Venezuela

Entenda o CLAP, programa que combate a fome com a força das comunidades venezuelanas

Programa social busca combater desabastecimento com distribuição de cestas básicas através de organizações comunitárias

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
Maduro em um Centro de Empacotamento de Alimentos para os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CEAC)
Maduro em um Centro de Empacotamento de Alimentos para os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CEAC) - Assessoria da Presidência da República da Venezuela

A Venezuela passou de ser um país altamente consumista para viver anos de racionamento. Em 2013, foi o segundo país latino-americano com maior taxa de obesidade, de acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

A mudança brusca teve início com as sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos em 2014 -- que, até então, era o maior comprador de petróleo venezuelano -- e com a queda do preço do barril de petróleo, responsável por 90% da economia do país. Nos anos seguintes, a Venezuela viveu uma das maiores crises de abastecimento alimentar da sua história.

Em 2016, a escassez de produtos atingiu 80% dos supermercados e 40% dos lares venezuelanos. Por isso, em abril desse mesmo ano, o presidente Nicolás Maduro criou os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP), que além de distribuir cestas básicas em todo o território nacional, buscam organizar a população venezuelana para combater a especulação do preço dos alimentos.

Cada comitê é composto por uma representante da União Nacional de Mulheres (UnaMujer), um membro de uma Unidade de Batalha Bolívar-Chávez (UBCh) e alguém da Frente Francisco de Miranda, corrente interna do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). Além dos coordenadores e líderes de rua que participam do Conselho Comunal (espécie de conselho comunitário) de cada localidade.

Esse grupo é responsável então por fazer um censo demográfico e elencar as demandas da sua comunidade -- todos esses dados são compilados no Sistema Pátria, pelo qual cada cidadão também pode se inscrever em outros programas sociais do governo. Após isso, cada Conselho Comunal começa a ser abastecido com as cestas básicas.

Rotina comunal

Protegido por imagens de um Che Guevara e uma Nossa Senhora do Rosário está o Conselho Comunal de Altos de Lídice, favela de La Pastora, zona central de Caracas. É ali onde estão armazenadas as cestas básicas do sistema CLAP, que abastecem 375 famílias da região.

Além de receber reuniões políticas, é na sede dos Conselhos Comunais onde são guardadas as cestas básicas do CLAP. (Foto: Michele de Mello)

Cada combo contém dois ou três quilos de farinha de milho pré-cozida (base para as arepas, prato típico venezuelano); de um a dois quilos de macarrão; dois de arroz, lentilhas e feijão; um quilo de leite em pó, um de açúcar ou sal; uma ou duas garrafas de azeite; molho de tomate; atum; maionese; entre outros produtos por um preço de 2 mil bolívares (cerca de R$ 1,45). A composição varia a cada mês, já que a maior parte dos produtos é fruto de importação, principalmente do México, do Brasil, da Colômbia e do Uruguai.

Essas importações são recebidas primeiramente pelos Centros de Empacotamento de Alimentos para os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CEACs), que têm capacidade para empacotar 18 mil combos alimentícios por dia, totalizando cerca de 540 mil mensais.

Em 2017, os CLAP chegaram a quase 11 milhões de famílias venezuelanas. Além disso, segundo uma pesquisa do portal Puzkas, 14% dos venezuelanos (cerca de 4,4 milhões) afirmam que os CLAP são sua principal via para conseguir alimentos, e 27,5% (8,5 milhões) que são uma fonte importante para a subsistência.

Segundo o coordenador dos comitês, Freddy Bernal, o plano é chegar a 20 milhões de venezuelanos até o ano que vem. As cestas básicas são distribuídas nas empresas públicas, mas também nas comunidades, através dos líderes dos CLAP.

Trabalho de formiguinha

Thaís Quintero é enfermeira e, desde 2016, uma das 20 líderes de rua do CLAP da sua comunidade, Altos de Lídice, na favela La Pastora. "Telefonaram-me dizendo que buscavam pessoas para conformar um CLAP. E eu disse: 'CLAP, mas o que é isso?'. Aí fui numa reunião e me explicaram que o governo ia tomar medidas para controlar a situação de escassez e que nos ia entregar uma bolsa que custaria o mínimo possível. Então, fomos passando de casa em casa explicando para as pessoas.”

Thaís Quintero e outras amigas do CLAP de La Pastora. (Foto: Michele de Mello)

De forma diligente, como formigas, os líderes de rua recolhem o pagamento de cada família e depositam para a coordenadora do CLAP da região. Ela leva esse dinheiro para o Estado Maior de La Pastora, que abriga cerca de 130 mil pessoas. Destas, 375 famílias são atendidas pelo programa governamental.

“Graças ao CLAP as comunidades recebem o alimento, com algumas deficiências. Certas vezes não vem leite, em outras faltam alguns ítens, mas se não tivéssemos isso, o que seria de nós? Com essa oposição que nós temos, avessa ao povo, não teríamos conseguido de nenhuma forma obter os artigos de primeira necessidade, a cesta básica de comida. Por isso eu digo que, às vezes, essa é uma guerra de povo contra povo”, conta Escarlet Castro, moradora de La Pastora e beneficiária do combo alimentício.

Mais protagonismo ao poder popular

No dia 28 de maio, o presidente Nicolás Maduro aprovou a criação do Sistema Nacional de Controle dos CLAP, que busca fiscalizar a distribuição e garantir que todos os produtos que saem dos CEACs cheguem até os mais necessitados.

Maduro também aprovou o lançamento do Plano Produtivo da Milícia Bolivariana, que busca, incorporar progressivamente 51 mil Unidades Populares de Defesa Integral à produção. “Logo veremos o milagre produtivo nacional", afirmou o presidente venezuelano.

Nas comunidades, o povo aprova a nova medida. "Magnífico, porque vai ser totalmente controlado pela Brigada Bolivariana da Venezuela, e nós estamos prontos para vencer esse bloqueio que querem nos impor de qualquer maneira”, garante Escarlet Castro, que também integra as Brigadas Bolivarianas.

Impacto das sanções

O governo dos Estados Unidos sancionou dez das 12 empresas que transportavam importações do governo venezuelano que abasteciam os CLAP. Além disso, no último mês de maio, a Câmara de Representantes dos Estados Unidos chegou a colocar na pauta do dia a discussão da ampliação das sanções contra a Venezuela, o que poderia incluir os CLAP.

Ao mesmo tempo em que impõe um bloqueio financeiro, econômico e comercial, que impede o abastecimento do povo venezuelano, a Casa Branca oferece “ajuda humanitária”, através dos líderes da oposição, como foi visto no episódio do último 23 de fevereiro, quando o governo dos Estados Unidos, da Colômbia e do Brasil tentaram forçar a entrada de caminhões com 270 toneladas de material "humanitário".

No entanto, essa ajuda representa 0,02% dos alimentos distribuídos às famílias venezuelanas pelo sistema CLAP que, em 2018, chegou à cifra de 120 milhões de combos, representando mais de 1,7 mil toneladas de alimentos.

Soberania Alimentar

Em nível institucional, o CLAP age em três frentes. A primeira, por meio do Plan Gorgojo (Plano Caruncho), que busca atacar a corrupção dentro da distribuição de alimentos nos supermercados do país. Em 2016, o Ministério Público venezuelano ordenou a prisão de 400 pessoas por formação de monopólio, boicote e contrabando, o que ficou conhecido na Venezuela como "bachaqueo".

A segunda estratégia foi aumentar as importações e vender os produtos a preços regulados nos quase 1200 mercados populares, sem mediação do setor privado. A terceira frente do programa tenta dar conta de aumentar a produção interna de alimentos. A partir daí, além de incrementar os planos de incentivo fiscal aos produtores agrícolas, o governo venezuelano também criou programas "conuqueiros", que incentivam o plantio na zona urbana.

São desses programas que surgem os focos produtivos nas comunas constituídas dentro da cidade. Na comuna de Altos de Lídice, onde vive a líder de um CLAP, Thaís Quintero, governo e comunidade trabalham juntos para estruturar galinheiros.

Enquanto o projeto não sai do papel, o abastecimento é garantido por meio da articulação com comunas rurais. Durante o último final de semana, a comunidade organizou um mercado comunal, com venda de pães, sardinha e café a preços até três vezes mais baratos que no mercado.

"Se não nos agrupamos, não temos força. É por isso que o comandante [o ex-presidente Hugo Chávez] dizia 'Comuna ou Nada'”, relembra Quintero.

Resistência pela base

Thaís Quintero conta que até as eleições de 1998 nunca tinha votado. "Não estive de acordo com esses governos que existiam até aí. Inclusive, naquele 27 de fevereiro, eu fui uma das pessoas que saiu para saquear. Estávamos desesperados pela fome que estava nos matando. Hoje estou viva, porque Deus permitiu que eu vivesse, porque nesse dia as balas passavam do meu lado”, relata.

O dia, trazido de memória pela enfermeira, trata-se do Caracazo, uma revolta popular que aconteceu em 1989. Milhares de pessoas saíram às ruas para protestar contra a miséria e um pacote de medidas econômicas do governo de Carlos Andrés Pérez. Cerca de 300 pessoas foram mortas por dizer não às políticas de ajuste fiscal, impostas por um governo alinhado a Washington.

No interior da sede do Conselho Comunal, além de fotos de Chávez e Maduro, os moradores da favela La Pastora também conservam uma placa em homenagem à Marielle Franco. (Foto: Michele de Mello)

Com os olhos marejados, ela relembra um dia no ano 1997, quando Chávez visitou a comunidade de La Pastora para conversar sobre sua campanha à presidência. Apenas 30 pessoas apareceram, e Thaís era uma delas. "Quando o comandante Chávez começou a falar seu programa de governo, eu disse à minha comadre: 'Este é o homem. Aqui eu vou e estarei junto com ele'".

O legado de Chávez se reflete na organização popular e no amor à pátria. Assim como em 1997, os venezuelanos se negam a ter um governo submisso aos interesses dos Estados Unidos. “Os revolucionários estão dispostos a tudo contra esse bandido chamado Trump. Aqui com as unhas. Nós temos sangue indígena e o índio está em nós. Não estamos dispostos a que nos submetam, que nos ataquem, não. Aqui não há maneira, aqui as pessoas são chavistas e esse é o caminho, não há outro”, finaliza Quintero.

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira