O quintal representava esse mundo híbrido, entre o rural e o urbano
No quintal de Helena Morley tinha horta, muita couve e ora-pro-nóbis, galinhas, pintinhos e ovos, pés de goiaba, pequi, jambos, gabirobas, mangaritos, marmelos, um pouco de feijão, uns porquinhos e algum torresmo. Era um quintal na melhor definição do termo, um lugar maravilhoso que abastecia a casa, um mundo inteiro a ser descoberto e saboreado todos os dias.
Helena Morley, pseudônimo de Maria Alice Dayrell Caldeira Brant, publicou seu livro Minha vida de menina em 1942, quando tinha 42 anos de idade. O livro, em forma de diário, conta a história de quando ela era adolescente em Diamantina, Minas Gerais, no final do século 19, no fim do Império e nos primeiros anos da República.
As comidas de quintal são as comidas de que fala o tempo todo Helena em seu diário. O pai, garimpeiro, tinha renda incerta e a família vivia do que tinha no quintal e do que conseguia trocar ou vender na cidade. Na verdade, esse era um tempo em que a própria cidade estava mudando e os quintais eram espaços que traduziam essas mudanças urbanas. Um terreno grande o suficiente para estar dentro da cidade e ter uma pequena produção caseira de víveres, com alimentos necessários para subsistência, mas pequeno para um sítio, chácara ou fazenda. O quintal representava esse mundo híbrido, entre o rural e o urbano, de um tempo em transformação.
Era um tempo de transformação na maneira como as pessoas adquiriam alimentos. Como Diamantina vivia uma espécie de febre de diamantes e ouro e a cidade crescia, era possível adquirir alimentos considerados luxuosos, como bacalhau, azeites, bolachas enlatadas inglesas, vinho do porto ou sorvetes em diversos armazéns e lojas locais. Mas a economia do garimpo era cruel e incerta.
A maioria das famílias vivia, remediadamente, da produção de alimentos que conseguia no próprio terreno da família, os quintais. De lá vinham o básico do abastecimento da casa: os feijões; as hortaliças, como a couve; e os legumes, como a abóbora. A maioria das casas possuía algumas galinhas, que garantiam ovos e carne de frango. Vários pés de fruta garantiam sobremesas fartas, que se tornaram típicas, como as goiabadas, os doces de marmelo, as geleias e os licores. Uma enorme variedade de biscoitos, bolinho, pasteis e mingaus eram feitos consumidos dentro das casas, pelas famílias, mas também revendidos na cidade. Toda uma economia informal girava em torno dessas sobras, revendas e trocas do que era produzido com os víveres do quintal.
Helena lembra da importância do fubá, como uma das comidas “matadoras de fome”: “Eu acho que a pior invenção da vida é mingau de fubá. Não compreendo para que ele serve. Se a gente está com fome, toma mingau e a fome aperta mais. Se não está com fome, bebe mingau e a fome abre. Há tanta coisa boa para se fazer com fubá: cuscuz, broas, sonhos, bolos, e ninguém quer sair do mingau de fubá”.
Nos dias de aperto, o improviso era regra e dava-se um jeito de alimentar as muitas bocas da família. “Na chácara”, recorda-se Helena, “se faz muita couve no almoço e no jantar, porque tem muita gente de cozinha. Generosa, então, inventou, da cabeça dela, cozinhar os talos de couve com as peles do toicinho e faz um guisado de que nós também gostamos muito”.
As comidas dos quintais se relacionam com outra prática muito comum nas cidades brasileiras até meados do século 20: a vendas desses víveres por mulheres, escravas ou livres, em tabuleiros. Eram as quitandeiras. Presentes na maioria das cidades brasileiras do período colonial e imperial, as quitandeiras vendiam em seus tabuleiros os excedentes de uma pequena produção caseira: temperos da horta, couves, frutas diversas, um ou outro peixe pescado, feijões, abóboras, outras verduras e legumes. Mas também eram vendidos produtos feitos em casa, como bolinhos, torresmos, pão de ló, aluás, pasteis de angu, canjicas, broas e pães.
Esse comércio era uma das maneiras de abastecer as casas e, muitas vezes, em períodos de escassez ou crise econômica, a economia da cidade girava ao redor dessas vendas informais de alimentos. O Poder Público sempre tentou cercear o comércio das quitandeiras para cobrar impostos – foram inúmeras as tentativas de colocá-las em mercados ou feiras para poder cobrar taxas.
A comida de quintal, que hoje vemos em festivais, nas viagens, nos botecos e pelo interior de Minas e São Paulo, é a comida de casa, de um tempo de escassez e improviso. De uma época em que se olhava para os campos e para o quintal para ver o que pôr na mesa. Uma alimentação que o sábio professor mineiro Eduardo Freiro chamou em seu livro “Feijão, angu e couve”.
Edição: Camila Maciel