A Bienal de Veneza, na Itália, principal evento de arte do mundo, foi inaugurada no dia 11 de maio sem a exposição venezuelana, depois de 64 anos de participação ininterrupta do país.
A Venezuela foi o primeiro país latino-americano a entrar para o seleto grupo de países expositores na bienal, em 1954. Já em 1956, tinha seu próprio pavilhão, construído pelo renomado arquiteto italiano Carlo Scarpa, no Jardim das Artes, onde estão os 30 pavilhões mais antigos da bienal.
Neste ano, opositores ao governo de Nicolás Maduro fizeram campanha para manter o pavilhão venezuelano fechado durante a bienal, que vai até o dia 24 de novembro. Mas, em uma semana, os artistas e o funcionários do Ministério da Cultura da Venezuela deram a volta por cima, mesmo com os recursos bloqueados pelo embargo econômico contra a Venezuela. Eles mesmos organizaram e montaram a exposição de arte venezuelana, que já está sendo considerada uma das mais visitadas da Bienal.
"Estar na Bienal de Veneza não representa um capricho de quem quer montar uma exposição em uma cidade cara da Europa. Esse evento é como se fosse os Jogos Olímpicos da arte mundial", explica o ministro da Cultura para Poder Popular da Venezuela, o escritor e jornalista Ernesto Villegas.
O ministro conta em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato como foi a saga, em tempos de bloqueio, para colocar a arte venezuelana na Bienal de Veneza deste ano: "Uma das vias que busca o invasor para a dominação de um povo é a destruição de suas referencias culturais, para apagar sua memória histórica".
Confira na íntegra:
Brasil de Fato: A Bienal de Veneza é o evento de arte mais importante do mundo. Alguns meios internacionais noticiaram uma polêmica envolvendo a Venezuela. O que aconteceu?
Ernesto Villegas: Houve uma manobra do setor da direita venezuelana internacional, que pretendia mostrar o pavilhão de arte da Venezuela, dentro da Bienal de Veneza, fechado, como uma metáfora do “bloqueio” à Venezuela, como se a gente não fosse participar da bienal.
A Venezuela participa desde 1954. Os principais artistas da arte contemporânea passaram por esse evento. Então, no dia 19 de maio [8 dias após a abertura da Bienal], nós inauguramos a exposição “Metáfora de três janelas. Venezuela: identidade em tempo e espaço”, que reúne obras de quatro artistas venezuelanos: Natalie Rocha, que vive na Espanha, mas faz arte venezuelana; Gabriel López, Ricardo García e Nelson Rangelosky, que vivem na Venezuela.
Essa mostra tem vários eixos, entre eles estão o petróleo, a migração, a ancestralidade, a rebeldia e o anti-imperialismo, sendo esse último um eixo transversal aos demais.
Porque o pavilhão da Venezuela foi aberto depois dos demais países? Teve algum tipo de impedimento?
O bloqueio econômico e a perseguição financeira impediram que a Venezuela inaugurasse sua exposição na abertura da Bienal, no dia 11 de maio. Diante dessa dificuldade, solicitamos à curadoria do evento uma extensão do prazo para abrir o pavilhão venezuelano no dia 19 de maio. Foi aprovada. Mas, um grupo fascista apareceu nesse lapso de tempo, e gravou imagens do pavilhão fechado.
O tiro saiu pela culatra, pois a equipe da curadoria venezuelana, junto com os artistas se concentraram na decoração do pavilhão. Vimos imagens dos próprios artistas varrendo, limpando o pavilhão, colocando suas obras. Foi uma construção coletiva lindíssima.
O pavilhão da Venezuela ficou hermeticamente organizado, a ponto de uma revista de arte de Roma, chamada Segno, classificar a mostra como a melhor já realizada pela Venezuela nos últimos anos e propôs uma menção especial para a Bienal sobre a participação venezuelana.
A campanha contra a exposição terminou sendo positiva porque provocou mais curiosidade no público, já que a versão negativa foi publicada em grandes jornais, como o El País da Espanha.
Mas o que aconteceu exatamente para que houvesse esse atraso?
Nós fomos impossibilitados, devido ao bloqueio, de utilizar o dinheiro disponibilizado para esse evento.
A questão é que a Venezuela dispõe do dinheiro em bancos europeus, porém esses bancos não permitem que o utilizemos. Porque o bloqueio não diferencia o dinheiro destinado a compra de remédios e alimentos ou recursos destinados a participação do país em um evento de arte.
Estar na Bienal de Veneza não representa um capricho de quem quer montar uma exposição em uma cidade cara da Europa. Esse evento é como se fosse os Jogos Olímpicos da arte mundial. Não ia ser a Venezuela que deixaria de participar. Algumas pessoas podem considerar isso algo supérfluo, mas é a mesma coisa que o esporte. É inconcebível que um país, por qualquer motivo, deixe que participar dos Jogos Olímpicos.
A exposição da Venezuela tem tido recorde de visita na Bienal. Como é a exposição?
As pessoas que visitam a exposição venezuelana na Bienal de Veneza ficam surpresas.
De fato tem aspectos impactantes. O pavilhão em si é uma obra de arte, pois foi desenhado pelo arquiteto italiano Carlo Scarpa e é considerado patrimônio cultural da Itália. Uma das áreas da exposição está toda iluminada de vermelho, com imagens de grandes dimensões, do artista Ricardo García, que desenhou retratos com asfalto com fundo vermelho.
A participação de Nelson Rangelosky também é muito interessante, porque se vê um rosto de uma criança aos prantos e quando o espectador vê a mesma imagem através de uns óculos azuis, essa mesma figura se converte no rosto do causante de seu sofrimento: Donald Trump.
E a exposição de Natalie Rocha consiste em uma armação de corações e raízes, que ela chama “De Tripas Coração”, pois reflete o sentimento do ser humano que migra, que está semeando coração e com suas raízes presentes.
A Venezuela então conseguiu montar uma bela exposição artística...
Não é qualquer apresentação. É linda, polêmica, chamativa e ademais já teve mais de 20 mil visitas. Na semana passada tivemos um recorde de 1.800 pessoas em um só dia. Essas são pessoas que vêm de todas as partes do mundo, que gostam de apreciar arte de vanguarda.
Recentemente o Ministério da Cultura fez uma denúncia na Unesco sobre as ameaças ao patrimônio cultural venezuelano frente a uma possível invasão militar dos EUA. Porque o senhor decidiu fazer essa denúncia?
Os símbolos do patrimônio cultural são alvos preferidos de forças militares estrangeiras, porque uma das vias que busca o invasor para a dominação de um povo é a destruição de suas referencias culturais, para apagar sua memória histórica. Isso já aconteceu com outros países, como Síria e Iraque.
Nós venezuelanos nos sentimos ameaçados. Por isso, apesar das dificuldades nós fazemos todos os esforços para manter viva a chama cultural, porque essa é a identidade de um povo.
A rica cultura venezuelana e sua diversidade é chave para entender porque os venezuelanos conseguem sair com a cabeça erguida das piores situações. Temos uma identidade cultural muito forte. Entre essas características está o componente anti-imperialista.
Esse é um país de gente obstinada?
Essa visão de que Venezuela possa vir a ser um país subordinado a uma potência estrangeira não tem nada a ver com nossa identidade. Pode até ser que exista alguns poucos venezuelanos que se ajoelhem diante dos EUA, mas isso não tem nada a ver com nossa raiz cultural.
Somos netos de Chirino, Bolívar, de Zamora. Somos profundamente anti-imperialistas, incluindo um setor da oposição, que não acompanha a atitude servil de seus líderes.
Como é viver em um país bloqueado do ponto de vista da cultura? Quais dificuldades que a Venezuela enfrenta nesse sentido?
A guerra econômica e política contra a Venezuela tem gerado feridas que também atingem a cultura. No entanto, a cultura venezuelana pode até ter feridas, mas está viva. Podemos ter dificuldades, portas que nos fecham. Mas quando fecham uma porta nós entramos pela janela.
A criatividade é o gatilho em tempos de dificuldades. Nossos artistas, pintores, escritores, sentem mais necessidade de expressão nesses tempos de dificuldades.
Os poetas músicos, bailarinas estão todos empenhados em não deixar morrer a cultura. Também temos uma crise mundial, que afeta a espiritualidade, então esses elementos que dão identidade coletiva se destacam ainda mais. Tem havido dificuldade para conseguir os insumos para produzir arte, para participar dos grandes eventos internacionais, mas aqui estamos superando tudo isso.
A Venezuela é um país com uma legião de leitores. O Brasil de Fato já escreveu sobre isso. O que o Ministério da Cultura tem preparado para esse ano?
Esse ano vamos realizar, em novembro, a edição número 15 da Ferira Internacional do Livro (Filven), no centro histórico de Caracas, pela segunda vez. No ano passado, levamos a feira para as ruas do centro histórico e foi um sucesso. Mais de 600 mil pessoas participaram [antes de 2018, a feira era realizada no Teatro Teresa Carreño, menos popular que o centro histórico da capital].
Foi um acerto porque foi possível incorporar o uma série de teatros de rua e instalações culturais, de acordo com a dinâmica da feira. Também tivemos um palco principal para música e discurso.
Os venezuelanos comuns estão habituados a fazer discurso. Já é algo cultural?
Sem dúvida, os discursos são algo cultural. Na Venezuela, as pessoas param em uma praça e fazem um discurso. Então foram 10 dias de cultura e esse ano vamos repetir e vamos incorporar as novas tecnologias, livros digitais, e vamos discutir como isso se incorpora na leitura.
Os venezuelanos têm uma relação com os livros muito diferente dos brasileiros. Como começou esse amor pelos livros?
Isso começou com o presidente Hugo Chávez. No seu programa “Alô presidente”, que era sua relação direta com o povo, as vezes Chávez começava a falar sobre um determinado livro e a ler. Ele gostava de recomendar livros.
Quando ele recomendou para o presidente Barack Obama o livro Veias Abertas da América Latina [do escritor Eduardo Galeano], as vendas desse livro dispararam no site Amazon.
Depois Chávez recomendou um livro de Noam Chomsky [escritor dos Estados Unidos] em uma intervenção nas Nações Unidas que também disparou em vendas.
Na Venezuela até hoje livros continuam sendo muito baratos.
Claro! E além disso aqui se distribuíram milhares de livros grátis. Só do Dom Quixote foram distribuídos um milhão de exemplares. Assim como Os Miseráveis, de Victor Hugo, que também se distribuiu outro milhão gratuitamente.
Agora estamos vivendo um momento difícil para a Revolução Bolivariana, mas todos os anos anteriores distribuímos muitos livros que seguem presentes nos lares venezuelanos. Um livro pode estar em uma biblioteca por anos.
A gente nunca sabe quando um leitor vai tomar um livro nas suas mãos para ler. Esperamos que esse material subversivo que temos semeados em milhões de lares continue comovendo aos venezuelanos. E esse ano vamos publicar um milhão de exemplares do Discurso de Angostura, de Simón Bolívar. Então Bolívar será o escritor mais publicado desse ano.
Edição: Rodrigo Chagas