A igreja católica quer ampliar sua atuação na Amazônia com um processo que ela chama de “conversão ecológica”, combinando intensa atuação nas comunidades tradicionais, combate ao “domínio colonialista” e denúncia dos processos de destruição ambiental, social e cultural da região.
As diretrizes gerais para a tarefa estão em documento de 37 páginas divulgado nesta segunda-feira (17) pelo Vaticano, com o objeto de orientar os debates para a assembleia especial do Sínodo dos Bispos da Amazônia, convocada pelo papa Francisco em 2017 e que acontece no próximo mês de outubro, entre os dias 9 e 27, em Roma.
A pauta do encontro e a abordagem de forte cunho social batem de frente com os retrocessos promovidos pelo atual governo brasileiro, que já emitiu declarações contra o sínodo. Entre os alvos da igreja estão políticas e grupos defendidos pelo presidente Jair Bolsonaro e por pessoas do seu círculo político e pessoal.
“A ameaça à vida [das populações amazônicas] vem dos interesses econômicos e políticos dos setores dominantes da sociedade atual, especialmente as empresas extrativas, muitas vezes em conluio ou com a permissividade dos governos locais e nacionais”, diz o documento, que também cita os interesses econômicos “ávidos por petróleo, gás, madeira, ouro e monoculturas agroindustriais”.
Entre os males a serem combatidos pela igreja estão “a mentalidade economicista mercantilista, o consumismo, o utilitarismo, o individualismo, a tecnocracia e a cultura de descarte”.
Beleza ferida
Num dos trechos mais contundentes, o Vaticano classifica a Amazônia como “uma beleza ferida e deformada, um lugar de dor e violência”.
“(…). Há violência, caos e corrupção. O território tornou-se um espaço de desentendimentos e extermínio de povos, culturas e gerações. Há aqueles que são forçados a deixar suas terras; eles caem frequentemente nas redes das máfias, tráfico de drogas e tráfico de seres humanos (principalmente mulheres), trabalho e prostituição infantil. É uma realidade trágica e complexa, situada fora da lei e do Direito”, diz o documento.
Citando os Povos Indígenas em Isolamento Voluntário (são 130 grupos em toda região), o texto destaca a situação das mulheres nesses agrupamentos.
“O risco de violência contra as mulheres dessas aldeias foi aumentado pela presença de colonos, madeireiros, soldados, empregados das empresas extrativistas, todos eles em sua maioria homens. Em algumas regiões da Amazônia, 90% dos indígenas mortos nas populações isoladas são mulheres. Tal violência e discriminação têm um impacto severo na capacidade desses povos indígenas de sobreviver, física, espiritual e culturalmente”.
O documento também lembra que a Amazônia é uma região de enorme mobilidade interna e internacional, devido a questões sociopolíticas, climáticas, étnicas e econômicas. Estas últimas, segundo o texto, “são induzidas principalmente por projetos políticos, megaprojetos e empresas extrativistas, que atraem trabalhadores, mas ao mesmo tempo expulsam os habitantes dos territórios afetados”.
Diante desse quadro geral, entre as tarefas que a igreja se coloca estão: “desmascarar as novas formas de colonialismo presentes na Amazônia”; “identificar as novas ideologias que justificam o ecocídio amazônico para analisá-las criticamente”; e “denunciar as estruturas do pecado que atuam no território amazônico”.
Igreja com rosto indígena
Pelo documento divulgado nesta sexta, fica claro também que a igreja fará um grande esforço de aproximação das comunidades, com objetivo de conquistar ou reconquistar espaços perdidos para outras denominações religiosas, como os evangélicos pentecostais.
Ao afirmar que “a evangelização na Amazônia é um teste” para o Vaticano, o texto propõe aos clérigos mudanças na maneira de atuar, para que a igreja tenha um “rosto indígena e amazônico”.
Tal mudança inclui aceitar e compreender as manifestações religiosas tradicionais, seus cultos e mitos, bem como “superar posições rígidas que não levem suficientemente em conta a vida concreta das pessoas e a realidade pastoral, a fim de atender às reais necessidades dos povos e culturas indígenas”.
Sugere-se ainda que as celebrações “sejam festivas com sua própria música e dança, em línguas e com roupas indígenas, em comunhão com a natureza e com a comunidade”.
Por fim, propõe alterar os critérios de seleção e preparação de padres e congêneres, promovendo vocações autóctones e permitindo a ordenação sacerdotal para pessoas casadas, “de preferência indígenas”, dispensando, nesse caso, a obrigação do celibato.
Tais esforços levam em consideração as bem-sucedidas investidas de outras denominações religiosas floresta a dentro, segundo diagnóstico do documento.
“Sua presença lhes permitiu [aos indígenas] ensinar e disseminar a Bíblia traduzida para as línguas originais. Em grande parte, esses movimentos foram ampliados pela falta da presença de ministros católicos. Seus pastores formaram pequenas comunidades com um rosto humano, onde as pessoas se sentem pessoalmente valorizadas. (…) Eles estão nos mostrando uma outra maneira de ser uma igreja onde as pessoas se sentem protagonistas e onde os fiéis podem se expressar livremente sem censura ou dogmatismos ou disciplinas rituais”, afirma o texto.
Ainda nesse campo, de expansão dos braços da igreja pela floresta, o texto propõe mais espaço para as mulheres nas tomadas de decisão e nos processos internos, para que “tenham sua liderança garantida, assim como espaços cada vez mais amplos e relevantes na área da formação: teologia, catequese, liturgia e escolas de fé e política”.
Edição: João Paulo Soares