Desde que Moçambique foi atingido pelo ciclone Idai, no dia 14 de março, as cifras da destruição não param de subir. Cerca de 602 pessoas morreram por conta do desastre, que também danificou a estrutura de diversos hospitais e escolas do país.
Devido à concentração de água nas cidades atingidas, Moçambique está em alerta para a possibilidade de surtos de cólera e malária. Em entrevista ao Brasil de Fato, o coordenador nacional da Ação Acadêmica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais (ADECRU), Jeremias Vunjanhe, afirmou que muitos dos danos causados pela passagem do Idai ocorreram porque a administração moçambicana não soube reagir adequadamente ao alerta de um desastre iminente.
Segundo ele, o governo, liderado pelo presidente Filipe Nyusi, da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), “falhou em todos os sentidos: na prevenção, nas respostas que deveriam ter sido dadas quando o ciclone começou, no apoio que deveria ser prestado e no assistência às vítimas”.
Confira na íntegra os principais pontos abordados na entrevista:
Situação do país após passagem do ciclone Idai
Penso que continua trágica e extremamente grave. Até agora sabemos que há muita gente, sobretudo nas comunidades rurais de Manica, Sofala, Zambézia, que continuam sem ajuda nenhuma, continuam totalmente isoladas. O governo nem sequer se deu conta da existência dessas comunidades, do que realmente pode ter acontecido.
Havia muitas comunidades que necessitavam de tudo, que perderam tudo e não receberam ajuda. Um mês depois, a situação continua muito caótica. Sobretudo em Manica e Sofala (região central de Moçambique), já havia problemas de seca e fome antes do ciclone, porque não choveu normalmente. Há comunidades que sequer chegaram a começar o plantio. O ciclone veio agravar a situação.
Também é muito difícil calcular o que as pessoas perderam. O governo conseguiu estimar o número de casas, hospitais e de feridos, mas do ponto de vista de produção, até agora não há dados publicados. O presidente anunciou um conjunto de pacotes de isenções fiscais como forma de incentivo, mas isso aconteceu em uma perspectiva que atende muito mais aos interesses dos agentes econômicos e dos comerciantes. Uma medida concreta para a agricultura, sobretudo a agricultura camponesa, ainda não foi anunciada.
Responsabilidade do Governo na tragédia
As pessoas que moram em Maputo — ou em cidades com acesso a internet — tiveram a informação do ciclone com pelo menos duas semanas de antecedência..
A informação foi transmitida por televisão e rádio. Deveriam ter encontrado um mecanismo que fosse acessível à maior parte da população, sobretudo às populações das zonas rurais que normalmente não têm rádio nem televisão, não têm energia, não têm acesso à essa informação.
O presidente viajou para Suazilândia no dia seguinte ao da passagem do ciclone. Lá, ele fez uma declaração pública na televisão, apelou à solidariedade, mas nem ele próprio tinha noção do que tinha acontecido em Beira, não tinha entendido o significado de um ciclone de categoria 4. O governo falhou em todos os sentidos: na prevenção, nas respostas que deveriam ter sido dadas quando o ciclone começou, no apoio que deveria ser prestado e no assistência às vítimas.
Há comunidades que estão totalmente isoladas, que vão sendo descobertas mesmo depois das operações de salvamento terem terminado. Vemos muita ajuda concentrada em Beira, Nhamatanda, e nas vilas, mas aquelas comunidades, que estão no interior até agora, continuam sem nenhum apoio. O governo falhou e depois deu uma resposta muito atrapalhada.
O único grupo que agiu preventivamente foi o de voluntários sul-africanos de resgate. Quando perceberam que haveria um ciclone daquela categoria, eles viajaram de carro da África do Sul e foram os primeiros a chegar a Beira. Tiveram tempo de sair da África do Sul de carro, enquanto nosso governo só conseguiu responder por volta de quatro ou cinco dias dias depois.
Atuação das ONGs
Moçambique tem uma perspectiva de querer controlar excessivamente o trabalho das ONGs para retirar dividendos políticos eleitorais. Por causa disso, elas têm operado em um circuito independente.
Porém, esse mecanismo autônomo das ONGs muitas vezes distorcem a agenda e as prioridades das pessoas das comunidades atingidas. Muitas delas estão recolhendo ajuda humanitária, mas não se tem um mecanismo claro de como é que essa ajuda humanitária vai ser fiscalizada ou distribuída.
Elas são grandes máquinas operativas, por onde chegam passam por cima de tudo e de todos, atropelando desde a máquina administrativa oficial do governo até os hábitos que são questões das comunidades, que são questões culturais.
Outro aspecto problemático é que voltamos ao ciclo vicioso da caridade, que foi instalado no pós-guerra, em 1992. O ciclo de pensar e de acreditar que o melhor é aquilo que vem de fora [do país] e que eles próprios [as comunidades pobres rurais] não têm a capacidade para fazer nada, que tudo depende dos outros. Isso é algo que, infelizmente, já está instalado neste momento.
É algo que subverte toda uma lógica própria que vinha sendo construída pelos movimentos sociais, de engajar as comunidades, de mobilizá-las para que elas próprias acreditem em si, acreditem nas possibilidades, nas alternativas que se pode ter em suas localidades, e possam até ser soberanos em decisões que tomam.
Movimentos sociais em Moçambique
O próprio conceito de movimento social aqui continua muito difícil de ser trabalhado. O maior risco que nós passamos é o de chegar em uma comunidade e ser confundindo, como se fossemos parte da ajuda monetária. Nossos companheiros que estão em Beira diziam claramente que, quando há grandes ONGs e agências, é praticamente impossível que um movimento social possa desenvolver algum trabalho.
Os movimentos sociais, sobretudo os que trabalham na linha da Via Campesina, devem fazer um diagnóstico da situação e denunciar "ajudas", como a distribuição de semente transgênica. Os camponeses são obrigados a entrar num circuito comercial para adquirir essas sementes, abandonando o modelo tradicional e autônomo de cultivo, criando dependência dessas comunidades ao capital estrangeiro.
Muitas comunidades são analfabetas, onde as pessoas que foram para a escola têm um nível muito básico de leitura. Então são comunidades facilmente sujeitas a manipulação e a armadilhas que eles próprios não conseguem entender.
É preciso aproveitar esse momento para a formação, para ajudar as pessoas a entender as implicações negativas de longo prazo que uma ajuda nesses termos compõe, até porque vamos ver agora muitas contrapartidas. As empresas não doam por caridade, há contrapartidas muito claras e nós sabemos que no pós-cheia o governo terá muitas limitações para recusar os projetos dessas empresas.
Sobre a FRELIMO
Tenho algumas respostas que não são institucionais, essa parte retiro a responsabilidade sobre a ADECRU.
Em primeiro lugar, a FRELIMO confunde-se com o governo e com o Estado. O partido continua sendo, infelizmente, a força dirigente. Se você é um governador ou ministro da FRELIMO, em última instância, tem que seguir as orientações que o presidente do partido orienta.
Segundo, nossa função pública é partidarizada. A FRELIMO tem células em todas as instituições públicas e força os funcionários a se filiarem ao partido. Eu me arrisco a dizer que quase 90% dos funcionários públicos de Moçambique tem ou já tiveram um cartão da FRELIMO. Inclusive os empresários.
O Estado moçambicano é o maior empregador em Moçambique. A maior parte dos empresários que fazem negócios possuem o Estado como principal cliente, por isso muitos desses empresários também são forçados a se filiarem à FRELIMO. Se você não tem um cartão da FRELIMO, você não pode ser promovido, não pode exercer nenhum cargo de chefia.
Terceiro, por que que a FRELIMO não sai do governo? Porque há fraude eleitoral. Já houve anos -- sobretudo o de 1999 -- em que tivemos provas factuais de que o candidato da FRELIMO (na época, o presidente Joaquim Chissano) perdeu as eleições. Mas o partido controla a máquina eleitoral e simplesmente não contabilizou os 200 mil votos que davam vitória ao candidato opositor,
Em quarto lugar, a FRELIMO é militarizada. O partido controla o Exército e a Polícia. Para fazer frente à FRELIMO você tem que ter armas. É por isso que o líder da RENAMO (Afonso Dhlakama, morto ano passado) tinha se dado conta que democraticamente era impossível tirar a FRELIMO do poder. Ele começou a reivindicar, começou a reagrupar os seus homens e, de 2013 até 2014, antes das eleições, estávamos em conflito armado.
Toda aquela região de Beira estava em conflito. Depois a própria FRELIMO criou os esquadrões da morte e grupos de milícias para sequestrar e matar gente que era considerada de oposição ou que era vista facilitando a logística da RENAMO.
Finalmente, penso que a FRELIMO continua no poder porque também há poucas alternativas. A oposição que nós temos é a RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana), que já foi uma guerrilha, esteve em guerra com o Exército de 1976 a 1992. No pós-92, a RENAMO tinha controle territorial, aceitação e uma base social muito forte, de tal modo que chegou a possuir 117 deputados por meio de uma coligação. Mas atualmente o partido não tem apresentado alternativas.
Sobre o futuro
Eu acredito que a partir de 2024 vamos ter mudanças significativas, sobretudo quando a geração dos libertadores -- que na verdade se tornaram -- estiver no fim de suas forças. Nós conseguimos notar, principalmente nas zonas rurais, que muitas comunidades estão protagonizando lutas anti hegemônicas bem sérias. Mas elas precisam unir as forças, precisam traçar alianças com movimentos de outros países. Há hoje a experiência do Pan Africanism Today, que a ADECRU está envolvida. Muitas organizações, movimentos sociais fazem parte. Acho que é uma plataforma, uma aliança importante que ajuda muito a construir alternativas.
*Com colaboração de Tiago Angelo.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira