Por trás do doce servido nas cortes para a realeza, estava uma moenda de gentes
Na história da alimentação, uma das ideias mais interessantes é perceber como nada do que comemos ou plantamos é totalmente natural – tudo deriva, em boa medida, das formas sociais e do tempo em que vivemos. Há cerca de 800 anos atrás, o açúcar como mercadoria não existia, nem as sobremesas, nem a confeitaria. A cozinha medieval era completamente diferente do que estamos acostumados hoje no Ocidente. Como isso mudou?
Até o final da Idade Média, o açúcar circulava em pequenas quantidades, e seu preço era muito alto. O avanço das formas de troca típicas do capitalismo promoveu uma busca por lugares onde as plantações de cana pudessem prosperar. Junto com o comércio da Europa com o Oriente, essa busca foi um dos motores do que os povos europeus chamaram de “As Grandes Descobertas” do século XVI. Da Sicília às costas brasileiras e depois nas Antilhas, a cana viajou o mundo em naus e caravelas até encontrar as melhores terras, mudando radical e simultaneamente tanto as maneiras de se plantar a cana como as de se comer o açúcar.
O gosto pelo açúcar, e sua consequente expansão pelo mundo, transformou a maneira como se comia, como se preparavam as refeições e como se preservaram alguns alimentos, como as frutas em forma de geleias e conservas. O açúcar, riqueza máxima da época Moderna, ajudou a dar uma nova forma ao mundo.
Os engenhos de açúcar foram as maiores e mais complexas fábricas criadas pelo homem até o século XVIII. Como aprendemos na escola, uma das primeiras iniciativas dos portugueses ao estabelecerem uma rota regular de navios para colonizar o Brasil foi implementar essa novidade tecnológica que permitia extrair em grande quantidade o açúcar da cana, recém-adapta ao clima das novas terras, no Nordeste e na região de Santos e São Vicente, hoje litoral do Estado de São Paulo.
Esse processo foi registrado em balanços comerciais desde o século XVI. A exportação de açúcar produzido no território brasileiro para a Europa passou de 2.470 toneladas em 1560 para 16.300 em 1600 e 20.400 em 1630. Lisboa, em Portugal, e a Antuérpia, na Bélgica, se tornaram grandes centros de refino e distribuição do açúcar na Europa.
A abundância da antiga especiaria permitiu e foi estimulada por uma transformação na maneira de consumir açúcar. Se antes o açúcar “temperava” as comidas de maneira generalizada na Idade Média – carnes, molhos, tortas, bolos, assados e pães –, ele passa muito rapidamente a se estabelecer num determinado lugar e tempo nas refeições da cozinha europeia: surge a ideia de sobremesa, que hoje nos parece tão natural.
Com a sobremesa, o doce toma o lugar de prato final das refeições. Nasce uma especialidade gastronômica, que se espalhou pelas cortes europeias, a confeitaria. Surge também, como decorrência, uma nova profissão, a de confeiteiro. Essa nova forma de arte, que envolve também uma decoração específica, passa a ser registrada em livros especializados, os livros de confeitaria, que ensinam técnicas complexas e precisas, completamente separadas da cozinha de salgados e assados.
Tanta mudança, com o passar do tempo, criou inclusive um tabu: “Não coma doce antes de jantar” é uma ordem que toda criança já ouviu em casa, uma proibição que se enraíza e que acabamos por considerar absolutamente sensata quando somos adultos.
Enquanto as cortes europeias passam a servir sobremesas esculturais, castelos de açúcar coloridos, bolos gigantescos e sorvetes para até 500 pessoas, na América a produção de açúcar era impulsionada pelo trabalho escravo. Para funcionar, o engenho precisava de grandes extensões de terras, de enormes investimentos em equipamentos, animais de carga, construções que abriguem a maquinaria e os objetos específicos para o trabalho – e, uma regra continental, trabalho de homens e mulheres escravizados e escravizadas, inicialmente indígenas, depois, em escala muito maior, traficados da África.
Por trás do doce servido como sobremesa nas cortes para deleite da realeza, estava este empreendimento comercial gigantesco, moedor de cana e de gentes, assassino de milhares de vidas, transformadas em mercadorias.
André João Antonil, padre jesuíta que esteve na Bahia no começo do século XVIII e escreveu uma das mais importantes obras sobre a economia no Brasil colonial, Cultura e Opulência no Brasil, afirmou que “os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar ou aumentar fazenda, nem ter engenho corrente.”
Caldeiras quentes, sempre fervendo, correntes, chicotes, rodas de moendas, jornadas de até 20 horas sem descanso na época na safra, que ia de agosto a maio. A dinâmica do engenho levou outro padre, Antonio Vieira, a descrever desta forma um deles, no auge do seu funcionamento, num de seus sermões: “(...) Os ruídos das rodas, das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo, sem momento de tréguas, nem de descanso [...] não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etnas e Vesúvios [vulcões localizados na Itália], que é uma semelhança do Inferno.”
Uma parte da história do açúcar pode ser visitada no Engenho São Jorge dos Erasmus, em Santos. Pertencente à Universidade de São Paulo (USP), o engenho oferece visitas monitoradas que recuperam a história de Martim Afonso de Souza, um dos primeiros colonizadores portugueses a construir um engenho nas costas do país. O engenho é a mais antiga evidência física da presença portuguesa no Brasil.
Nota da colunista: Esse texto é uma homenagem a minha orientadora de mestrado e doutorado, professora titular da USP e uma das maiores especialistas na história do açúcar do país, Vera Lucia Amaral Ferlini, autora de Açúcar e civilização. Foram quase vinte anos de trocas de documentos, análises e receitas, numa amizade muito especial. Também gostaria de agradecer ao Bernardo Kucinski, que sugeriu o tema deste texto num almoço no Bixiga.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira