O Brasil de Fato entrevistou, com exclusividade, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso desde abril na sede da Polícia Federal em Curitiba. O encontro ocorreu na quarta-feira (23).
Entre outros assuntos abordados, o ex-mandatário criticou a operação Lava Jato, liderada pelo ex-juiz Sergio Moro, hoje ministro da Justiça; a atuação do presidente Jair Bolsonaro (PSL) em seus primeiros dez meses de governo; e o modo em que a administração está tratando os vazamentos de petróleo que atingiram todos os estados do Nordeste.
O Brasil de Fato separou os principais trechos para quem ainda não viu a entrevista na íntegra. Confira:
Brasil de Fato: O senhor falou inúmeras vezes que não abre mão da sua dignidade por sua liberdade e que quer provar a sua inocência. Essa é uma decisão que é tomada diariamente, em todos os tipos de ações. A gente pode imaginar o tanto de pressão que é exercida sobre a sua liberdade. O que está na balança? Quais são os sacrifícios diários para tomar essa decisão?
Luiz Inácio Lula da Silva: Eu fui criado por uma mãe analfabeta. A minha mãe morreu sem saber fazer um "O" com um copo. Meu pai morreu analfabeto. Mas tem uma coisa que eu aprendi com eles que é ter honradez. Esse negócio de honra, caráter, autoestima, é uma coisa que está no sangue da gente. É uma coisa que se aprende desde pequeno. Eu não nasci pra andar de cabeça baixa.
Eu resolvi reagir. Eu já disse outras vezes: eu poderia não estar no Brasil, eu poderia estar em uma embaixada, mas eu resolvi vir pra cá porque eu não provaria a minha inocência se eu não estivesse aqui. Aqui, brigando, de cabeça erguida. Eu estou falando com você [repórter] aqui, mas olha a cara do Moro nas entrevistas que ele dá. Ele sabe que ele é mentiroso. Ele não tem nem coragem de olhar na cara das pessoas. Olha pra esse Dallagnol, que, na verdade, montou uma quadrilha com essa força-tarefa [da Lava Jato]. Ele queria ficar rico. Ele queria pegar dinheiro da Petrobras para criar um instituto. Para fazer o quê? É contra isso que eu me insurgi. E foi contra isso que eu tomei a decisão de que o lugar que eu deveria estar é Curitiba. Vão me prender aqui um ano, dois anos, não tem problema nenhum. Eu tenho paciência. Mas o que eu quero é o seguinte: eu aprendi a andar de cabeça erguida e não baixo a minha cabeça. Eu sou igual a qualquer brasileiro. Se eu cometi um erro, eu tenho que pagar.
Acha que eu posso aceitar alguém falar: "Não, o presidente já cumpriu um ano e meio, ele vai ter progressão de pena". Não. Progressão de pena é pra ladrão. Progressão de pena é para culpado. Eu quero a minha inocência. Eu quero o julgamento do mérito do meu processo. É assim que está dito o jogo e é assim que que vou jogar. Eu não sei o que vai acontecer, mas essa gente tem que saber que no Brasil ainda tem gente de caráter. Essa gente tem que saber que nenhum deles é melhor do que eu. Essa gente tem que saber que nenhum deles é mais honesto do que eu. Essa gente tem que saber que eu tenho, só de política – eu comecei isso em 1969, eu tinha 24 anos de idade –, então eu tenho 50 anos de vida política. Eu nunca tive um processo contra mim. Não posso agora permitir que um bando de meninos, messiânicos, com interesse político eleitorais, com interesses ideológicos, venham jogar lama em cima do meu nome.
Sobre o STF, a gente sabe que a mídia burguesa faz essa discussão em torno do caso do senhor. Discutir prisão em segunda instância impactaria 5 mil presos hoje, além de mudar a lógica do Judiciário. O senhor acredita que os ministros do STF fazem essa discussão pensando no que isso impacta no seu caso ou realmente pensando no impacto disso para a população brasileira e a forma como o Judiciário opera?
A única coisa que eu espero é que eles votem de acordo com a consciência deles e de acordo com o cumprimento da Constituição. O único compromisso que eles deveriam ter é com a verdade, com a Constituição. Obviamente que eu acompanho a imprensa todo dia, eu sei a pressão que a Globo faz. Eu sei que chegaram a dizer que vão soltar centena de milhares de presos, que "vamos num restaurante jantar com bandido", tentando criar uma certa inibição da hora do voto. Eu acho que a Suprema Corte não pode se deixar levar por essa pressão e nem pela ideia do que a opinião pública quer ou não quer. Se quiserem trabalhar de acordo com a opinião pública, as pessoas têm que ser candidatas a alguma coisa. Então vamos fazer eleição direta para o gabinete da Suprema Corte. Vamos fazer eleição direta para juízes. Não é assim. Eles têm uma tarefa sublime. Eles têm o cargo vitalício, um cargo de muita responsabilidade. Depois de um voto da Suprema Corte, a gente não tem para quem recorrer, então eles precisam, efetivamente, apenas com muita serenidade, cumprir o que a Constituição diz.
Se eles cumprirem o que a Constituição diz, o Brasil estará agradecido. Eu sempre espero, com muita, muita tranquilidade. Eu sei que as pessoas do outro lado não querem que eu seja livre. Eu tenho dito para algumas pessoas que um dos meus desejos é fazer um ato público na porta da Globo. Só por prazer. Para colocar todas as mentiras que ela contou sobre o meu caso nesses últimos anos. Passar um dia inteiro lá falando, fazer uma cronologia mostrando as mentiras contadas ao meu respeito. Agora, eu não vou sair daqui com raiva, com ódio, porque senão eu não vivo. Eu quero sair daqui bem de cabeça. Eu quero restaurar a verdade nesse país.
O senhor sempre tem dito que é importante que o povo creia na Justiça, que é importante para nossa democracia. Como é possível acreditar em uma Justiça, esperar que ela o liberte, se foi essa mesma Justiça que colocou você na prisão, caracterizada como uma prisão política, personificada no Moro e no Dallagnol. Como é possível esperar que ela liberte você?
Não foi a Justiça que me colocou aqui. A Justiça é uma coisa muito ampla. Quem me colocou aqui foi o Moro e os três juízes do TRF4, inclusive sem ler o meu processo. Se ele lesse o processo, eles iam ver que o Moro mentiu. Eles iam ver que o Dallagnol mentiu.
Eu acredito que a Justiça é muito heterogênea. Eu acredito que as pessoas vão ler a Constituição e cumprir a Constituição. Se não fizerem isso, vou continuar brigando aqui dentro. É o seguinte: eu não abro mão da verdade. Eu não abro mão.
Eu sei o que eu passei na minha vida para chegar onde eu cheguei, sempre respeitando todo mundo. Eu vou continuar a minha briga. É uma briga difícil, mas eu vou fazer. A única coisa que eu tenho clareza é que eu não vou desanimar. Não peçam para eu desanimar, que eu não vou desanimar. Continuo dizendo que eu acredito na Justiça, porque veja: imagina eu, ex-presidente da República, de repente dizer: "Eu não acredito na Justiça". Se eu disser que não acredito na Justiça, eu vou ter que dizer outra coisa. Vou ter que falar pro povo: "Olha, vamos resolver com as mãos". Não é assim. Eu acredito que o Poder Judiciário tem um papel muito importante nesse país, é só seguir corretamente as leis e cumprir as leis. É só fazer julgamento com base na verdade, com base na prova, com base na apuração, e não com base em critérios políticos e preconceituosos de classe. Eu sei que a gente não tem ainda nenhum prounista [estudantes beneficiários do Programa Universidade para Todos] como ministro do Supremo [Tribunal Federal], mas um dia nós vamos ter. Eu acredito nisso e vou brigar.
O senhor coloca a questão que queriam te tirar das eleições desde o golpe contra a ex-presidenta Dilma. Esse plano foi garantido pelas pessoas que te colocaram aqui dentro. Ainda assim há muito esforço para mantê-lo na prisão. Na sua opinião, o que eles têm? É medo de vê-lo solto?
Não sei o que eles têm. Eu acho que o que eles têm, na verdade, [é que] a mentira vai desaparecendo… E se eu estiver na rua em condições de falar com o povo mais livremente… A Globo não poderia pedir uma entrevista comigo aqui dentro para transmitir ao vivo? Com a Globo eu não confio de gravar, tem que ser ao vivo. A Bandeirantes não poderia pedir uma entrevista aqui ao vivo? Eu estou disposto a falar com eles. A Record… Marca um programa ao vivo e vem aqui. Manda a pessoa mais feroz deles, o mais antilulista que eles tiverem para me entrevistar aqui ao vivo. Tenho o maior prazer. E, com essa cara de “paz e amor de Lulinha” eu falarei com eles. Não tem problema.
Eu tenho desafiado eles. Porque eu acho que a única coisa que justifica o medo que eles têm de mim é saber que os pobres voltarão a comer três vezes por dia. É voltar a saber que a gente vai comprar os alimentos dos pequenos produtores rurais. É saber que a gente vai garantir que os pequenos produtores vendam parte dos seus alimentos para as escolas públicas desse país. É saber que as pessoas pobres vão continuar entrando nas universidades, nas escolas técnicas. É esse o medo que eles têm? Pois então me deixem morrer aqui, porque é isso que eu vou fazer.
O senhor traz muito o protagonismo da Globo no golpe e na sua prisão. Falou agora sobre a questão das fake news. Ao mesmo tempo, a gente vê como a Record tem ganhado cada vez mais uma atuação política alinhada ao governo Bolsonaro. Agora tem mais um grande complexo de comunicação com força…
O que o SBT está fazendo é uma vergonha.
Exato, mas eles têm muito dinheiro. Além de tudo, como é possível a esquerda romper com toda essa lógica da mídia burguesa, das fake news? Já levando em consideração a autocrítica de que não foi feita a regulamentação dos meios de comunicação.
Eu faço a autocrítica porque é necessário fazer autocrítica, mas, na verdade, para você fazer uma regulamentação dos meios de comunicação, você tem que levar em conta a correlação de forças existente dentro do Congresso Nacional. E se você levar em conta a correlação de forças, você vai perceber que o quadro congressual é muito negativo para a sociedade brasileira. Acaba de ser aprovada uma política de reforma da Previdência que é contra o povo, e foi o povo que votou nesses deputados.
Quando você analisa que os companheiros do Movimento Sem Terra, com a força que tem nesse país, com o trabalho extraordinário, só tem dois deputados federais, e que a bancada ruralista tem mais de 200. Quando você analisa que metalúrgico deputado só tem dois e representante do empresariado tem 300, ou 400. Você fala: bom, como você vai aprovar coisas em benefício da sociedade brasileira se os que estão lá são contra ela?
Então, é importante que o movimento comece a pensar que nós precisamos fazer lutas menos economicistas e mais políticas. Ou nós politizamos a sociedade para ela saber em quem vota na época da eleição, ou as pessoas estarão sempre colocando uma raposa para tomar conta do galinheiro, achando que vai dar resultado, e não dá resultado. O resultado é que a pobreza está voltando, o desemprego está voltando, a fome está voltando. O resultado é que a desmoralização do Brasil no exterior é muito grande. O Brasil virou motivo de piada lá fora.
Eu estou vendo de um lado o Bolsonaro falando as bobagens dele, de outro lado o Guedes vendendo o Brasil. E nós estamos com uma luta economicista sem fim. Quando eu acho que a luta agora é eminentemente política. Eles não têm o direito de vender o Brasil. Eles não têm o direito de vender a Petrobras, vender a Eletrobras, as coisas que eles estão vendendo a preço de banana.
Esse petróleo que nós descobrimos através do pré-sal era para ser o futuro desse país. Eles estão entregando a preço de banana. A nossa luta tem que ser essa. A nossa luta tem que ser contra o desmonte do Brasil. Depois que o seu Guedes acabar de vender tudo, ele vai morar em Nova York, Paris; e o povo brasileiro que fique aqui, comendo o pão que o diabo amassou, porque é sempre assim na história do Brasil.
É por isso que tenho falado muito da soberania nacional. A soberania nacional não é defender a Petrobras, não é defender o Banco do Brasil. A soberania nacional é defender o povo brasileiro. Só existe uma nação, por causa do povo. E o que dá qualidade a uma nação é a qualidade de vida do povo, a qualidade de educação do povo, a qualidade da alimentação, a qualidade de produção, é o conhecimento científico e tecnológico dessa nação. É isso que é soberania. É isso que eu acho que a gente tem que ir para a rua, brigar. Engraçado, porque eu vejo as pessoas falarem: "Vamos para a rua", mas ninguém vai. O cara que fala não vai.
Por que o senhor acha isso?
Eu vejo tanta gente falar: "Tem que ir para a rua, tem que ir para a rua". Mas o cara que fala tem que ir. Se não for… O povo não dá murro em ponta de faca. O povo foi massacrado durante vários anos com uma quantidade de mentiras enormes, e eu sei da dificuldade de você reverter isso. Não é uma coisa simples. É preciso muito discurso, é preciso muita clareza, uma narrativa séria por parte do nosso pessoal. Temos que construir uma narrativa para lutar contra a narrativa deles. Então tudo para eles é o comunismo, tudo pra eles é o governo da Dilma, tudo pra eles é o Lula. E a nossa narrativa?
Eu acho que às vezes a gente tem muitos discursos diferenciados, cada um defende uma coisa, e a gente não conta uma narrativa única para o povo, para ele se dar conta do que está acontecendo no Brasil. Dizer que o Brasil está em crise por conta da Dilma é uma mentira deslavada. Eu, quando vejo o Temer dar entrevistar agora, como se não tivesse acontecido nada nesse país… Até reconhecendo que houve golpe, já…
Então o que eu acredito é que o pessoal, os nossos companheiros da esquerda, dos movimentos sociais, precisam construir uma narrativa. Nós temos uma coisa que a gente não tinha há dez anos atrás, que são as redes sociais, que têm coisas muito negativas, mas dá para a gente um instrumento que a gente não tinha. Então o que nós temos que fazer: é preciso construir a nossa rede social, juntar todo mundo que pensa mais ou menos a mesma coisa, e construir uma unificação de narrativa de alguns assuntos. Para que todo mundo saiba a mesma coisa ao mesmo tempo. Mas se cada um ficar falando uma coisa, nós estamos construindo uma Torre de Babel, e não conseguimos unificar a nossa luta.
A gente assiste a esse retrocesso promovido pelo governo Bolsonaro em diversas áreas. Na saúde, cada dia é uma. O senhor acha que é possível reverter esse quadro de retrocesso? Custou tanto para garantir os direitos do povo. Esse trator é possível de ser freado? E como é possível fazer essa reconstrução? O senhor vê isso no horizonte?
Vamos ter em conta o seguinte: uma Previdência Social, de quando em quando você tem que fazer um ajuste em função dos avanços da própria sociedade. Você não precisa ficar um século com o mesmo sistema de aposentadoria, você pode fazer ajustes. Eu lembro que quando eu comecei a trabalhar, a gente, muitas vezes, não se aposentava porque morria antes de se aposentar. Eu lembro que naquele tempo quem tinha 60 anos era velho. Hoje as pessoas estão vivendo até os 75. Dependendo da profissão, até um pouco mais. Você pode fazer ajustes, o que você não pode fazer ajuste é por conta do déficit público. [Não se pode] tentar colocar a culpa na aposentadoria e nos aposentados pela questão econômica.
O que o povo pagava dava muito bem para cobrir a Previdência Social. Nós temos um problema no setor público, que eu fiz um ajuste em 2003. O PSOL foi criado por causa da briga da reforma da Previdência que eu fiz. Era preciso ajustar alguma coisa. Filha de general não casava para ficar recebendo pensão a vida inteira; o cara se aposenta recebendo salário integral e ainda tem aumento real da categoria. Tudo isso a gente brigou muito. Era o Ricardo Berzoini o ministro da Previdência Social. Agora, a receita da iniciativa privada era superavitária até 2014. [Se] você quer resolver o problema da Previdência Social, [tem que] gerar emprego. Quando você gera emprego, você gera um contribuinte. Quando você gera um contribuinte, gera um aumento da arrecadação. Foi assim no nosso governo, quando nós criamos mais de 20 milhões de empregos com carteira profissional assinada.
Aí [se] você quer fazer um ajuste na Previdência, discute com a sociedade. Eu criei um grupo em que participavam todas as centrais sindicais, participava o governo e participavam os empresários. Vamos discutir, vamos ver o que precisa aperfeiçoar, e você faz. O que você não pode é tentar fazer uma reforma para resolver um déficit que não é da Previdência, para resolver o problema fiscal do governo. Eu sinceramente não sei… Não é fácil você aprovar emenda constitucional nesse país. O Congresso, hoje, é muito mais conservador do que já foi em qualquer outro momento. Eu acho que nós vamos ter que ver o que a gente quer desse país. Eu, sinceramente, acho que é quase que a reconstrução, porque estão desmontando tudo. Tudo que foi criado. Não tem mais um conselho, não tem mais nada que nós criamos funcionando. É uma destruição, é como se fosse um furacão. Sabe isso que você vê na televisão, que destrói uma parte da Califórnia, de Miami, de Cuba, da Jamaica? Está passando um furacão, destruindo tudo o que foi construído, em nome de combater o comunismo. Eles nem sabem que o Muro de Berlim caiu em 1989. Eles nem sabem. Eles estão falando de coisas sem saber do que estão falando.
Veja, o Brasil é o único país que tem como ministro da Ciência e Tecnologia um astronauta. Portanto, ele subiu no foguete, saiu da atmosfera e sabe que o planeta é redondo. E o presidente dele acredita que a Terra é plana. Ele [ministro Marcos Pontes] tem que contar para o presidente: "Olha, eu subi lá. Eu tirei fotografia, está aqui. O mundo é redondo. Bolsonaro, a terra é redonda. Fala para o seu guru que não tem terra plana". Mas, não, a gente vive isso.
Ontem eu vi o ministro do Meio Ambiente [Ricardo Salles] dizer [que] o óleo é da Venezuela. Quem quer saber de onde é o óleo, meu Deus do céu? Nós queremos saber que o óleo está poluindo a praia brasileira. Se for dos Estados Unidos é bom? Se for de Israel é bom? Não. O problema do óleo é que é da Venezuela. [Isso] é de uma cretinice muito grande. E nós estamos vendo isso, sabe?
Nós precisamos recuperar o espírito rebelde do povo brasileiro. É isso que nós precisamos.
O senhor falou sobre como o tempo passa rápido para quem está no poder. O que a gente, a partir da lógica da democracia brasileira e dos nossos partidos, é que eles se movem quase que exclusivamente conforme a agenda de eleições. Muitas vezes, estão descolados com as lutas cotidianas do povo brasileiro. Soma-se a esse cenário a narrativa de negação da política, de criminalização da política pela mídia, principalmente. O senhor acha que o PT está dando respostas internas e externas a essas questões? Há uma tentativa de se reinventar, reinventar o partido diante desse cenário novo que se coloca?
O problema da questão eleitoral é porque você tem um calendário. E o calendário acontece independentemente de você querer. Tem eleição a cada dois anos nesse país. Você tem uma eleição para prefeitos agora em quase seis mil municípios, e os partidos têm que se preocupar com isso. Você começa a se preocupar com eleição um ano antes, não no dia da eleição. Então, isso não impede que o movimento social não faça suas lutas específicas, suas lutas políticas todo santo dia. A luta por habitação, a luta por salário, a luta por terra, a luta por educação é cotidiana. E o partido político, quando chega a época da eleição, se prepara.
Eu tenho defendido algumas coisas que… eu lamento que, às vezes, eu falo daqui de dentro e não estou lá fora para ouvir os “nãos” ou os “sins” de concordância.
Mas, veja, tem pessoas que falam o seguinte: "O PT não está fazendo o que as pessoas achavam que deveria fazer". Vou dizer uma coisa para vocês, com toda a sinceridade e com toda a humildade. O PT é o mais importante partido político de esquerda existente no mundo hoje. Não tem nenhum partido que tenha a base do PT. Não julgue o PT por uma reunião do diretório do PT. Se você quer conhecer o PT, vá para os cafundós do Judas desse país, no sertão, na Amazônia, para saber o que é o verdadeiro PT.
Se o PT achar que o mundo se resolve apenas pela concepção parlamentar, não se resolve. Ou pela concepção de quem está administrando uma cidade ou um estado, não se resolve. O PT não pode abdicar de ouvir a sua base.
O que o senhor acha que o impediu de realizar a reforma agrária como o seu governo planejava? Que tipo de forças impedem que o Brasil faça sua reforma agrária, como tantos outros países que já resolveram essa questão, inclusive no século 19? É um lobby do agronegócio, é a correlação de forças no Congresso? O que impede que se faça isso?
Tem correlações de forças no Congresso que impedem você de fazer muitas coisas. No Brasil, você tem que pagar terra que você desapropria e, às vezes, é muito caro. Eu tive problemas sérios com desapropriações em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, [que ocorreram] quase no final do meu governo.
Era muito caro desapropriar para atender poucas pessoas. Isso eu discuti muito com os companheiros, porque as pessoas querem cada vez mais ficar assentados em lugares em que as terras vão ficando cada vez mais caras.
Agora, a verdade é que nós fizemos muita coisa, muita coisa. Certamente, deixamos de fazer muitas coisas, mas foram assentadas por volta de 570 mil famílias. Você pode ter discordância entre os números do governo e dos sem-terra, da Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura], da CUT, mas esses são os dados oficiais com os quais eu trabalhava.
E não apenas a questão da terra, [mas] a questão da possibilidade de trabalhar a terra, as condições das pessoas trabalharem a terra, o acesso à tecnologia, o acesso aos financiamentos, às compras. Porque uma coisa é você produzir e não vender, outra é você produzir e ter mercado para vender. E nós criamos muitas possibilidades.
Eu tenho consciência que nós não fizemos tudo que os companheiros queriam, mas nós já fizemos mais do que qualquer outro governo fez na história desse país. E mantenho a relação de lealdade e companheirismo com todo mundo, porque eu acho que é o [MST] é o movimento mais sério que temos no Brasil, e eu fico orgulhoso com a sua capacidade produtiva.
Ou seja, hoje, a gente fica sabendo da qualidade dos produtos, que os sem-terra são os maiores produtores de determinados produtos orgânicos no Brasil – e que o governo deveria se orgulhar disso, deveria comprar, criar condições, o mundo deveria comprar. Então, eu fico orgulhoso disso e acho que o aprendizado é o de que nós poderemos fazer mais e cada vez mais. Tanto para os sem-terra quanto para os sem-teto, os quilombolas, [a população] LGBT.
Eu vou sair daqui muito mais aberto do que eu já fui, com muito maior vontade de conversar, entendendo muita coisa que eu não entendia, com muito mais serenidade. É assim que eu quero sair daqui, para ver se eu contribuo com as pessoas.
O senhor vai me perdoar se eu estiver insistindo, presidente…
Eu acho que vocês estão estranhando, mas eu tenho razão de sobra de estar com muito ódio. Todo o meu trabalho aqui dentro é tentar fazer análise comigo mesmo, sozinho, para não deixar o ódio me consumir. Vou sair daqui mais preparado, espero conseguir conversar com vocês quando sair daqui. Vocês irão perceber que eu estou mais maduro, mais consciente. E não pense que estou velhinho, não. Eu estou com muito mais vontade de brigar do que quando eu tinha 50 anos. Eu estou muito mais maduro para brigar.
Então, quem achar que a idade vai me consumir, pode tirar o cavalo da chuva. Nem a idade, nem o ódio: eu sou um cara tranquilo, e eu acho que o amor sempre vence. Você tem que colocar o amor em primeiro lugar em tudo o que faz.
A gente sabe que criar expectativas pode ser uma grande armadilha. Mas o tema mais quente hoje, com certeza, lá fora, é o STF [decisão sobre prisão em segunda instância]. Como o senhor se sente? Acha que essa é a sua última entrevista [aqui dentro]?
Deixa eu te falar uma coisa: eu até proíbo meus advogados de conversarem comigo sobre isso. Eu não gosto de trabalhar com expectativas, sobretudo quando estou trancado. Porque, se você fica gerando expectativa, você fica frustrado, não sobrevive. Eu não deixo me consumir por expectativa.
Eu sei porque estou aqui, eu tenho noção. Os canalhas que me colocaram aqui dentro sabem que eu sou mais inocente do que eles. Eu tenho noção de que a família Marinho [dona do grupo Globo] sabe que todos eles juntos não são tão honestos quanto eu.
Se isso é uma provação pela qual eu tenho que passar, eu passarei com muita tranquilidade. Então, eu não me deixo consumir por expectativas. Não deixo, porque eu sei o que vem pela frente e não vou ter sossego. Eu vou ter que viajar por esse país, vou ter que me esgoelar, vou ter que visitar sem-terra, vou ter que visitar quilombolas, desempregados, catadores de caranguejo, vou ter que visitar LGBT, vou ter que visitar porta de fábrica, porta de comércio. Eu vou ter que fazer muita reunião com os empresários – porque eu acho que os empresários estão acovardados.
As pessoas não saberem a importância da Petrobrás para o desenvolvimento desse país, as pessoas não entenderem que os bancos públicos são importantes para o desenvolvimento desse país é realmente covardia pura. Então, saibam que eu vou brigar muito. Você não sabe quanta vontade eu tenho de brigar.
O senhor está falando da sua vontade de brigar, mas a gente sabe que esse discurso de ódio, por toda a situação de crise econômica e social no nosso país, tem aumentado muito. Todo mundo conhece alguém que está com depressão, que está desanimado. A sociedade está adoecendo, em termos de saúde mental. Ao mesmo tempo, a gente vê que o senhor está preso, sozinho, lidando com a sua solidão. A gente sabe que o senhor teve perdas familiares nesse período, mas se mantém saudável, [anda] 10 km por dia, está bem de saúde. Qual a fórmula?
Olha, eu estou bem de saúde, faz um ano e meio que eu não faço meus exames de naquelas máquinas que você é fotografado por dentro. Eu não quero saber porque eu tenho a expectativa de sair e fazer meus exames. Mas eu tenho feito exames de sangue e eu estou perfeitamente bem, em todos os quesitos. Até a minha glicemia, que às vezes quando eu estava lá fora era 120, 110, 115, aqui estou com 97, 98, 95, está legal. O colesterol está bom, as vitaminas estão boas. O que eu sinto? Veja, eu sou um cidadão que nunca foi curtido pelo ódio. Se alguém quiser brigar comigo, pode brigar sozinho, eu não quero brigar. Eu brigo por coisa séria, e meu ódio é aquele ódio de segundos. Eu posso ficar com ódio por uma pessoa, mas eu esqueço isso.
Eu acho que a sociedade brasileira está sendo curtida por um mercado de mentiras como jamais ela viveu na vida, causado, obviamente, pela facilidade que se tem [de acessar informações], do avanço tecnológico, da internet, das redes sociais. Antigamente, o cara, para te xingar, tinha que te xingar pessoalmente – com medo de tomar um murro, te xingava para outro. Agora, um canalha entra no quarto dele e fala mal de você, da tua mãe, do teu pai, fala da mãe dele, fala do pai dele. Fala qualquer bobagem sem nenhum critério. É o que a gente está vendo. Como pode um presidente da República querer governar pelo Twitter? Como que pode eu levantar de manhã e tweetar, sem nenhuma responsabilidade de prestar contas daquilo que eu falo?
O presidente é tem alguma coisa pra falar? Manda chamar a imprensa e comunica oficialmente ao país: “Eu estou fazendo tal coisa”. Então, os avanços tecnológicos estão fazendo com que o ser humano perca o controle. Ele está sendo controlado. Pelo que eu vejo, é uma certa doença.
Ao mesmo tempo, a gente tem exemplos de amor na sociedade. Tem as fortalezas quais se agarrar. A gente queria aproveitar e falar sobre o papel das pessoas que estão aí fora há tanto tempo fazendo uma demonstração não só de insurgência, mas também de admiração a você. O que isso impacta?
Eu ouço esses companheiros e companheiras todos esses dias que estou aqui. Todo santo dia. O “bom dia, Lula”. O “boa tarde, Lula”,o “boa noite, Lula”, as músicas… de vez em quando, vem um corneteiro. Eu, sinceramente, não tenho palavras. Acho que não existem palavras para agradecer esse gesto. Não sei se já houve na história da humanidade algum preso que teve essa distinção carinhosa das pessoas. Eu, se pudesse, pegava todos eles e fazia um chaveirinho de pendurar e andar com todos eles pendurados no meu corpo, porque eu não sei como vou me desfazer deles. E eu nem conheço eles! Então, quando eu sair daqui, o que eu quero fazer é o seguinte: é dar um longo abraço e um longo beijo em cada um deles. Pegar o endereço da residência, o telefone celular, porque eles passaram a ser uma parte da minha vida.
Não é normal os seres humanos terem a grandeza que essa gente teve. Eu já até falei para a Gleisi [Hoffmann] falar com eles para voltarem para a casa deles. Eu acho que é muito sacrifício para eles. Mas eles não querem nem ouvir falar nisso. Eu, sinceramente, não sei o que vou fazer com eles, porque é só gratidão que eu tenho por eles.
É assim meu mundo, querida.
Neste domingo (27), essas pessoas que estão multiplicadas em todo o país estão preparando uma grande festa de aniversário em vários pontos do território nacional. O senhor já está sabendo que vai ter bolo?
Eu estou sabendo. Vou até falar para o diretor aqui, o doutor Luciano, que ele poderia vir aqui na hora do aniversário, eu sair daqui com ele e ir lá, soprar as velinhas. São 74 velinhas, e eu não vou ter fôlego para assoprar tudo. Aí eu vou lá, vejo o aniversário, como um pedaço de bolo e volto para cá, não tem nenhum problema.
Não sei se vai ser possível. Mas, qual é o problema? Aqui não trabalham amanhã (24), sexta-feira e segunda. Na sexta-feira, vai ter uma dedetização e, na segunda, é feriado, ponto facultativo…. acho que deram o feriado para algumas pessoas aqui. Então, eu não tenho nem como receber o bolo. Vão ter que guardar o bolo para eu comer um pedacinho na terça-feira.
E vai ouvir o “Parabéns”.
Vou ouvir bem.
Eu estou triste por estar aqui, mas feliz por ter tantos amigos do lado de fora, tanta gente solidária. E a única coisa que eu gostaria era que as pessoas não deixassem destruir o país. Não há presidente que seja eleito para destruir o país.
A gente tem uma última pergunta, na certeza de que suas palavras também inspiram todas as pessoas que estão lá fora e também organizando o seu aniversário no domingo. O que inspira o senhor? Um livro, um filme, uma música…
Quando eu vim para cá, algumas pessoas me aconselharam a escrever um diário. Eu sinceramente não achei vantajoso escrever, eu sozinho, vivendo sozinho todo dia, todo dia, ia escrever o quê? “Hoje, eu fui no banheiro, acordei cedo”.
Eu li o diário do [Nelson] Mandela na cadeia. Eu li a biografia de muita gente, do Getúlio [Vargas], do [Carlos] Marighella, do Padre Cícero de Juazeiro, do [Mahatma] Gandhi, do [Franklin Delano] Roosevelt. Acabei de ler a "Biografia a duas vozes", do Fidel Castro.
Uma coisa que me interessa muito é ler sobre a escravidão. Estou aprendendo porque o Brasil é do jeito que é, porque ainda existe preconceito. Eu sempre gostei muito de música e estou ouvindo bastante, recebo um pen drive com músicas.
Eu gosto muito de samba, eu ouço Chico [Buarque], ouço Caetano [Veloso], o [Gilberto] Gil, ouço muitas músicas daquelas, como chama, cânticos gregorianos. Às vezes, eu durmo com cantos gregorianos. Eu recebo muita coisa.
Como não tem o que fazer, ou sento para ler, ou eu sento e fico vendo as pessoas falarem, fico discutindo sozinho com as pessoas, discordando das pessoas. Às vezes, eu fico “puto” como as pessoas falam bobagens a meu respeito. E eu não estou lá para dizer: "Não é assim, rapaz".
Assim eu vou vivendo. Eu vou dormir por volta de meia-noite, uma hora da manhã. Eu acordo todo dia às seis e meia da manhã, faço meu café, faço um café de qualidade. Acho que não tem ninguém que faça um café melhor do que eu.
Quero que vocês saibam que essa história de eu falar que vou casar é verdade. Na verdade, eu encontrei uma meia cara que está me ajudando a vencer essa barreira aqui. Então, eu não vou deixar a solidão tomar conta de mim, não vou deixar o ódio tomar conta de mim, não vou desanimar, não vou ficar deprimido. Eu não conheço a palavra depressão. Se eu já tive, eu não sei.
Como eu fui corinthiano e fiquei 23 anos sem ganhar um título, perdendo para o Santos quinze anos consecutivos, vendo Pelé humilhando o Corinthians – eu ia ao estádio, chegava lá e dava 3 a 0, 4 a 0 – então eu acho que não vou ter depressão.
Eu tenho certeza, posso dizer pra vocês comunicarem o pessoal lá fora que eu vou sair mais maduro, mais preciso naquilo que eu quero fazer, vou sair mais lutador do que eu fui.
Estou bem fisicamente. Obviamente que eu sei que a natureza é implacável, mas como eu me decidi que vou viver até os 120 anos, que a "Caetana" não venha bater na minha porta, que não tem espaço para ela entrar [referência ao livro “A Moça Caetana - A Morte Sertaneja”, de Ariano Suassuna”]. Eu tenho muita coisa pra fazer ainda.
Então, eu estou assim, nesse momento da minha vida. Obviamente, eu fico sonhando em sair daqui, decidir onde eu vou morar. Quando eu deixei a Presidência, tinha vontade de morar no Nordeste, vontade de voltar para o meu Pernambuco, vontade de morar não perto da praia, mas num lugar em que eu pudesse ir à praia. Pensava em ir para Bahia, Rio Grande do Norte, mas a Marisa não quis ir porque ela nasceu em São Bernardo [do Campo], e o mundo dela era São Bernardo. Eu não tenho mais o que fazer em São Bernardo.
Eu, quando sair daqui, eu quero… Não sei pra onde ir, mas eu quero me mudar pra outro lugar. Eu quero viver. Eu espero que o PT me utilize, espero que a CUT me utilize, espero que os sem-terra me utilizem, espero que os LGBT me utilizem, espero que os quilombolas me utilizem, espero que as mulheres me utilizem, espero que todo mundo me utilize para fazer com que eu tenha utilidade nessa minha passagem pelo planeta Terra.
Então, é isso. Vou sair daqui tranquilo. Não vou dizer que cumpri minha missão, mas vou sair daqui tranquilo, como cidadão consciente do seu papel na história.
É isso que vocês vão levar daqui. Quero que vocês digam pra todo mundo que eu estou bem, estou muito disposto a brigar. Eu tenho certeza de que o Moro não dorme com a consciência tranquila como eu durmo. Eu tenho consciência de que o Dallagnol está precisando tomar remédio para dormir, talvez tarja preta, porque ele sabe que é mentiroso, ele sabe que foi canalha no meu processo. Então, eu estou aqui, para a raiva deles. Porque acho que eles ficam com mais raiva quando eles percebem que eu estou bem. Então, muito obrigado. Quero que vocês transmitam um abraço a todo mundo. Quando eu sair daqui, espero que a gente faça uma boa entrevista – e um churrasco.
Um abraço para todo mundo.
Edição: Rodrigo Chagas