Coluna

Pianistas de café: as trabalhadoras invisíveis da bebida que move o mundo

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Catadeiras de café nos armazéns da Cia. Docas, em Santos, no começo do século 20
Catadeiras de café nos armazéns da Cia. Docas, em Santos, no começo do século 20 - Museu do Café
Exposição em museu santista resgata o trabalho das catadeiras de café

As mulheres, fossem escravizadas ou livres pobres, sempre participaram na produção de café no Brasil. Do plantio nas fazendas à colheita dos grãos, as mãos femininas estiveram presentes em fases importantes do processamento de um dos maiores produtos de exportação do país desde meados do século 19. Até alguns anos atrás, no entanto, esse trabalho feminino era “invisível” e poucos pesquisadores se aventuravam a tratar dele.

Um dos trabalhos mais cansativos e intensos na lida com o café, ainda nos dias de hoje, é o de selecionar manualmente os grãos, separando e classificando-os para o consumo. No passado, era ainda mais exaustivo. As mulheres sempre foram as encarregadas desse tipo de trabalho, em que era preciso acuidade visual, destreza e paciência para repetir insistentemente os movimentos.

As catadeiras de café, no início do século 20, também eram chamadas de pianistas, tamanha agilidade com os dedos necessária para o trabalho. O processo começava quando as sacas, que vinham muito sujas das fazendas, eram peneiradas para retirar previamente folhas, grãos tortos e outras impurezas. Em seguida, os 60 quilos de café de cada saca eram jogados sobre uma mesinha, onde a mulher fazia a seleção dos grãos, na base do um a um. O trabalho podia demorar um dia inteiro numa única saca suja. Esse processo permite cobrar mais pelos melhores grãos.

Anúncio procurando catadeiras de café publicado no Correio Paulistano de 1905

Como a maioria dos trabalhos femininos, este também era mal pago e as trabalhadoras eram superexploradas. O pagamento era feito por saca, que era depois inspecionada pelo encarregado do armazém. Se ele achasse que o trabalho não tinha sido bem feito, a mulher tinha que refazer, nada recebendo. Os riscos para a saúde eram grandes e os acidente de trabalho frequentes: mais de uma vez, os jornais da época narraram episódios de pilhas de sacas de café que caíram sobre uma trabalhadora, soterrando-a e causando lesões graves ou morte.

Até meados do século 20, era comum ver crianças e adolescentes trabalhando ao lado de suas mães nos armazéns de separação. Uma das vantagens deste tipo de trabalho, na visão das trabalhadoras, que não tinham acesso a creches ou escolas públicas, era a possibilidade de se levar filhos pequenos para o armazém. Esses cresciam vendo as mães debruçadas sobre as sacas de grãos e aprendiam rapidamente o ofício. Com 8 ou 9 anos, as crianças já realizavam pequenos trabalhos não remunerados e, com 10, começavam a catar café. Não foram poucas mulheres que voltavam a trabalhar logo depois do parto, amamentando os bebês enquanto escolhiam os grãos.

Geralmente o trabalho era feito nos armazéns da Companhia Docas de Santos ou nos casarões com enormes pés direito na região no Valongo, na mesma cidade. Mas também podia ser feito nas fazendas de café, logo que os grãos eram ensacados. Na época, a zona portuária de Santos era um caos, com vielas enlameadas, armazéns mal construídos; não havia água encanada ou esgoto. Trabalhadores e trabalhadoras moravam em cortiços ou cubículos insalubres, construídos às pressas com madeira e zinco, à mercê das infecções que se alastravam pelo porto. Ratos e pulgas espalhavam a peste bubônica, enquanto a febre amarela ceifava vidas.

Imigrantes de vários lugares do mundo, mas principalmente italianos, chegavam pelo porto de Santos seduzidos pelas promessas enganosas da terra que produzia o “Ouro Negro”, o café. Aportavam e arrumavam trabalhos precários ali mesmo, como estivadores carregando as sacas de juta, e as mulheres recebiam trocados para separarem os grãos. Os imigrantes do porto de Santos trouxeram da Europa novas ideias, de igualdade, luta e resistência. Eram anarquistas. Greves, confrontos com a polícia e uma constante tensão fizeram que a cidade ficasse conhecida como a “Barcelona brasileira”.

Mais tarde, a partir dos anos 1940, chegaram para trabalhar no Porto os migrantes vindos do Nordeste – fugiam da seca e das péssimas condições de vida. O trabalho que encontravam era esse, repleto de precariedades. Nessa aproximação de imigrantes europeus e migrantes nordestinos forjaram-se lutas e maneiras novas de enfrentar o cotidiano. O café ainda era o combustível que movia a economia da cidade.

Nos armazéns, as catadoras pianistas davam continuidade a uma antiga tradição: muitas vezes entoavam cantos de trabalho para espantar o tédio, distrair as crianças e esquecer um pouco o duro cotidiano. Hoje, conhecemos essas canções como sendo músicas para crianças. Mas muitas contam o dia a dia do trabalho com o café, da roça ao armazém. Quem não conhece a letra de Nana neném?

“Nana neném/ que a cuca vai pegar/ papai foi pra roça/ e a mamãe foi trabalhar”.

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Essa coluna foi inspirada pela visita que fiz com minha família do Museu do Café, em Santos. Lá, acontece a exposição temporária “Pianistas de armazém: trabalho feminino na catação de café”.

Sobre o museu:

De terça a sábado, das 9h às 17h. Domingo, das 10h às 17h.

Entrada gratuita aos sábados.

Contato pelo telefone (13) 3213-1750 ou por meio do e-mail [email protected].

Edição: João Paulo Soares