A questão da concentração de terras no Brasil é uma preocupação recorrente em nossa história política. Desde antes da Independência, o tema já era tratado, por exemplo, por José Bonifácio. A distribuição de terras figurou entre as bandeiras de parte do movimento abolicionista, no final do século 19. Nos anos 1960, a reforma agrária estaria no centro dos embates nacionais.
Com o surgimento de diversos sindicatos de trabalhadores rurais e das Ligas Camponesas – que tinham como lema “Reforma Agrária na lei ou na marra” --, a questão do acesso à terra passa a integrar a plataforma do presidente João Goulart, com as chamadas reformas de base. Contra esse conjunto de medidas, há uma reação que desemboca no golpe civil-militar de 1964.
De forma intrigante, uma das primeiras medidas legislativas do governo Castelo Branco foi justamente uma lei sobre reforma agrária: o Estatuto da Terra, promulgado em 30 de novembro de 1964. Além da questão fundiária, o texto, ainda em vigor, estabelece também mecanismos de política de desenvolvimento agrícola.
O engenheiro agrônomo Luiz Carlos Guedes Pinto, ex-ministro da Agricultura, era estudante universitário na ocasião da edição do estatuto. Depois de formado, conheceria diversos acadêmicos e técnicos que participaram da redação da lei. Ele aponta que, entre os integrantes do grupo de trabalho que deu origem ao texto, havia intelectuais favoráveis a alguma espécie de reforma agrária.
Motivações
A razão para que a ditadura assumisse tal projeto, entretanto, ainda é duvidosa. Pinto menciona ao menos duas interpretações. A primeira diz respeito ao perfil de Castelo Branco, general de origem cearense que, enquanto comandante do então 4º Exército, sediado em Recife, fez um curso sobre reforma agrária. Outra linha interpretativa é a de que a reforma agrária dizia – e ainda diz – respeito a um problema social concreto, sobre o qual os militares desejavam dar alguma sinalização.
Se não há consenso sobre as razões para sua origem, há bastante acordo entre especialistas sobre os efeitos concretos do Estatuto da Terra para a reforma agrária. Ou melhor, a ausência deles.
Pinto indica que os problemas começaram durante a própria concepção do Estatuto da Terra, originalmente pensado apenas para ser uma lei de reforma agrária. Na realidade, desde o início dos debates no grupo de trabalho que elaborou o projeto essa tensão se fez presente.
“Começam as pressões sobre o grupo para limitar as propostas da lei, para reduzir o poder de intervenção. Foram feitas algumas concessões para incluir dispositivos relativos ao desenvolvimento agrícola. Tem um primeiro retrocesso já na elaboração da lei”, diz.
Modernização conservadora
Nicinha Porto, presidenta da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), entende que o duplo caráter do texto gerava uma contradição na prática, que acabou beneficiando o lado do desenvolvimento agrícola pelo viés da colonização de novas áreas com base em grandes propriedades. O efeito foi o inverso da reforma agrária.
“Ele [estatuto] foi ignorado [no tocante às regras para a reforma agrária]. Nós tivemos o desenvolvimento da modernização conservadora da agricultura do ponto de vista produtivo, que produziu os grandes latifúndios”, defende.
A explicação para a dominância da política agrícola conservadora a partir do estatuto, na visão de Porto, reforça a ideia de que o principal empecilho para a reforma agrária, mais do que tudo, é político e social, e não legal.
“Se não houvesse uma pressão política contrária à reforma agrária tão forte, eu acredito que seria possível realizar, não uma reforma agrária massiva, mas uma ação muito mais consistente do que foi feito, com a legislação que a gente tem”, lamenta.
Pinto faz a mesma avaliação. “Na prática, com as forças sociais que estão presentes na sociedade como um todo, mas sobretudo no Congresso Nacional, há alguns avanços, mas nunca houve condições para se colocar em prática um programa efetivo que mudasse a estrutura agrária do país. Até hoje”, aponta.
Legado
Apesar da inefetividade, o Estatuto da Terra apresenta ideias que seriam consolidadas na Constituição de 1988, como a função social da propriedade. Ironicamente, a família Bolsonaro é uma das principais promotoras da relativização do conceito posto pelos militares na legislação.
Criticada por juristas, a PEC Nº 80, de 2019, tem como alvo justamente flexibilizar os critérios para a averiguação de cumprimento da função social.
Edição: Aline Scátola