No Brasil, as disputas que envolvem a questão fundiária e a política de comercialização de terras apresentaram um novo período de tensões desde o golpe de 2016. No ponto de vista do professor Sérgio Sauer, o atual governo promove um aprofundamento dessas tensões com uma política ultraliberal que favorece tanto a estrangeirização das terras quanto o avanço do agronegócio.
A ampliação do limite de área para regularização de terras no Brasil, que era de até 1.000 hectares para 2.500 hectares, por exemplo, foi um marco que permitiu a "legalização" de áreas grilada, segundo a avaliação do professor.
Por outro lado, a gestão Bolsonaro pisou no freio para regularizar as terras indígenas e quilombolas, acirrando ainda mais os conflitos no campo.
Confira um breve panorama da disputa pela terra no País na entrevista do Brasil de Fato com Sauer, docente da Faculdade UnB de Planaltina (FUP/UnB), nos Programas de Pós Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (Mader), Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS) e Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT).
Brasil de Fato: Como está a disputa por terra no Brasil?
Sérgio Sauer: Do ponto de vista das intenções do governo, há um aprofundamento do que aconteceu na gestão Michel Temer após 2016. A administração Bolsonaro representa a continuidade da lógica neoliberal, mas com aprofundamento, portanto, explicitando ideias ultraliberais para o campo, pautado na defesa incondicional da propriedade privada. Essa defesa é corporificado na indicação do ex-presidente da UDR (União Democrática Ruralista), historicamente conhecida como uma entidade que defende a propriedade privada por qualquer meio, para a secretaria fundiária do Ministério da Agricultura.
Além disto, ainda no governo Temer, a edição e aprovação da Medida Provisória 759, de 2016, reforçou a lógica de privatização das terras. A ênfase - se não exclusividade - na titularização de lotes dos assentamentos de reforma agrária tem como objetivo disponibilizar essas terras no mercado. A titulação (individual) retira a responsabilidade do Estado — deixam ser "terras do INCRA [Instituto Nacional de Colonização e= Reforma Agrária]" — e possibilita a comercialização dos lotes. Esta lógica privatista fica mais evidente nas mudanças do Programa Terra Legal, pois a nova lei permite regularizar posses (e terras griladas) de até 2.500 hectares (antes era até mil hectares) e não só na Amazônia, mas posses no país inteiro.
E qual é o impacto disso?
A ampliação do Terra Legal vai, além de legalizar posses duvidosas — para não dizer griladas—, ampliar o mercado de terras. A lógica se aprofunda no governo Bolsonaro porque, a intenção é implementar a lei, especialmente agilizar a entrega de títulos, facilitando a comercialização. Essa lógica é sustentada por narrativas que "o Estado precisa deixar progredir"; "o Estado não pode impedir o desenvolvimento", ou seja, justificativas menos sofisticadas do estado mínimo neoliberal. Aliás, é mais do que neoliberal, pois ultraliberal, uma radicalização da lógica privatista, com a adoção de medidas pró-mercado sem qualquer preocupação, ao contrário, associado à destruição dos órgãos e instrumentos de controle e fiscalização. Os resultados são a fragilização, se não a extinção das políticas públicas, aumento da pobreza e dos conflitos no campo.
Um outro elemento, mais antigo, é a paralisação de toda e qualquer política fundiária, especialmente a criação de novos assentamento e o reconhecimento e titulação de territórios indígenas e/ou quilombolas. Seja por pressão dos órgãos de controle, especialmente os acórdãos do Tribunal de Contas da União (TCU) que paralisou as ações do INCRA desde 2015, seja pelos cortes profundos no orçamento da ações de reforma agrária, não foram criados novos projetos de assentamento no Brasil nos últimos três anos. Associado à essa lógica ultraliberal, estamos assistindo a uma volta do que José de Souza Martins, nos anos 1980, definiu como "militarização da questão agrária", ou seja, ações estatais de controle (autoritário) das demandas por terra e território. No governo atual, a militarização se dá pela nomeação de militares para postos de comando de políticas fundiárias, como foi a indicação de militares para a presidência do Incra e da Funai.
É preocupante o avanço do capital estrangeiro sobre as terras brasileiras?
Sim, é preocupante. O tema saiu da grande mídia (pois perdeu a tônica alarmista); saiu dos debates da opinião pública, mas a preocupação permanece, especialmente associado a investimentos nas fronteiras agrícolas como, por exemplo, na região do Matopiba. As mudanças legais — edição da MP 759, para colocar terras no mercado —, além de ampliar o apoio ao agronegócio — ao disponibilizar mais terras, portanto, equilibrando oferta e procura e mantendo os preços sob controle — , visam também atrair investimentos estrangeiros. Com a ascensão de Temer, as iniciativas de liberar os investimentos estrangeiros em terra voltaram à pauta. Não houve, no entanto, acordo interno forçando o adiamento dessa liberação. No governo Temer, era pública a divergência entre os ministros da Fazenda, de liberar para atrair investimentos, e da Agricultura, como grande proprietário e produtor de grãos era interessado direto em manter a competição por terras sob controle. Essa divergência impediu a liberação de investimentos estrangeiros para a compra de terras. A eleição de 2018 reacendeu a intenção de liberar, sendo que há vários projetos no Congresso, inclusive uma do senador Flávio Bolsonaro de liberar o investimento. Com ou sem a liberação, os investimentos já acontecem, não só com o "uso de laranjas" — pessoas que colocam o nome no título mas não são as verdadeiras proprietárias —, mas se tornou difícil separar capital nacional de estrangeiro. Há investimentos e compras de terras por empresas e pessoas físicas nacionais, mas os recursos são captados no mercado internacional, tornando difícil definir se é um investimento nacional ou estrangeiro.
A liberação de vendas de terras para capital estrangeiro também é um impasse na relação do governo com o agronegócio?
Parcialmente sim, pois a liberação de investimentos significaria mais recursos e presença de outros atores, portanto, maior concorrência. E maior concorrência significa, por exemplo, aumento do preço da terra, pois haveria mais gente disputando as mesmas terras. Por outro lado, aumento de preço pode significar mais lucros, especialmente com a especulação imobiliária. Então [a liberação] serve a uma parte dos interesses, o das transações especulativas, mas não ao todo conjunto, que engloba investimentos e capital produtivo. No entanto, a lógica é combinar investimentos especulativos e produtivos, fazendo da liberação mais um canal de ganhos, resultando em mais concentração das terras.
A percepção do senso comum sobre a disputa de terra mudou ao longo dos anos?
Seja devido às lutas por reforma agrária ou às demandas por reconhecimento dos direitos territoriais dos povos do campo — indígenas, quilombolas e camponeses —, sempre houve uma disputa na sociedade, com momentos de maior apoio e momentos de menor apoio da opinião pública. Apesar de muitas dificuldades e críticas, em meados dos anos 2000, houve mudanças, ou melhor, avanços, pois os povos do campo conseguiram vincular essa disputa e demandas por terra à noção de direitos, inclusive ao direito à alimentação. As lutas e demandas por reconhecimento e titulação de terras indígenas e quilombolas ganharam conexões mais explícitas a direitos, como, por exemplo, o direito à autodeterminação, intimamente relacionado à terra. Foi uma associação positiva, na minha opinião, que contou com uma contribuição importante do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), pois explicitamente afirmou e associou a garantia do direito à alimentação dessas populações ao direito aos territórios e acesso à terra.
E o que mudou?
Apesar da afirmação de direitos, a crise político-econômica de 2014 — que se aprofunda com o golpe parlamentar-midiático de 2016 — levou a uma inversão da narrativa, enfatizando que esses direitos impedem o crescimento econômico; que esses direitos e a execução de políticas públicas oneram o Estado. Pós 2016 volta a narrativa neoliberal, jogando contra essa noção de direito, relacionando-os com o endividamento público, pois "se gastou demais" com políticas sociais. No governo Bolsonaro, os discursos de negação, inclusive de ódio, são mais explícitos, questionando os próprios direitos, não reconhecendo, por exemplo, direitos à terra e ao território, pois os mesmos impedem o crescimento da produção. Nos casos de terras já reconhecidas ou demarcadas, o discurso ultraliberal é baseado na noção da liberdade individual de todo brasileiro de investir — uma justificativa enviesada de empreendedorismo individual — e "enricar" ou "melhorar de vida". A ênfase passa a ser em uma lógica exacerbada no direito de explorar comercialmente a terra e crescer. Recentemente, duas narrativas antigas voltaram muito fortes, ou seja, os povos indígenas têm terra demais e/ou esses povos devem exercer o direito de explorar — ou deixar explorar! as riquezas naturais de suas terras. Estas narrativas são frequentes, inclusive em manifestações públicas de ministros e membros do atual governo, justificando a paralisia total das ações governamentais e sinalizando para a não garantia de direitos, o que tende a gerar mais conflitos e aumento da pobreza no campo.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira