Uma carta aberta da Associação Juízes para a Democracia (AJD) foi entregue ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na última quinta-feira (8). No documento de nove páginas, aprovado em assembleia geral extraordinária, 20 magistrados qualificam Lula como preso político. A comitiva de juristas esteve em Curitiba (PR) para exigir a imediata libertação do petista.
Para falar sobre o assunto, o Brasil de Fato conversou com Reginaldo Melhado, juiz titular da 6ª Vara do Trabalho de Londrina (PR) e membro da AJD. Na entrevista, o magistrado defende que a retomada da democracia brasileira depende da anulação dos processos contra Lula na operação Lava Jato.
Em 26 anos como juiz, Melhado nunca testemunhou magistrados atuando como acusadores, fazendo referências à conduta “político-partidária” do ex-juiz Sérgio Moro. O membro da AJD também criticou o conluio entre Moro e o procurador Deltan Dallagnol, revelado pelo portal The Intercept Brasil. “Isso é coisa de filme de terror”, definiu.
Para Melhado, pelo que se lê nos diálogos da chamada "Vaza Jato", “o ex-presidente Lula já estava condenado” antes do julgamento. Segundo o magistrado, o processo foi apenas um meio de justificar e dar roupagem de juridicidade à condenação.
“Um magistrado pode ter relações sociais com advogados e membros do Ministério Público, mas grupos em que se decidem questões relativas ao processo, com uma das partes, é algo simplesmente impensável”, argumenta o juiz.
Leia a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Por que a AJD escreveu essa carta em que denuncia a prisão de Lula como política?
Reginaldo Melhado: A AJD analisa o contexto político e, particularmente, o processo do ex-presidente Lula como fenômenos que representam uma violação ao estado de direito. A AJD tem como finalidade da sua essência, da sua razão de nascer, a defesa de um Poder Judiciário independente, democrático e apartidário. Nós entendemos que o documento apresentado hoje sustenta que o processo do ex-presidente Lula representou uma violação a esses princípios: o uso do Poder Judiciário com finalidade político-partidária.
É um processo marcado por enormes vícios, que dizem respeito à competência - o fato desses processos todos serem triados para o mesmo juiz, o ex-juiz Sérgio Moro - às próprias alegações, as imputações criminais que lhe são feitas, à produção da prova, à maneira como se deu a sentença, à velocidade de tramitação do processo e à dosimetria da pena. Enfim, toda uma articulação que se faz e, finalmente, o encarceramento, que representou uma interferência direta no processo eleitoral, a mudança do contexto.
Eu não sei se o ex-presidente, candidato, seria presidente da República hoje - e não nos interessa saber -, mas o importante é que todos os candidatos pudessem livremente disputar, sem que o Judiciário fosse utilizado como uma ferramenta político-partidária, que foi o que aconteceu.
Quando se fala dos processos contra o ex-presidente, a alegação é a de que ele foi condenado por um juiz e dois tribunais superiores confirmaram a sentença. O que você tem a dizer sobre isso?
A sequência toda desse processo do presidente Lula, sendo sempre julgado pelo mesmo magistrado de primeiro grau, o ex-juiz Sérgio Moro, agora ministro do governo Bolsonaro, e no Tribunal Regional Federal sempre pela mesma turma, faz com que a previsibilidade do resultado fosse evidente. Tudo se conduzia nesse sentido.
O processo não acabou. O processo ainda se encontra aberto, é um processo que não transitou em julgado. A prisão do presidente Lula é inconstitucional e ilegal, contraria a Constituição da República e o Código de Processo Penal, porque a decisão não transitou em julgado. E nós temos a convicção de que o Supremo Tribunal Federal saberá fazer justiça e anular essas decisões todas.
Nós entendemos que não é o caso de uma revisão do julgamento, mas de anulação, do zero, para que o ex-presidente possa ser acusado por um órgão do Ministério Público imparcial. Porque o membro do Ministério Público, o procurador da República, também tem a obrigação de imparcialidade, a proibição de desenvolver atividade político-partidária. E seja julgado por juízes imparciais.
O senhor é juiz há quantos anos?
26 anos.
Em algum momento, o senhor teve grupos de WhatsApp, Telegram ou qualquer vínculo com advogados, acusação ou qualquer operador do Direito?
Evidentemente que isso não existe, não pode haver. Claro, um magistrado pode ter relações sociais com advogados e membros do Ministério Público, mas grupos em que se decidem questões relativas ao processo, com uma das partes, é algo simplesmente impensável.
Discutir provas e/ou ações?
É inaceitável. Quando um advogado pede para conversar comigo, eu aceito prontamente, desde que o advogado da outra parte esteja presente também, tem que ouvir o que ele quer falar. Isso já me aconteceu muitas vezes. Mas juiz não faz conchavo com advogado, procurador ou promotor. Ele não pode dividir a responsabilidade da acusação, não pode assumir esse papel. Ele tem que ter equidistância. O juiz não é neutro, mas ele tem o dever de ser imparcial.
Todas essas reportagens reveladas agora pelo The Intercept em associação com outras instituições de imprensa, como UOL e Folha de S. Paulo, mostram que o ex-presidente Lula já estava condenado. O processo foi só um meio de justificar e dar roupagens de juridicidade a essa condenação.
O senhor já viu um juiz atuar como acusador?
Honestamente, não. Pode ser que haja precedentes na história do Direito Penal, do Processo Penal e do Judiciário como um todo. Nós sabemos que isso pode ter ocorrido, mas dessa forma, com essa dimensão e gravidade, é impensável. As pessoas suspeitavam, mas eu acho que nem mesmo o mais cético, o mais crítico, poderia imaginar que a perversidade chegasse a esse nível.
Nível, por exemplo, de um procurador da República tramar contra um ministro do Supremo Tribunal Federal, porque ele imagina que o ministro do Supremo poderá decidir contra os interesses que ele quer ver realizados no processo. Isso é uma coisa cinematográfica, isso é coisa de filme de terror.
O Ministério Público vasculha as contas de todos os magistrados, é ótimo, não tem problema. O problema é eu fazer isso porque imagino que aquele ministro possa se colocar em uma posição que contraria aquilo que eu desejo do tribunal. Isso é perverso. Sem contar que, no caso específico, um procurador da República não pode investigar um ministro do Supremo Tribunal Federal.
A competência é da Procuradoria-Geral da República. Se isso é bom ou ruim, eu não sei, mas a gente tem que respeitar o sistema legal, a Constituição, a ordem jurídica. Isso é o que está colocado.
Por que um juiz não pode se unir com a acusação? Em que lei isso é impedido?
A Constituição, a lei orgânica da magistratura e toda a principiologia, em todo lugar, no mundo todo. No mundo árabe, no Direito anglo-saxão, no Direito romano-germânico, no Direito asiático, em qualquer lugar do planeta, talvez até em outros planetas, o juiz tem que ser imparcial.
O juiz não pode ter interesse no processo, o juiz não pode ter compromisso com uma das partes no processo. É básico, é fundamental. Como é que eu vou julgar sua vida, seu patrimônio e sua liberdade se eu sou seu inimigo? Como é que você vai se sentir sendo julgado por um magistrado que quer sua destruição, que é seu inimigo político-partidário? Isso é impensável.
Em qualquer lugar do mundo, esses processos seriam anulados. Por que isso não acontece no Brasil?
Isso deve acontecer no Brasil. Eu, particularmente, tenho confiança - não sei se, talvez, haja algum excesso de otimismo ou ingenuidade - mas eu tenho confiança no sentido de que o Supremo vai anular esse processo.
Antes dos escândalos mostrados pelo Intercept, isso já era evidente. O documento que nós estamos aprovando e entregando para o presidente Lula foi elaborado e discutido antes mesmo dessas revelações todas. Isso já se evidenciava no processo, por outras ponderações, que era possível fazer. Nós temos então a confiança de que o Supremo Tribunal Federal saberá dar um cobro a essa situação escandalosa, anulando todo o processo.
Edição: José Eduardo Bernardes