todo o planeta.
Ao desenvolver essas teorias, Ana Primavesi passou a ser “sistemática e violentamente atacada por asseclas da agricultura industrial, sendo possível um paralelo com o que aconteceu com Paulo Freire na educação e na pedagogia”, aponta José Maria Tardin, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que atua no Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente e na Frente Nacional de Agroecologia.
Em entrevista ao Sul21, Tardin fala sobre a formação do pensamento de Primavesi, a influência que teve sobre o desenvolvimento da agroecologia no Brasil e o legado que deixa em um período histórico em que os impactos econômicos, sociais e ambientais da agricultura industrial colocam a própria saúde do planeta em risco.
Sul21: Quais as bases teóricas e científicas que influenciaram o pensamento de Ana Maria Primavesi em sua formação como agrônoma?
José Maria Tardin: Ana Maria Primavesi em sua formação acadêmica na Áustria, da Agronomia ao doutorado em Culturas do Solo e Nutrição Vegetal, teve aulas com professores que a influenciaram sobremaneira para uma visão holística e ecológica do solo. Dentre outros, ela destaca enfaticamente em sua biografia os professores Franz Sekera e Johannes Göbing. Tais professores formulavam por suas pesquisas as bases explicativas do solo como um “sistema vivo”. É importante destacar que é na Alemanha, a partir de 1840, onde se formula a teoria de que as plantas se nutrem basicamente de minerais, relegando as bases húmicas, ou seja, da matéria orgânica e viva do solo como insignificantes. Todavia, a agricultura já com seus mais de 10 mil anos vinha sendo praticada com base na nutrição húmica por diferentes povos, e estes conhecimentos vão ser revitalizados com a emergência da microbiologia do solo, que já vinha pouco a pouco se constituindo desde o final do século XIX, sendo reconhecido o cientista russo Winogradsky, seu precursor inicial.
Ana se formou academicamente neste ambiente de amplos e conflitantes conhecimentos, e despertará para a ecologia do solo por seu convívio, estímulos e orientações, como referi, com os professores Sekera e Göbing. Na Universidade, Ana conheceu Artur, também estudante de Agronomia. Eles se casam e, em 1948, se estabelecem de forma definitiva no Brasil.
Sul21: E qual foi a trajetória de desenvolvimento desse pensamento aqui no Brasil?
José Maria Tardin: Após uma vivência em São Paulo e Minas Gerais, eles vão atuar de 1961 a 1974 na Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. É aí que introduzem na ciência agrícola do Brasil e internacional, conhecimentos inovadores e diretamente contestadores da dominante agronomia químico-mineral, já dominada por empresas cada vez maiores concentrando os múltiplos setores econômicos da agricultura – fertilizantes minerais, agrotóxicos, sementes, genética agrícola, máquinas e equipamentos, agroindústrias e comércio alimentar.
Muito rapidamente Ana e Artur vão criar e estruturar, na Universidade Federal de Santa Maria, o Instituto de Solos e Culturas, por ele presidido, e em ação marcante, mas também destemida, dado as limitações da época, decidem logo em seguida sediar o II Congresso Latino-Americano de Biologia de Solos, um feito radical e propulsor de pesquisas do solo como “sistema vivo”.
Anteriormente, tínhamos no Brasil três outras instituições que realizavam as primeiras pesquisas em microbiologia do solo, mas, como afirma o professor Adilson Paschoal, é Artur e Ana que trarão a contribuição mais abrangente, sistemática e o mais completo trabalho de microbiologia do solo. Uma verdadeira revolução na agronomia com repercussões internacionais e perenes.
Neste Congresso, um feito que surpreendeu e comoveu a todos os participantes, foi a apresentação do primeiro filme longa-metragem 16 mm, colorido e com desenho animado, produzido no mundo a tratar da dinâmica da vida no solo e sua relação com a fertilidade e a manutenção de culturas sadias e as interdependências com as práticas agrícolas. Esta obra prima pioneira em todos os sentidos intitulada A Vida do Solo, teve seu roteiro escrito por Ana e Artur e direção científica por Ana, sendo produzido manualmente no longo período de 1963 a 1968 por uma equipe constituída por mais cinco pessoas atuando como desenhistas, animadores, cinegrafista e locutor.
Sul21: Em que consiste exatamente essa revolução na agronomia?
José Maria Tardin: Ana e Artur vão logo marcar de forma definitiva a história da agricultura e da agronomia ao publicarem em 1964 a pioneira obra intitulada “A biocenose do solo na produção vegetal”, sistematizando e apresentando o vasto conhecimento que já acumulavam em edafologia e ecologia dos solos tropicais, rompendo com tal obra a dependência até então de estudos em bases aos solos de países de clima temperado.
O conceito de biocenose é inovadoramente e acertadamente exposto pelos autores, com o qual alcançam apresentar a dinâmica do solo em suas complexas interações físico-químicas e biológicas e que as alterações em cada componente desencadeiam alterações nos demais, numa síntese que permanece atual e estimuladora para as pesquisas que buscam explicações mais detalhadas dos fenômenos ecológicos que se dão nas interações solo-organismos vivos-plantas. Esta obra é que pela primeira vez permitirá concluir haver relação entre a vida no solo e a produção vegetal, como diz também o professor Pachoal.
O passo seguinte de Ana e Artur leva mais adiante a magnitude dos conhecimentos já expostos nesta obra, com a publicação no ano seguinte do livro Deficiências Minerais em Culturas. Nutrição e Produção Vegetal.
Tais obras confirmam o pioneirismo científico do casal Primavesi ao constatarem “não haver doença vegetal sem prévia e determinada deficiência mineral”, nas palavras do eminente cientista francês André Voisin, que prefaciou o livro A Biocenose do Solo na Produção Vegetal.
Voisin desenvolveu dentre outras pesquisas decisivas para a agroecologia, estudos da relação entre os bovinos – as forragens – e o solo, e propõe um sistema de pastoreio que ficou popularizado como Pastoreio Racional Voisin. Tais obras estarão ainda dentre aquelas em que se apoiará outro destacado cientista francês Francis Chaboussou, autor do livro Plantas Doentes Pelo Uso de Agrotóxicos: Novas Bases de uma Prevenção Contra Doenças e Parasitas – a teoria da trofobiose”, indispensável para a agroecologia e demais correntes de agricultura de base ecológica.
Sul21: Em que medida essas obras confrontaram o pensamento até então dominante na agricultura?
José Maria Tardin: Residindo em sua chácara em Apiaí, no interior do estado de São Paulo, Ana Primavesi trará a público em 1980 seu livro mais destacado e conhecido no Brasil e internacionalmente – Manejo Ecológico do Solo: a Agricultura em Regiões Tropicais. Não resta dúvida que as duas obras pioneiras em coautoria com Artur são os embriões desta atualizada e ampliada sistematização e publicação. Este é, seguramente, o livro que mais impactou a produção científica em bases ecológicas para a agricultura em muitos países de clima tropical, tanto quanto motivou e orientou a emergência de movimentos de agricultura alternativa, agricultura orgânica, agricultura biodinâmica, agricultura natural e a agroecologia. Segue sendo estudado na atualidade por agricultoras e agricultores, técnicos, educadoras e educadores e estudantes que se colocam na busca por melhor entender e praticar agriculturas de base ecológica em regiões tropicais.
Ninguém mais do que Ana Primavesi passou a ser tão sistemática e violentamente atacada por asseclas da agricultura industrial, sendo possível um paralelo a Paulo Freire na educação e na pedagogia.
A questão central é essa: o solo é um sistema vivo e nas condições ambientais e ecológicas das regiões tropicais, a agricultura e a pecuária hão de ser praticadas de forma absolutamente distinta daquela praticada em regiões de clima temperado. Consideremos que não só a origem, mas todo o desenvolvimento sequencial da agricultura industrial se deu e continua se dando hegemonicamente em países de clima temperado, sob domínio de empresas e corporações apoiadas por seus governos, que a impõem por todo o planeta.
Sul21: Como esse pensamento impactou o desenvolvimento da agroecologia no Brasil?
José Maria Tardin: As contribuições científicas e técnicas de Ana e Artur Primavesi rompem com esta dominação científica e abrem uma vastidão de possibilidades de campos de pesquisas para o estabelecimento de agriculturas de base ecológica efetivamente adequadas e necessárias para o Brasil e todos países tropicais. Reiteremos que são nestes países onde está a maioria da população camponesa responsável por 70% da produção mundial de alimentos, e onde está a porção maior da biodiversidade.
Ana Primavesi sistematizou ainda muitas outras obras fundamentais para as agriculturas ecológicas, e na grandeza da sua humanidade, fraternidade e amor aos povos do campo, das florestas e das águas, ela graciosamente entregou seu acervo de quase todas as obras já publicadas e todas as obras por publicar para a editora Expressão Popular, que as vem disponibilizando na medida em que vão sendo organizadas, revisadas e atualizadas por seu filho Odo e a filha Carin, com a contribuição da Virgínia Knabben, autora da sua biografia. Tais obras podem ser conhecidas e adquiridas pelo site da Expressão Popular.
Toda a geração de agricultoras e agricultores, técnicos, pesquisadoras e pesquisadores, educadores e educadoras, estudantes e militantes das variadas correntes de agriculturas ecológicas no Brasil que desde os anos 70 passaram a problematizar a agricultura industrial e dominação das empresas sobre a agropecuária, tem em Ana Primavesi uma referência de orientação científica e técnica e de caráter e ética e humanista imbatível.
Não só economicamente, ou mesmo politicamente, mas também científica e tecnicamente, as indústrias e corporações que na atualidade conformam o agronegócio, são absolutamente desnecessárias para a humanidade assegurar sua alimentação e outros bens da produção do campo. A contribuição de Ana Primavesi é marcante na história da agricultura e da humanidade porque orienta possibilidades a esta superação científica e técnica.
Sul21: Essa influência foi muito importante também dentro do modelo de agricultura pensado e desenvolvido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Como se deu essa influência e quais foram seus desdobramentos?
José Maria Tardin: Sim, a sua obra, em toda sua amplitude, foi sendo mais e mais apreendida no interior do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). No início, por técnicos que vivenciaram sua formação acadêmica organizados na Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB), ativa nos embates no interior dos cursos de agronomia pelo país desde os anos de 1970. E o momento decisivo passa a ser o IV Congresso Nacional do MST, realizado em Brasília no ano 2000, quando se delibera pela agroecologia como orientadora da reconstrução social e ecológica da produção nos assentamentos e acampamentos.
O passo seguinte é a pioneira organização no Brasil das escolas e cursos técnicos de agroecologia a partir das iniciativas do MST no Paraná, seguida por sua organização em vários outros estados, a partir de 2003. Veja que num curto lapso de 2003 a 2020, cá no Brasil passamos das primeiras escolas de agroecologia de nível médio ao doutorado, e numa quantidade exuberante de cursos de agroecologia agora não só organizados pelo MST, mas por vários Movimentos Sociais Populares do Campo articulados na Via Campesina, na Articulação Semiárido no Nordeste, na CONTAG [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura], na FETRAF [Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar], e por organizações não-governamentais na ANA – Articulação Nacional de Agroecologia, além de universidades públicas estaduais e federais.
Trata-se de um feito radical e de ruptura com o monopólio do conhecimento em ciências agrárias até então controlado pelo agronegócio. Uma radical derrubada da cerca do latifúndio do conhecimento em ciências agrárias, e que já levamos para o âmbito da pedagogia e da licenciatura por meio da Articulação Nacional por uma Educação do Campo que resultou em 2010 na sua reorganização no Fórum Nacional de Educação do Campo – FONEC. Estas iniciativas no âmbito da Pedagogia da Terra e da Licenciatura em Educação do Campo – LedoC, estão levando o ensino da agroecologia em múltiplas experiências embrionárias na educação infantil e básica, sendo a iniciativa mais estruturada na atualidade em três municípios na região extremo sul da Bahia, organizada pela Escola Popular de Agroecologia e Agrofloresta Egídio Brunetto, situada no assentamento Jaci da Rocha, em Prado.
Veja que, para o MST, a apreensão dos conhecimentos desenvolvidos e publicizados por Ana Primavesi vai se ampliando desde as experiências práticas em vários assentamentos e fundamentará os currículos e o ensino nos cursos técnicos médio, graduação e pós-graduação em agroecologia, e agora, no âmbito da educação das crianças e jovens Sem Terra.
Ana Maria Primavesi foi educadora voluntária na Escola Latino-Americana de Agroecologia. Foto: Leonardo Melgarejo
Sul21: Como foi a sua experiência de convívio com Ana Maria Primavesi?
José Maria Tardin: Tive a extraordinária vivência pessoal com Ana, quando da sua estada como educadora voluntária na Escola Latino-Americana de Agroecologia (ELAA), no assentamento Contestado na Lapa – Paraná, em 2006, quando ao final da aula de três dias com a primeira Turma de Graduação em Agroecologia no Brasil, paramos um momento no pátio da escola e ela após uns instantes de silêncio contemplando o “casarão” onde ainda permaneciam as educandas e educandos, sentenciou: “Agora eu sei que a agroecologia não tem volta”.
Eu me elevei em estado de catarse e transcendência. Meus olhos se fizeram olhos d’água. E, em incomensurável silêncio a agradeci com o coração. Ana também marejou! Mais uma vez, posso assegurar que o povo Sem Terra seguia de mãos dadas com a amiga sabedoria – a amizade com Ana vem humificando mais e mais os campos depredados pelo agronegócio conquistados nas lutas que vertem suor, lágrimas, sangue e tantas provações, e fazem acontecer as alegrias, a libertação, as amizades, os conhecimentos, a agroecologia, a emancipação humana.
Pessoalmente gostaria de destacar também que Ana, a exemplo do feito mundialmente pioneiro com o filme A Vida do Solo, direcionou uma magnífica obra pioneira de ensino da agroecologia para as crianças, publicado pela editora Expressão Popular em 2016 – A Convenção dos Ventos – Agroecologia em Contos”.
O maravilhoso é que esta obra não só é espetacularmente científica nos seus conteúdos, mas também poética, emocionante, que nos leva aos risos e lágrimas, que nos eleva ao magnânimo sentimento de pertencimento ao gênero humano e ao cosmos, e nos revigora na altivez campônia, de ser gentes dos campos, florestas e das águas. É para crianças no sentido etário, mas para mim, é ciência-arte que revitaliza as crianças que as circunstâncias do viver muitas vezes faz silenciar no âmago de cada adulto. Nos proporciona estas possibilidades de retomar o viver de mãos dadas com as crianças em ciranda infantil libertadora, emancipadora, radicalmente amorosa e agroecológica.
Edição: Sul 21